A figura que tomou força espontânea foi a de Joaquim Barbosa.
O velho ditado consagra: “cabeça de juiz, fralda de bebê e urna eleitoral, sempre guardam uma surpresa”. Assim, é impossível apontar com integridade o que ocorrerá no primeiro turno dessa eleição presidencial. Podemos, contudo, à semelhança dos astrólogos, munidos dos mapas astrais da história e da ciência política, falar sobre o cenário que se descortina à nossa frente, levando em consideração os dados da pesquisa Datafolha do domingo passado.
Em tudo, o cenário se assemelha às eleições de 1989. Uma verdadeira revolução tinha acontecido com o fim da ditadura militar, um regime do qual o brasileiro médio já havia se cansado. A Constituição de 1988 havia recentemente sido promulgada, ganhando louvores e o epíteto de “Carta da Cidadania”. Um governo altamente impopular estava no poder, o do maranhense José Sarney, com estagnação econômica, escassez de alimentos e inflação galopante. Ninguém protestava, à semelhança do que havia acontecido quatro anos antes com as “Diretas Já”: só esperavam que aquela atmosfera modorrenta e sufocante acabasse, todos contando o tempo para que viessem as eleições.
Aqui, em 2018, uma grande convulsão popular em junho de 2013 (as jornadas de junho, afinal), deu início a um processo de intensa radicalização política. Virou lugar comum, afinal, protestos de rua, debates nas novas ágoras públicas, que são as redes sociais, e intenso acirramento de ânimos. Há dois anos, o longo regime petista, que vinha governando o país desde 2003, foi derrubado pelo parlamento, levando ao poder Michel Temer. O atual presidente, por sua vez, tem feito um governo pífio e acuado por intensas denúncias de corrupção. Ninguém reage, à semelhança do que ocorreu antes, justamente por cansaço, esperando os segundos para a eleição que virá em alguns meses.
Vinte e dois candidatos, à altura, se apresentaram na contenda, concorrendo na primeira eleição direta da Nova República. Sílvio Santos, o maior apresentador do Brasil, pôs o seu nome sob escrutínio, tendo sua candidatura indeferida de última hora. Ilustres desconhecidos, como Manoel Horta, Antônio Pedreira, Celso Brant, Eudes Mattar, Zamir Teixeira, Paulo Gontijo e a primeira candidata mulher, Lívia Maria Pio, se lançaram. Um candidato com uma extensa ficha policial corrida, José Marronzinho – responsável por uma intensa campanha de difamação contra Fernando Henrique Cardoso, apontado como maconheiro, durante as eleições para a prefeitura de São Paulo em 1985, sob mando de Jânio Quadros – também se apresentou. Foi o début de Enéas Carneiro, apresentando aos holofotes sua feiura somente comparável à verborragia e inteligência. Fernando Gabeira e Roberto Freire, àquele tempo apontados como radicais de extrema-esquerda, se lançaram. Concorreram também Ronaldo Caiado, Aureliano Chaves e Affonso Camargo, nomes destacados na redemocratização, fechando a lista dos menos votados.
À frente, no páreo, estavam: Ulysses Guimarães, grande nome da oposição ao regime militar, presidente da Câmara e da Assembleia Constituinte; Guilherme Afif Domingos, empresário e ex-malufista arrependido, com um dos melhores jingles da história; Paulo Maluf, cuja fama precede o próprio nome; Mário Covas, primeiro candidato do recém-nascido PSDB; Leonel Brizola; Lula; e Fernando Collor de Mello.
Ninguém imaginava o que ia dar. Enquanto Sílvio Santos permaneceu concorrendo à presidência, as pesquisas não conseguiam sequer definir os dois nomes que disputariam o segundo turno – porque Sílvio ameaçava roubar os votos de Collor, e era inconclusivo se o segundo colocado seria Lula ou Leonel Brizola, líder do então maior partido de massas do Brasil, o PDT.
Eram duas as grandes ameaças personificadas à democracia e a tudo que foi conquistado, na visão do populacho comum, da malta ignara. A primeira tratava-se de Leonel de Moura Brizola, um político radical e populista. Embora político experiente, tendo cumprido àquela altura dois mandatos de governador em estados diferentes (governou o Rio Grande do Sul de 59 a 63, e o Rio de Janeiro de 83 a 87), um mandato de prefeito (foi alcaide de Porto Alegre de 56 a 58), promovia profunda radicalização política, era o inimigo número um da imprensa, falava bobagem incessantemente, inventava números, e se colocava como um verdadeiro paladino moral do bom-mocismo. Denúncias de corrupção contra si e sua família apareciam à boca-miúda aqui e ali. Qualquer semelhança com o candidato do mesmíssimo partido, quase três décadas depois, é uma mera coincidência.
A segunda ameaça, mais terrível, era Luiz Inácio Lula da Silva. Era o candidato contra o sistema, que iria virar tudo de ponta a cabeça. Com uma bancada pequena de deputados, sua força não estava nos partidos políticos, mas nos seguidores que acreditavam fielmente na sua cartilha. Sua campanha tomou as ruas; os cidadãos compravam broches, camisas, doavam dinheiro, nada parecido com as empreiteiras que alimentaram seu caixa eleitoral, razão de sua atual prisão. Seu discurso, para seus eleitores, era o mais justo, inquestionável; quem se posicionasse contra ele, estava com os ricos, com os corruptos, contra o povo. Seu background era o de um sindicalista, que ganhou notoriedade fazendo greves e ações por aumento salarial para a sua categoria. Trocada a “ameaça comunista” pela “ameaça fascista”, eis aí o Jair Bolsonaro das primeiras eleições.
Como em toda tragédia, eis que sempre surge o mocinho, pronto para tomar as rédeas da situação e expurgar a ameaça do mal. Esse sujeito veio na figura de Fernando Collor de Mello, o caçador de marajás. Ex-governador da politicamente inexpressiva Alagoas, ex-deputado federal de atuação congressual chocha, foi alçado a símbolo maior da moralidade pública. Atacava impiedosamente o presidente Sarney, amigo de sua família, que abriu-lhe as portas do PMDB em 86, partido onde Collor exerceu seu primeiro mandato executivo. Falava difícil e distribuía erudição de dicionário em seus discursos. Mostrava um vigor heroico, como um verdadeiro super-homem que libertaria o povo brasileiro de suas mazelas. Seu programa de governo, de difícil compreensão e que foi mal-e-porcamente aplicado, se tornou a opção popular diante do horror simbolizado por Brizola e Lula.
O tempo mostraria que Fernando Collor de Mello aprofundaria ainda mais os problemas do país e agravaria a situação política, passando de primeiro presidente eleito da nova democracia a primeiro presidente a sofrer impeachment.
Os dois candidatos mais centrados da eleição, que não representavam ameaça à estabilidade, foram empurrados para trás na votação, que ocorreu no dia do centenário da República.
O de votação mais alta, Paulo Maluf, tinha em sua ficha um governo incontestavelmente competente, que verdadeiramente mudou a cara do estado de São Paulo. Maluf ainda se jacta, hoje, de suas realizações: “no meu tempo tinha ROTA na rua”; “essa estrada, esse viaduto, o caminho inteiro que você usou para chegar aqui, fui eu que fiz”, são frases comuns encontradas em vídeos ao longo de sua carreira política. Sua política de segurança, que exterminava a bandidagem – deixando, é claro, inúmeros inocentes mortos no meio do caminho – virou modelo no populismo brasileiro de direita. Suas obras faraônicas, que modernizaram a locomotiva do Brasil, também compõem a fundamentação de algumas das suas prisões por corrupção nos últimos anos. Mas, nada disso era o que pesava contra Maluf, que era um candidato que prometia calmaria e seguimento na normalização do Brasil: o que pesava era o fato de ter sido o candidato a presidente, na eleição anterior, pelo PDS, partido das grandes figuras do regime militar.
Logo abaixo dele, estava Mário Covas, que possivelmente teria sido o melhor presidente diante dos seus outros vinte e um concorrentes, mesmo com inúmeras deficiências e vacuidades de plataforma. Mário Covas promovia a ideia da social-democracia européia, da modernidade, que era a coqueluche do momento – algo parecido com o discurso de desenvolvimento sustentável, hoje em voga como a última palavra em se tratando de novidade política. Seu entorno agregava os empresários bem-intencionados. Sua posição era a mais centrista – e por isso, talvez insípida – entre todas as lançadas ali. Covas fez parte da oposição aguerrida na ditadura, integrando a ala dos autênticos do MDB. Teve o mandato cassado, mas deu a volta por cima, fazendo uma boa gestão na prefeitura de São Paulo, sob nomeação de Franco Montoro – naquele tempo, pré-restabelecimento das eleições diretas, os prefeitos de capital eram nomeados pelo governador do Estado. Saiu, por fim, do grande partido governista, o PMDB, para fundar aquele que se colocava àquela altura como a nova plataforma de terceira via, o PSDB.
Fechando a conta histórica, e fazendo um paralelo entre 1989 e 2018, Lula era Jair Bolsonaro, Brizola era Ciro Gomes, Maluf era Geraldo Alckmin, e Mário Covas era Marina Silva. Podem estranhar os amigos equalizar gente de posição tão antagônica, mas o que se aponta aqui é como estavam os candidatos com relação ao cenário.
Maluf, por exemplo, representava o discurso de centro-direita, com pitadas populistas, de segurança, fazendo o tipão do “tocador de obras”. Sua “caixinha” – isso é, as polpudas contas na Suíça – era famosa, mas não era isso que se levava em consideração, mas sim o competente governo que fez em São Paulo. Tal qual Alckmin, que reduziu os índices de homicídio do estado mais rico e populoso do Brasil, e realmente foi extremamente competente no papel que se propôs ocupar. Lula representava o discurso anti-sistema, de mudança, de revolução, de campanha popular, exatamente como está posto Jair Bolsonaro hoje – com a coincidência, de quebra, de todos terem emergido do sindicalismo, do grevismo (para que não se esqueça, Bolsonaro virou manchete pela primeira vez brigando por aumento de salário para os militares). O velho populista de esquerda, experimentado, puta velha na boa gíria baiana, com discurso desenvolvimentista, boquirroto, se enquadra perfeitamente para Brizola e Ciro Gomes, que cônscio ou inconscientemente o emula. A terceira via, o candidato que abandonou o governismo para se redimir com o que parece ser mais moderno, o que dialoga com esquerda e direita, a grande novidade – ainda que cheirando um pouco a naftalina, requentada de eleições – é o mesmo papel que se põem Marina Silva, com a sua novíssima Rede Sustentabilidade, e Mário Covas, com o seu PSDB.
Tivemos nesse cenário, inclusive, o nosso Sílvio Santos, cuja candidatura foi abatida antes de ser testada nas urnas: foi Luciano Huck, sujeito que teria virado as cadeiras da sala de chá da política de pernas para o ar.
Um adendo, aliás, importante, para quem não captou a atmosfera do passado: o PSDB era a grande novidade de 1989. Àquele tempo, se definia publicamente como um partido de centro-esquerda, não se envergonhava de ser social-democrata (ou no jargão olavete, socialista fabiano), e não tinha sido testado nas urnas numa eleição majoritária. Era o que havia de diferente, porque não era o PMDB que decepcionou – apesar de ter emergido dele; não era o então PT radical; não era o brizolismo apaixonado; não era nada daquilo. O PSDB era a nova política, em oposição à velha política. O partido só se transformaria radicalmente com a eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência, na eleição seguinte. O PSDB era a Rede Sustentabilidade, por assim dizer. E ouso arriscar, aliás: Marina Silva, se eleita presidente algum dia, se transformará num FHC por completo, e será empurrada para a direita no imaginário popular – mas, isso é assunto para ser desenvolvido em outro texto.
Karl Marx, embora deficiente à luz da doutrina política que esposo ao apontar a gênese de todos os problemas na luta de classes, soube ler como quase ninguém na história da humanidade a política. Em seu clássico O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx faz uma leitura sobre como uma revolução popular (a de 1848), à semelhança da revolução francesa de 1789, evoluiu de uma quase-anarquia convulsiva para uma ditadura coroada, levando, em um e outro episódio, Luís Napoleão Bonaparte ao trono francês como o imperador Napoleão III, e anteriormente, o seu tio Napoleão. A síntese da obra se encontra nesse excerto:
Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.
Esse parágrafo célebre, resumido no quote “tudo se repete na história, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, é o que se encaixa para o cenário que aqui converge nas eleições de 2018, em tudo semelhantes àquela de 1989.
Falta, afinal, identificar o personagem que virá como farsa, que cumprirá a vocação de Fernando Collor de Mello. Acreditava, antes do derretimento de sua candidatura à presidência, que o grande farsante seria João Dória, que desistiu de enfrentar a máquina tucana e lançou-se para o governo do estado de São Paulo, na sucessão de Alckmin. Sem Dória no cenário, a figura que tomou força espontânea foi a de Joaquim Barbosa, que pode vir a ser o nosso Luís Napoleão.
Joaquim Benedito Barbosa Gomes é talhado e esculpido em mármore de Carrara para o papel. Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, tornou-se símbolo do combate à corrupção, tendo enfrentado os dois maiores nêmesis da nação, no imaginário do povo brasileiro, na Suprema Corte em diversas ocasiões: os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Combate à corrupção, aqui, é o caçador de marajás de antigamente.
Joaquim Barbosa tem ligações com o regime velho, tendo votado sucessivas vezes, publicamente, no Partido dos Trabalhadores, e sido indicado para o excelso pretório pelo presidente Lula. Collor, por sua vez, foi cevado no arenismo do Regime Militar.
Joaquim Barbosa é desconhecido, nada diz, nada promete. A doutrina econômica que melhor casa consigo, ninguém sabe. Qual será o seu gabinete, é uma dúvida que paira no ar. Qual será o seu programa, é um mistério. Mas o que impulsiona sua candidatura é a crença na superioridade moral do Poder Judiciário, que poderia colocar o país nos eixos, corrigir injustiças, prender políticos corruptos. Uma crença falsa, uma vez que esse padrão moral dos tecnocratas jurídicos dos tribunais é uma fraude completa, como vemos diante de salários polpudos, sentenças arbitrárias, usurpação judiciária de competências constitucionais dadas ao parlamento, releituras escabrosas da Carta Magna e do ordenamento jurídico à luz da hermenêutica mais duvidosa, enfim: o Poder Judiciário não está melhor do que ninguém.
Mas, o Brasil do PMDB velho de guerra, dos Eduardos Cunhas e Severinos Cavalcantis, não é a França das duas revoluções, a burguesa e a liberal. Um Napoleão III não se cria e nem se sustenta, diante das nossas aves de rapina, ávidas por poder e por dinheiro. Fernando Collor, que não tinha uma bancada de sustentação no Congresso Nacional, sambou. Nessa roda, um Joaquim Barbosa também entraria, e agravaria mais ainda nossa situação política, à espera de um sujeito sem-graça e metido para começar a colocar as coisas no eixo, um Fernando Henrique Cardoso da vida.
A sorte continua lançada, e tudo pode mudar. Só o vidente Carlinhos, talvez, consiga dizer quem levará essa eleição. Mas, até aqui, o papel de novíssimo Collor tem assentado perfeitamente à mão de Joaquim Barbosa como uma luva.
Se estamos condenados a repetir ad infinitum a mesma história, não se pode dizer. Talvez a consciência popular relembre do passado, e se empurre para escolher um candidato do sistema, como Geraldo Alckmin, ou um candidato da terceira via, como Marina Silva. É possível que resolvamos surtar coletivamente e levar Ciro Gomes ou Jair Bolsonaro ao poder. Mas, se for o nosso fado insistir na burrice, eis que temos um vencedor no 16 Vindimiário (7 de outubro) desse ano.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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