Solar Pons está tão entranhado nos anos 20-30 quanto Holmes, na Era Vitoriana. Isso lhe dá uma identidade própria.
Desde que a obra de Sir Arthur Conan Doyle entrou em domínio público, no início do século, as adaptações, atualizações e recriações de seus personagens mais famosos – Sherlock Holmes e Dr. Watson – têm sido legião. A mais recente é um seriado asiático em que “Sherlock Holmes” é uma jovem moradora de Tóquio. Nessas circunstâncias, por que alguém se daria ao trabalho de ressuscitar Solar Pons? Mas é exatamente isso o que David Markum faz em seu livro de 2017, The Papers of Solar Pons.
Criado em 1928 pelo então jovem escritor americano August Derleth, Pons foi a primeira “adaptação modernizada” de Sherlock Holmes: é um detetive particular que fuma cachimbo e toca violino, dotado de uma capacidade fantástica de dedução e observação, que divide um apartamento em Londres (7B Praed Street) com um médico, o Dr. Lyndon Parker, encarregado de narrar suas aventuras.
Além dos nomes, o que distingue Pons e Parker de Holmes e Watson é o tempo: todas as histórias sobre Solar Pons se passam entre 1919 e 1939, enquanto que as aventuras de Holmes narradas por Watson têm lugar entre 1881 e 1907, aproximadamente (com uma breve aparição especial anos mais tarde, às vésperas da I Guerra Mundial). Essa “atualização” antecipa a que seria feita nos filmes da Universal, com Basil Rathborne e Nigel Bruce, que trazem Holmes e Watson para o contexto da II Grande Guerra – é por causa disso, aliás, que há quem diga que esses são, na verdade, “filmes de Solar Pons”.
Derleth decidiu criar Pons depois que Conan Doyle anunciou, em 1927, que não produziria mais aventuras de Holmes: não se trata de imitação cínica ou paródia, mas algo que poderíamos chamar, talvez, de um trabalho de amor.
As primeiras aventuras do personagem foram publicadas em periódicos obscuros, e o próprio Derleth abandonou seu detetive após algum tempo. Mas, em 1944, um conto de Solar Pons foi selecionado por Fred Dannay (metade da dupla de autores que assinava “Ellery Queen”) para integrar uma antologia de homenagens a Conan Doyle – e o detetive de Praed Street ganhou súbita fama.
De fato, Solar Pons foi abraçado com entusiasmo pelo fandom sherlockiano nova-iorquino, composto, além do próprio Dannay, por figuras como Vincent Starrett, autor do livro de ensaios The Private Life of Sherlock Holmes, e Edgar W. Smith, editor do volume de textos críticos Profile by Gaslight.
Com essa acolhida, Derleth – cujos esforços no sentido de se tornar um autor respeitável pareciam, na época, bem encaminhados, dada a recepção favorável da crítica a seu ciclo de romances históricos e regionalistas do Wisconsin, a Saga de Sac Praerie – resolveu tirar o personagem do limbo, e novos contos de Pons, além de um romance curto, Mr. Fairile Final Journey, vieram à luz.
Um fã-clube, os “Praed Street Irregulars” – numa referência bem-humorada ao fã-clube internacional de Sherlock Holmes, os “Baker Street Irregulars” – chegou a ser formado e, por algum tempo, a publicar seu próprio jornal. Com a morte de Derleth, em 1971, seus herdeiros autorizaram o escritor britânico Basil Copper a criar mais aventuras para o que veio a ser chamado de “cânone pontino”. Copper, um autor mais metódico e, ao menos em minha opinião, literariamente superior a Derleth, estendeu o tamanho das histórias, preferindo escrever novelas a contos, e produziu seis novos livros de Solar Pons antes que desentendimentos com editoras, fãs e parentes de Derleth o levassem a interromper o trabalho.
Com a morte de Copper em 2013, o personagem parecia condenado às estantes mais obscuras dos sebos – até a publicação de Papers of Solar Pons, em 2017. O que traz a questão: qual o papel de Solar Pons no mundo de hoje?
Como “fanfic” disfarçada de Sherlock Holmes, ele tinha, obviamente, a função de ser um bálsamo para os fãs, na ausência de novas histórias do Grande Detetive. Mas num momento em que já é legalmente possível escrever fanfic de Sherlock Holmes sem disfarces e com o próprio Sherlock Holmes no papel principal (eu mesmo coeditei uma antologia desse tipo!), quem precisa de Pons?
A resposta está no fato de que Solar Pons não é apenas Sherlock Holmes disfarçado; é uma versão a um só tempo irônica e idealizada, um Sherlock Holmes visto pelos olhos do fã inveterado.
Tanto os textos de Derleth quanto os de Copper abusam, cada um à sua maneira, de clichês associados a Holmes, mas que na verdade aparecem muito pouco (ou sequer aparecem) no trabalho de Conan Doyle: a expressão “elementary”, o boné xadrez de duas abas, a capa combinando. Além disso, Pons tem plena consciência da existência de Holmes: refere-se a ele como “meu ilustre antecessor” e “Mestre”.
Ambos os autores também carregam no chamado aspecto “aconchegante” – lambris, poltronas de couro, o fogo na lareira, o copo de uísque com soda, o chá das cinco – que, em Conan Doyle, ocorre com menos frequência do que as adaptações para o cinema e a TV sugerem, mas que seria adotado com gosto pela geração seguinte de autores britânicos de mistério, como Agatha Christie ou G.K. Chesterton.
Se as aventuras de Sherlock Holmes são informadas por Edgar Allan Poe e R.L. Stevenson, as de Solar Pons são informadas por Conan Doyle, Christie, Chesterton, Dorothy Sayers e, dado o pendor, tanto de Derleth quanto de Copper, pelo gótico, Lovecraft e M.R. James. No fim, Solar Pons está tão entranhado nos anos 20-30 quanto Holmes, na Era Vitoriana. Isso lhe dá uma identidade própria.
Tanto Derleth quando Copper, além disso, sabem que estão trafegando num mundo de mitos pré-estabelecidos, e brincam com o fato. Derleth faz Pons encontrar, nada menos que três vezes, um maligno Doutor chinês que controla uma sinistra organização internacional; e envolve seu detetive num jogo de espionagem (a bordo do Orient Express!) em que tomam parte também Simon Templar, O Santo, e Hercule Poirot. Na fase de Copper, muitas das novelas lembram, em tom, ritmo e cenário, velhos filmes da produtora Hammer.
O mundo de Solar Pons é menos fechado que o de Holmes. O detetive de Praed Street não hesita, por exemplo, em pedir que “Thorndyke” o ajude a analisar evidências. Trata-se de um aceno ao Doutor Thorndyke, personagem criado por R. Austin Freeman (1862-1943), o primeiro detetive ficcional a se dedicar integralmente a resolver crimes por métodos de ciência forense – um precursor das séries estilo CSI.
A qualidade geral das aventuras é irregular – há várias tramas muito bem urdidas, algumas previsíveis, mas muito poucas ruins e apenas uma, a meu ver – The Adventure of the Black Cardinal, de Derleth – realmente execrável.
O livro de Markum não faz feio diante do que veio antes, e inclui uma longa e divertida novela que “explica” a relação entre Solar Pons e Sherlock Holmes. Eu, pelo menos, fiquei curioso para ver que rumo o personagem tomará após a publicação desses Papers.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.