Ao contrário do que parece, "O Mecanismo" pode servir facilmente para justificar a corrupção de um governo.
O lançamento no último dia 23 de março da série de TV O Mecanismo (Netflix) – dirigida por José Padilha, Felipe Prado, Marcos Prado e com roteiros de Elena Suárez – parece ter surgido como mais uma novidade no turbilhão de informações políticas nacionais. Ainda mais em ano eleitoral: o país entra em estágio de ebulição, em que alguns embarcam nessa ciranda, outros ficam perplexos vendo o circo pegar fogo, e os que podem, desaparecem.
Baseada no livro Lava Jato: O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, do jornalista Vladimir Netto, e retratando, numa narrativa ficcional, o desenrolar da investigação policial mais importante da história brasileira contra a corrupção, a Lava-Jato, a série parece fazer esse apelo, e servir de combustível a coxinhas e mortadelas inflamados, embora os produtores tentem dissuadir as opiniões que destacam algum partidarismo. Em entrevista, José Padilha revela que a série poderia servir para “acordar” a esquerda. A direita pode ter gostado do que viu, mas também é personagem do “esquema”. A capacidade de atingir ou dialogar com os dois lados poderia ser um trunfo, mas no caso de O Mecanismo não é bem o que se configura, pois, se o que interessa é aquilo que transcende esquerda e direita, partidos e ideologias políticas, há pelo menos três problemas graves a serem destacados.
Antecipo, no entanto, que não se trata de uma crítica sobre a dimensão estética. Já há um bocado de textos na internet e em redes sociais denunciando a narração enfadonha e óbvia de Selton Mello, os enredos clichês – como o da delegada durona e alguns romances fajutos –, além de outros artifícios que realmente não caíram bem. Boa parte das críticas é válida, mas poderiam ser feitas a toda produção televisiva brasileira. É até engraçado que no jornal O Globo alguém tenha condenado a série porque carregava pieguices de telenovela, das quais a própria empresa dona do jornal é campeã. A crítica sobre a falta de densidade dramatúrgica na cinematografia brasileira é algo comum, e não parece justo centrar fogo exclusivamente sobre este caso, quando a obra de Padilha tem no endosso político seu maior destaque, e é sobre ele que este texto pretende se debruçar.
É muito mais que um Mecanismo
A série apenas arranha alguma dimensão que supera o curral da política brasileira. Deixa de transitar por todo o complexo que envolveu o esquema de corrupção investigado pela Lava-Jato: um rastilho de trocas políticas, recursos financeiros, obras e commodities que perpassa 49 países em 4 continentes diferentes e com movimento financeiro que passa dos 8 trilhões de reais (dado levantado em janeiro de 2017). Toda a sinfonia dos governos de esquerda na América Latina, entre os anos 2000 e 2010, foi afinada pelo mesmo padrão de burlas encontrado no Brasil. O fenômeno foi verificado, por exemplo, no Chile, na Colômbia, no Peru, países em que a Odebrecht – maior operadora e empreiteira brasileira de grandes obras públicas – marcava presença.
O impacto dessas amarras, entre prolongados projetos de poder e grandes construções, residia sobretudo no setor de energia, alimentos e commodities: por exemplo, dois dos maiores produtores de petróleo do mundo estão listados na Lava-Jato – Angola e Venezuela. As relações estreitas entre líderes políticos brasileiros e Cuba sempre foram patentes, e renderam mais do que beijos e abraços: o Porto de Mariel, em Cuba, até hoje carece de explicação – sabe-se que o financiamento foi do BNDES e a construção a cargo da Odebrecht. O ideal da política Sul-Sul, que movimentou toda uma agenda das relações internacionais do país, e preconizava acordos mais estreitos com países do hemisfério sul, como latino-americanos, africanos e asiáticos, reproduzia nesses países a estrutura de negócios entre instituições públicas e privadas existentes no Brasil. O próprio ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva chegou a fazer a ponte entre o ditador da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema, que governa o país desde 1979, e a construtora OAS. A propósito, parceria que inclusive rendeu samba em 2015, como patrocínio à escola de samba Beija Flor e um bloco de carnaval na Bahia, o Ilê Aiyê, que tinha por tema o país africano.
Parte dos defensores dos acusados nas investigações da Lava-Jato destaca a inconsistência das provas, algumas obtidas por meio de delações premiadas, outras contendo informações carentes de autenticidade ou feitas de documentos precários. Pudera, o sistema de corrupção era montado dentro de regimes de acordos pessoais, firmados sob mútua confiança nos acordos, à margem de documentação legal. O fato é que essa alegada precariedade do elemento probatório, do mesmo modo que remete à importância da ação personalizada nos acordos, concorre igualmente para que se analise o papel estratégico de determinados agentes nesses casos. E mesmo nesse quesito a série é rasa. A própria particularidade revelada pela Lava-Jato, do esquema de poder, torna a trama real muito mais profunda do que um House of Cards brasileiro, já que não se tratava do poder pelo poder, do dinheiro pelo dinheiro, mas o poder para uma trajetória, para um projeto de longo prazo, progressista, num âmbito de revolução institucionalizada e permanente.
No entanto, O Mecanismo não se vale dessa densidade. Esse voo baixo faz a série se perder num relato monótono, restrito, e carente de insights mais profundos. Se a trama é um xadrez, não são apresentadas as peças mestras desse esquema, nem ao menos algo que poderia trazer uma densidade, fazendo jus à própria realidade. O “mago” do negócio nem de perto foi o advogado Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, e que é retratado na série como o articulador entre governo e empreiteiras. Este servia de interlocutor, fazia o meio de campo, mas era um executor, e não um demiurgo. O Mecanismo poderia ter trabalhado com a fantástica biografia de pelo menos dois estrategistas do poder petista, como José Dirceu e Franklin Martins. Ambos com trajetórias políticas semelhantes: líderes estudantis nos anos 1960, presos juntos no Congresso da UNE em Ibiúna, exilados, treinados em Cuba, retornos clandestinos ao Brasil, e, depois, atuantes na redemocratização. Nos governos Lula assumiram posições centrais, como o ministério da Casa Civil (Dirceu) e da Secretaria de Comunicação Social da presidência (Martins). José Dirceu, na verdade, foi mais que um ministro, pode ser considerado como o grande arquiteto da política petista, e mesmo depois do Mensalão (em que foi condenado), seguiu sendo uma das figuras mais importantes na política nacional. Franklin Martins, mais discreto, mas ainda assim atuante e protagonista, a ponto de não passar incólume pelas investigações – há denúncias de que teria recebido verbas ilegais por conta de sua atuação em prol da reeleição de Hugo Chávez na Venezuela.
Esses foram apenas dois exemplos de como O Mecanismo poderia ter feito vôos águia. Algo que pode ser feito nas próximas temporadas. Mas, até agora, pecou por ter se restringido ao estilo avestruz, e ter deixado de dimensionar o “mecanismo”. Faltou projeção. Não estavam a filmar uma mera novela policial, a cena era intrincada, e mundial. Até o momento de ascensão das tramas descortinadas pela Lava-Jato é comum ao ápice do Brasil como “país da moda”. O que a propósito provou ser um otimismo mal e falsamente construído. Sem consistência, toda essa imensa carapuça foi se desmoronando, e dela estamos a juntar os cacos. Como o Cristo Redentor que subia como um jato nas capas da The Economist, e depois emplacou uma vertiginosa descendente.
É a melhor explicação que um acusado poderia dar sobre o problema da corrupção
Ao contrário do que parece, O Mecanismo pode servir facilmente para justificar a corrupção de um governo, especialmente de um que não tenha maioria no Congresso. Um petista médio, no caso, pode muito bem usar a própria série a seu favor. Sim! O truque retórico é demonstrar que o governo no final das contas foi vítima de um sistema pré-existente. E que, inclusive, para governar sem maioria no Congresso, e, sobretudo, para fazer uma política progressista, de franco desenvolvimento, a corrupção seria um fenômeno inerente. Teve até economista chinês apresentando tese correlacionando práticas ilegais e imorais com índices mais robustos de desenvolvimento e progresso.
É verdade que o esquema de corrupção que vem sendo desbaratado pela Lava-Jato não é uma invenção ex nihilo, coisa do nada. O próprio Emílio Odebrecht explicou que o esquema “tem mais de trinta anos”, que o próprio governo militar (1964-1984) fez escola, tendo aplicado esse entrecruzamento de empreiteiras – como a dele – em grandes obras públicas (e naquele período não faltaram grandes obras…). Antes, a invenção de Brasília no interior de Goiás por Juscelino Kubistchek já armara o circo de gastos públicos vultosos em obras faraônicas, tendo algumas empresas “selecionadas” para as empreitadas. Dos anos 1980 para cá, uma série de espasmos de operações investigativas revelava corrupções aqui e acolá, mas sem que fosse possível analisar a teia existente, algo que a Lava-Jato logrou fazer. Um mapeamento sobre a corrupção recente no Brasil, desenhada por um pesquisador do departamento de Ciência da Computação da USP ajuda a compreender essa questão. De fato, há uma forma de exercício corrupto do poder, cujo combustível são as grandes obras públicas, e que demarcou uma prática permanente, já que os agentes corruptores – sobretudo empresas privadas – agem nas eleições.
Ainda assim, é limitado achar que esse aparelho pré-fabricado resumiria o sentido próprio de poder dos anos 2000 para cá. Cairíamos numa “mesmice”. Parece que este é o ponto em que a série é mais “malandra”. Através dela partidos e agentes políticos podem se ver livres de culpa, identificando que tudo não passa de um mecanismo suprapartidário, que sempre se sai vitorioso, como algo que consome a coisa pública enquanto alguém está no poder, e que não haveria como escapar. Na cena do depoimento de João Pedro Rangel, que é a personagem identificada com a pessoa de Paulo Roberto Costa (ex-diretor de abastecimento da Petrobras), fica exposta essa tônica de um sistema que permeia toda a história nacional. Ainda que se tratasse de uma explicação defensiva, de um acusado, ela é incorporada pelos acusadores e, de modo geral, pela sociedade brasileira. Mas quando isso acontece há uma sorte de naturalização do problema, o que tornaria a própria Lava-Jato inviável, já que não particularizaria o problema, não conseguiríamos avaliar as especificidades do esquema petista, que levava a reboque a gama de partidos da base aliada, incluindo o mais importante deles, o PMDB.
Esse problema da série não é ingênuo. E nos leva a refletir sobre uma outra questão correlata, a de que…
Não é só um Mecanismo
Dizer que tudo aquilo é um “Mecanismo” em funcionamento desde que o Brasil nem era Brasil, e que perdura independentemente do grupo político no poder. Além de abrir o flanco para a vitimização dos culpados (como explicado no item anterior), pode vir a calhar para a própria série, se numa segunda ou terceira temporada quiserem dar um turning point a fim de parecer “menos de direita“, ou até “simpático à esquerda”, como aconteceu de algum modo entre o Tropa de Elite I para II, ambos dirigidos por José Padilha.
De fato, é preciso explicar que não se trata apenas de um “mecanismo”. Não tratar da particularidade, dos detalhes e da costura de corrupção permanente erigida ao longo dos governos de Lula e Dilma, do PT, significa destituir o caráter histórico desse fenômeno. O Mecanismo pode nos levar ao velho mal da a-historicidade, de certos mantras fáceis e que não condizem com qualquer pesquisa histórica séria. Refiro-me às formas populares de dizer, “escravidão não acabou”, “o Brasil ainda é aristocrático”, etc.. Ou, mais grave ainda, como na teoria do “estamento burocrático” de Raymundo Faoro, em Os donos do poder (1985). Se nas minúcias históricas Faoro faz jus a mística do advogado curioso com pegada de historiador, o âmago da tese é uma furada, pois reduz todo o processo histórico à permanência de algo que não muda desde d. Afonso Henriques, fundador de Portugal no século XII! Paira sempre um “estamento burocrático” que sombreia e pauta qualquer governo ao longo do tempo. Há acontecimentos, mas não há história, porque não há mudanças. Isso não só é errado, como presta um péssimo serviço a qualquer anseio por transformação, pois antecipadamente joga a toalha frente ao problema. E cai no cacoete de tratar a origem do problema fora de si mesmo. Neste caso, o estatismo ineficiente do Brasil seria pura reprodução do modelo português – o que é uma injustiça com Portugal, que já não tinha ingerência sobre o Brasil pelo menos desde 1808, quando o Rio de Janeiro passa a ser o centro político de todo o Império.
Na era recente, aquele que mais se utilizou da narrativa de Faoro contra o “estamento burocrático” foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que chegou em 1994 fazendo seu primeiro pronunciamento em que conclamava o fim da Era Vargas – que na visão Faoriana era o elefante do Estado grande, do funcionalismo, do governo central como motor da economia e das reformas sociais. No entanto, o próprio Fernando Henrique se utiliza do “estamento” – ou do “mecanismo”, como queiram – para realizar as suas peripécias particulares: aprovar a Emenda Constitucional para a reeleição presidencial, e lograr sinal verde dos partidos para a série de privatizações dos anos 1990.
“Ah, então FHC foi a própria prova, tanto da tese do ‘Estamento burocrático’ de Faoro, como agora de que o ‘Mecanismo’ é algo permanente?”
Não. Justamente, ele foi a prova de que pode-se usar dessa retórica para decididamente destituir o caráter público da vida política, e não para reduzir tudo a uma nuvem sedutora que está ali para fazer chover quando for da vontade de um ou de outro.
É certo que a máquina do Estado moderno está aí, permanece e atravanca. Pode ser analisada como algo que serve à opressão de uns sobre o resto. No entanto, não é a isso que o “estamento burocrático” ou o “Mecanismo” se referem, pois ambos ainda creem na democracia moderna, que por sinal é feita desse mesmo modelo estatal. O complicado dessa tese é que nos leva a lutar contra um fantasma, e não contra algo real. Ou, a algo que é tudo, mas se é tudo não é reconhecível e então não é nada. Teriam de fazer um O Mecanismo dos outros tempos históricos no Brasil. Como fariam com o Império, em que se desconhece casos de corrupção pública envolvendo os ministérios nomeados por d. Pedro II? Até mesmo recentemente, como comparar o Fiat Elba do Collor, com a riqueza multimilionária que foi produzida na família de Lula, como se este tivesse se tornado um Midas em 8 anos? Não é apenas uma diferença proporcional, é de estrutura.
A série é fraca, mas é válida, cumpre um papel de retrato cinematográfico do que foi (e está sendo) a Lava-Jato. Como entretenimento cumpre o papel de dar toques de dramaturgia a algo que acompanhamos nos jornais televisivos: a classe política acossada pelas investigações; o solidário entrecruzamento de empreiteiras, empresas públicas e o poder político; as vaidades de membros da magistratura, da procuradoria e da polícia federal; e as resistências internas e externas às investigações. Nesse limite, de fixação de cenas burlescas e da revelação de como funciona a politicalha, O Mecanismo presta um bom serviço ao país.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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