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Um condomínio, seu síndico e seus apartamentos

por Luiz Ramiro (10/04/2020)

Se Bolsonaro é um condomínio, quem é o síndico e o que significa cada um de seus apartamentos?

“O sujeito que bebe atravessa um estado alcoólico que não é ainda o pileque. Digamos que ele tenha tomado uns três uísques. Bem sei que há pessoas sem nenhuma resistência. Tenho um amigo que se embriaga até com o licor do bombom. Normalmente, porém, os três uísques não derrubam ninguém, e repito: – é comum que, com três uísques, o sujeito adquira uma aura interessantíssima”
(Nelson Rodrigues, em Brasileiro, esse imperialista, O Globo, 19.12.1972)

 

Desde o 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia do Coronavírus (Covid 19), a principal medida adotada pelos governos foi a do confinamento. Lockdown, quarentena, enclausuramento, e outros termos são usados para definir uma medida de saúde pública que ninguém sabe explicar direito como fazer. Assim como não há precedentes sobre essa restrição à circulação de pessoas fora de suas casas, na escala adotada por tantos países, tampouco há protocolos claros sobre como gestores públicos deveriam proceder com relação à recomendação da OMS. No Brasil o efeito dominó do confinamento começou pelas principais capitais, e chegou aos rincões onde nem no Carnaval as pessoas se aglomeram. Por sinal, há indícios de que o vírus já pulava por aqui em fevereiro, e mesmo sabendo do fato, governadores e prefeitos não quiseram estragar a festa.

A epígrafe de Nelson Rodrigues a este ensaio serve para uma paródia: o confinamento se tornou uma embriaguez, sem ressaca. Quando algum incômodo começa a surgir, logo medidas são tomadas, uma enxurrada de notícias de pânico criam um alarde nas TVs, redes sociais e noticiários da internet, e o público em suas casas recebe nova dose de confinamento, para ninguém sair do transe. Muitos já estão tão acostumados que não querem outra coisa.

É verdade que nem todos podem apreciar esse luxo. Vários presidiários foram logo lançados às ruas, privados dessa embriaguez. Já entre os mais pobres, a impossibilidade de se sentirem extasiados com o confinamento se deve a outros motivos: emprego, sobrevivência e uma impossibilidade material. “Matar um leão por dia” não existe se não há leão na rua. Sem circulação de gente não há comércio e muitos serviços quebram, é a falência.

Outro fato evidente é que a garrafa de pinga que embebeda a malta da população é consumida na birosca, na calçada, na rua. Não há como apreciar o perfume do confinamento num casebre de 2 cômodos para 5 ou 6 pessoas. Foi este o relato que ouvi do seu Cuíca, pinguço das ruas de São Gonçalo (RJ), que desprezando o coronavírus andava sem camisa, batendo de porta em porta oferecendo seus serviços, no alto dos seus mais de 60 anos. Para se proteger, esse brasileiro se mantinha firme com uns tragos de caninha, em jejum.

Espanta a falta de espanto das pessoas com o confinamento. Há cenas que chocam e circulam nas redes sociais. Uma senhora foi presa em Goiás por trabalhar nas ruas vendendo alguma coisa; duas moças foram detidas por correrem no calçadão em Niterói; a esposa de um amigo quase foi presa em Copacabana porque levava a filhinha a um breve banho de mar. É certo que os profissionais de segurança pública cumprem ordens, mas no que resta de alguma clarividência é chocante o paradoxo: num país cheio de bandidos, os quais cotidianamente fazem troça das autoridades, não se promove constrangimentos à altura do que vem sofrendo o cidadão comum. É uma leitura que pode parecer reducionista, mas é sensata: policial mal sobe morro regularmente para humilhar e devastar o tráfico, mas é orientado a bater em quem fura o confinamento – o qual nem se sabe se é realmente bom, a competência de quem a determinou é precária, assim como as infrações constitucionais são gritantes. Ainda assim, é provável que isso tudo passe em branco, fique por isso mesmo, já que a opinião pública está de pileque, com o medo de algo ainda pior.

Como em tantos eventos da história humana, a melhor explicação da realidade não parece vir dos sociólogos, politólogos, e muito menos dos médicos e biólogos. A sensatez é produto dos que não estão confinados – porque não podem, e, da velha e boa literatura, que nos consola nesses momentos. De um lado, o lance de percepção sobre a vida como ela é. Depois de comer um pastel na Tijuca, um amigo manda um áudio: “(…) resumindo, quem ainda quer a quarentena? Funcionário público, a esquerda – o que dá quase a mesma coisa -, e, os que votaram no Amoedo (…)”. Salvo exceções, é isso mesmo. Da parte da literatura, além dessas brincadeiras que podemos fazer com gênios da crônica brasileira, uma boa remissão a ser feita a esse apelo social dos sanitaristas – que estão muito mais confusos do que os políticos – é o conto de Machado de Assis, O Alienista. Em alguns meses, no final desta nossa história, saberemos se haverá semelhança com aquela estória.

O confinamento político

A crise mundial provocada pelo Covid 19 evidencia um verdadeiro tiroteio de informações, provocações, e medidas governamentais. Em meio às preocupações com a saúde pública, surge uma sorte de conflito por hegemonia, guerra de informações e até mobilizações de forças armadas de alguns países. Trata-se do que podemos descrever como uma guerra bio-ideológica. Na pós-modernidade, marcada pela pós-verdade, vale a força do apelo, a matéria com o melhor título, a lacração mais impactante do Twitter. Na guerra bio-ideológica os modos de controle sobre pessoas se desenvolvem sob um argumento sanitário ainda mambembe e mal explicado, mas muito bem calcado e repetido ideologicamente. A comunidade científica ainda não bateu o martelo sobre a eficácia da quarentena, sobretudo, que ela deveria ser aplicada indiscriminadamente. E mesmo que o tivesse feito, o que parece ter mais efeito nesse conflito é o reino da confusão. Talvez somente a partir de 2021 é que poderemos afirmar com maior precisão sobre os erros e acertos no enfrentamento do vírus. E, se a questão realmente era o vírus.

Em meio a isso tudo entramos na nossa cozinha. Como politicamente o Brasil tem se comportado diante disso? O que as autoridades têm feito? Especialmente, o que o governo central, a União fez e está fazendo?

O número de casos de pessoas contaminadas, e, acima de tudo, o número de mortos não chegou nem perto das piores projeções. Uma delas apontava que mais de 5,5 mil pessoas morreriam no Brasil de Covid 19 até 06 de abril de 2020. Ainda assim, não se trata apenas de uma “gripezinha”, como reafirmava o presidente Jair Bolsonaro. Quiçá menos por conta da própria doença, e mais porque o coronavírus se tornou um problemão pelos efeitos políticos e econômicos que causou, tendo evidenciado uma crise de poder no Brasil.

Diferente do confinamento por conta da doença, a situação política nos coloca dentro de um labirinto sem saída. Há ao menos três razões para esse impasse.

Primeiro, a esquerda está perdida. No caso brasileiro, assim como no argentino e norte-americano, algo que supostamente fazia parte do reduto reservado aos progressistas, já não é nem mesmo objeto de defesa. Marc Crépon escreveu em La gauche c’est quando? (Équateurs, 2015) que uma das duas chances de renovação da esquerda no século XXI estava na refutação de uma ordem moral conservadora e na defesa das liberdades contra o tema da vigilância securitária. Porém, no fenômeno da pandemia do coronavírus quem justamente se tornou mais careta e pródigo em acolher um discurso alarmista foi a esquerda – ao menos nos três países mencionados. A pauta do confinamento foi abraçada principalmente pelos líderes socialistas e sociais-democratas – de presidentes (Argentina) a micro-prefeitos no Brasil, cada um na sua proporção mimetizava práticas dignas de um líder chinês, sob a batuta do Partido Comunista. A ideia de resistir à opressão das câmeras de vigilância e dos aparatos de repressão foi substituída pelos elogios às medidas mais rígidas de controle e cerceamento à liberdade fundamental do ir e vir. Tudo em nome da regulação sanitária.

A esquerda ainda deixou de ser criativa. Acata a ordem dos mesmos agentes e instituições da chamada “Síndrome da Fadiga Democrática” – resultante da democracia representativa, cujas estruturas e rituais se arrastam em uma decadência, como demonstrou David Van Reybrouck em Against Elections. The Case for Democracy (The Bodley Head, 2016). Desde que os movimentos alternativos, como “Indignados” na Espanha, passaram a perceber que o modelo catapultou outros atores “alternativamente indesejados”, como grupos de direita, logo a esquerda entrou num impasse, entre a setorização das lutas em minorias cada vez mais atomizadas, em guetos, ou, o resgate de instâncias tradicionais de partidos e chefes de outrora. Tudo pode ser válido contra o “populismo de direita”.

Curiosamente, dentro da própria abertura democrática, que significa a inserção de pessoas numa arena de debate, decisões e aprovações institucionais, foi esse populismo “indesejado” que se tornou mais irreverente e capaz de quebrar estruturas, ao passo que paradoxalmente os progressistas se tornaram conservadores, no sentido de se preocuparem com a defesa de determinada ordem política. Isso é evidente no Brasil quando observamos intelectuais e políticos defendendo, por exemplo, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como fiel paladino das “instituições nacionais”.

Nessa questão, aliás, reside um segundo motivo para explicar essa nossa paralisia política: o conjunto formado por alguns caciques e instituições formais segue numa sintonia diferente das mudanças geradas pelas eleições de 2018. Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Governadores, Prefeitos, Partidos, imprensa, e as principais lideranças políticas do país se encontram numa linguagem, postura e estratégia que fazem parte de um desencontro, tendo em vista àquele que recebeu uma chancela representativa unificada, o Presidente da República. As instituições guardam um espírito de preservação que bate de frente com uma perspectiva demolidora do outro lado. Quem entra, se adapta. Mas quem não se acomoda, se incomoda.

Porém, o problema de Bolsonaro não se resume ao desencontro com os demais políticos e suas instituições, mas justamente envolve a própria ausência de uma nova plataforma de ação. Alçado por uma imensa popularidade, o Presidente não se mostrou capaz, até agora, de aproveitar as chances que lhe aparecem de exercer uma preponderância centralizada. Qualquer detentor de poder sonharia com uma excepcionalidade para exercer poder. Contudo, Bolsonaro parece não ter poder, e às vezes tendemos a pensar que nesse fenômeno tem algo de proposital. Primeiro, não se apresentou até agora como um líder, um “Bonaparte” que se arvoraria para além das circunstâncias e assentaria o terreno da revolução conservadora que o alçou ao poder. Segundo, ainda não foi capaz de criar um partido que organizasse a nova situação política, e mesmo tendo tentado, começou tarde e já se tem notícias de como o Aliança pelo Brasil é dominado por burocratas – ao invés de uma agregação sob o signo da confiança. Terceiro, não superou o ridículo, pois ainda não estabilizou o sistema político, nem que fosse criando um novo.

Mas mesmo com tudo isso, sem ser um estadista, um grande chefe e menos ainda um líder, Bolsonaro é dono de uma honestidade sem paralelo. Ele mesmo admite não ser o melhor, mas o que melhor cabia à nossa crise; o mais honesto e o que permitiria a outros que se juntasse a ele realizar as transformações para o Brasil.

O governo Bolsonaro é um condomínio

“Em tempos ordinários, Senhor, bastam providências ordinárias; mas nas extraordinárias e sobremaneira críticas circunstâncias em que se acha Portugal, a Europa, o mundo inteiro, são precisas grandes e extraordinárias providências, para sustentar a dignidade do trono e manter o sossego e felicidade dos povos”
(Silvestre Pinheiro Ferreira, filósofo e político português, foi conselheiro de d. João VI).

 

Embora paire uma paranoia na presidência – de certo modo justificável pela facada que sofreu em campanha no ano de 2018, mas um problema para criar relações de confiança – seu governo é produto de um amálgama de tendências de centro-direita. A aposta de Bolsonaro no pragmatismo foi uma tentativa de acomodar essas várias posições que se encontram em seu governo. São diversas revoluções em potencial, por mais atabalhoada ou até inexistente que seja a montagem desse guarda-chuva.

O problema é que nesse caminho surgiu um evento aparentemente inesperado. A crise do coronavírus gerou uma pane na visão pragmática das reformas, empreendida por Bolsonaro. O governo até se antecipou, decretando em 4 de fevereiro de 2020 estado de emergência em saúde pública, e definindo o ente federal como o centro de coordenação das ações. Na ocasião também enviou ao Legislativo um projeto de lei para uma quarentena no país, restringindo circulação e flexibilizando medidas governamentais. O problema é que isso não foi o bastante, muito menos para se alçar sobre estados e municípios.

Momento de grande aglomeração e circulação de pessoas pelo país, o Carnaval não foi observado como problema pelos gestores locais, com relação à proliferação do vírus, mas provavelmente foi ali que tudo começou. Nas semanas seguintes os governadores passaram a tomar a dianteira no sentido de decretar quarentenas mais rígidas, interrompendo até mesmo o comércio e cultos religiosos. Em resposta, o governo federal procurava aliar medidas contra a doença e numa tentativa de manter a economia funcionando. É possível que uma queda de braço entre o Ministério da Saúde e da Economia tivesse feito parte da confusão interna do governo, que se expressa na própria comunicação pessoal do Presidente.

Nesse afinco de manter o funcionamento da vida cotidiana, Jair Bolsonaro tratou o surto como “gripezinha”, apelando que o país não podia parar. A expressão era fruto de uma luta inglória para que o excepcional não acontecesse. Mas eis que o mundo realmente parou. No Brasil não foi diferente, e à revelia do ente federal, governadores e prefeitos – protegidos pelo STF, passaram a exercer uma verdadeira ditadura no país, com direito a estado de sítio à margem do texto constitucional.

Bolsonaro poderá estar certo em termos de saúde pública, observando que o surto tem se mostrado bem menor do que o alardeado na mídia e por muitos inimigos políticos. Entretanto, a crise de fato veio.

É nesse quadro que esperava-se a irreverência do Executivo diante de uma janela de oportunidades que foi escancarada. Era a chance de fazer do “limão uma limonada”. Ainda que a crise não fosse médica, era válida a mobilização em termos de propaganda política e ações que minimamente respondessem a escalada de críticas da imprensa. Dentro dos limites administrativos o governo federal poderia desde o início: erguer hospitais de campanha; ampliar leitos com respiradores; usar áreas públicas para ações de conscientização e serviços públicos de saúde; fazer o Presidente rodar o país; deixar militares nas ruas para testagem geral a saber dos infectados, e então liberar a circulação nas cidades; e, outras medidas que dessem demonstrações de unidade e liderança nacional.

Nesse ínterim seria possível pensar em arranjos com o Legislativo para a aceleração das reformas. Era o caso de tomar proveito do evento de “guerra” para resolver até mesmo outros problemas gravíssimos do país, como o domínio das organizações criminosas que controlam prisões pelo país afora (especialmente o PCC), assim como importantes e amplos espaços territoriais e negociais no Rio de Janeiro (milícias e traficantes).

Contudo, pouco disso foi ou tem sido feito. Por algum tempo o governo federal fez da inércia um método. Quando os números da doença cresceram, a União correu atrás do prejuízo ante a ação dos governadores e prefeitos que resolveram fechar estados e municípios. Mas a maior demonstração de força veio mesmo quando o governo federal tomou à frente com medidas econômicas a empresas e pessoas físicas. O último alento, e que parece ser bem sucedido, é referente ao medicamento que ajuda no tratamento da doença. Enquanto isso o discurso da abertura econômica era feito de forma confusa, desencontrada entre o próprio Presidente e o Ministro da Saúde.

E aqui figura a questão, se Bolsonaro é um condomínio, quem é o síndico e o que significa cada um de seus apartamentos?

O fato de Bolsonaro não conseguir expressar poder, embora seja bastante popular e mesmo carismático, significa que ele próprio é vítima desse confinamento político. O ex-militar que foi deputado federal por 28 anos chegou como azarão às eleições de 2018, veio, viu e venceu. Prometeu ser o intermediário de uma salvação nacional, um verdadeiro aglutinador de demandas no contraste com os anos anteriores de domínio socialdemocrata.

Bolsonaro é tratado por muitos analistas como um presidente fraco, variavelmente no limite, à beira de ser posto para fora. Alguns acham que é um novo Jânio Quadros, outros que seria um novo Collor, ou até um João Goulart de direita. É o presidente que num dia de forma espontânea afirma ter a caneta na mão para fazer o que quer, e,  no dia seguinte, é constrangido a fazer o que não quer – lhe retiram a caneta.

Mas é provável que o método que se pode depreender do governo Bolsonaro seja realmente esse esforço aglutinador, e nesse sentido estar na corda-bamba faz parte do risco. Sendo um condomínio, o governo Bolsonaro requer para sua manutenção e condução um síndico. Para os que acreditam que essa tarefa é cumprida pelo mentor da campanha eleitoral de 2018, o filho Carlos Bolsonaro, vale a frase: “O presidente é o vereador”. Há indícios para pensarmos dessa maneira dada a penetração que o vereador do Rio de Janeiro tem sobre o gabinete presidencial, especialmente em sua exposição nas redes sociais, de forma dissonante às instituições estabelecidas e as expectativas das trocas políticas.

Mas como estamos tratando de crise de poder, e tem muito peso a capacidade última de exercer autoridade, os militares merecem consideração. Os assessores e as companhias mais reluzentes de Bolsonaro são de militares. Quem tutela a Presidência pode ser o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno; pode ser o atual ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos; pode ser o ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto; pode ser o vice-presidente, general Hamilton Mourão; ou, todos eles numa espécie de conluio ou assembleia, como síndicos do governo.

Quanto aos apartamentos, certamente têm influência sobre a administração do prédio. Ainda que relativamente autônomos, estão assentados sobre o mesmo terreno. Por isso não parece ser tão simples se desfazer do condomínio e construir outro. Uma queda de Bolsonaro, que chegou a parecer clara na segunda semana de crise do coronavírus, em março de 2020, foi ficando distante pela exposição dos grupos que formam o conjunto.

O principal motivo é que justamente nenhum dos ocupantes desses apartamentos é capaz de angariar isoladamente o mesmo apelo público que o Presidente. Os próprios militares, não existem enquanto bloco uniforme, a não ser alguma unidade que a Escola Superior de Guerra (ESG) ou o Clube Militar possa oferecer. Ainda assim, há generais e suas diversas cabeças, com seus subordinados e suas fidelidades militares. É claro que existe uma instituição, ou mesmo um “partido fardado”, como ensinou Oliveiros Ferreira, mas há diferenças importantes no oficialato. Impera a postura ciosa quanto ao momento político e o reconhecimento de que sem respaldo qualquer mobilização é muito arriscada. O historiador José Honório Rodrigues, em prefácio a “Discursos Parlamentares”, de Carlos Lacerda, definiu o desafio da inserção dos militares na política com a seguinte frase: “Nenhum General brasileiro ousaria antes assumir o Poder desprezando as fontes originárias da soberania popular”, pois mesmo o bruxo de 1964, o general Golbery do Couto e Silva, sempre foi muito cioso das circunstâncias democráticas em termos de representatividade.

Ao longo dessa crise envolvendo o coronavírus ficou ainda mais claro como os ministros no governo Bolsonaro operam menos como auxiliares, e mais como agentes autônomos para desenvolvimento de agendas próprias. O Presidente tem dificuldade de combinar essas agendas com a sua forma de se expressar e pensar. É algo sui generis, e, mais uma vez, fruto da liberdade que o “condomínio” oferece aos condôminos.

A ideia é que nesse sistema haja uma revolução que saia da porta de cada apartamento, capaz de fortalecer o próprio monumento em contínua construção. Mesmo com todo vai-e-vem e “caneladas”, os méritos recairão também sobre o Presidente. Mas causa espécie como Bolsonaro age de forma contrária ao modelo presidencial que se afirmou no Brasil com Floriano Peixoto, de uma ação superposta às instituições, pretendendo  substituir e ir além do próprio Imperador. Diferentemente, com Bolsonaro, seja por sua incapacidade, seja porque realmente seu propósito é manter a unidade de propostas diferentes, não há essa condução imperial do poder – ainda que isso esteja na natureza política do Brasil.

Há pelo menos duas coberturas marcantes nesse condomínio: o apartamento Paulo Guedes, da revolução liberal, e o apartamento Sérgio Moro, da revolução lavajateira. Ambos podem estar promovendo uma revolução casada no país, de abalo nas estruturas de desigualdade. Pelo viés econômico, refere-se ao acesso dos mais pobres ao mercado, criando maior sistema de informação, concorrência e circulação de crédito (com juros baixos), além de oportunidade de negócios – com menos dependência do ente estatal e maior fluidez. No plano da justiça, uma consciência de igualdade que supere a “carteirada”, aquela situação descrita por Roberto Damatta do “você sabem com quem está falando?”. A Lava-jato criou um marco no Brasil, do incômodo com a impunidade, e de que qualquer um pode ser preso, mesmo os criminosos de colarinho branco, políticos e ricaços. Vale lembrar que a personagem símbolo desse movimento está no governo.

Há outros espaços ocupados nesse condomínio: evangélicos, representantes do agribusiness, os próprios militares que não estão apenas ao redor do Presidente, e, inclusive parte do “centrão”. Mas uma ala em especial chama a atenção, a reservada às influências do filósofo Olavo de Carvalho. Trata-se do cuidado sobre áreas centrais, cujas vigas mestras atravessam todo o edifício, em especial a Educação e a Cultura. São apartamentos cujo aluguel ainda não foi quitado. Ao mesmo tempo que esses pilares podem oferecer a todo conjunto um sentido, um plano, um projeto de restauração do Brasil, por tocarem em áreas estratégicas à nação, por outro lado, o modo como são constantemente chacoalhados podem gerar levar ao desmonte de toda estrutura, sem ninguém se dar conta. A “bomba” do discurso de Roberto Alvim, ex-Secretário de Cultura, foi algo assim. A comparação é com aquele prédio que desabou no centro do Rio de Janeiro há alguns anos, quando um dos inquilinos derrubou uma viga para abrir uma sala, e terminou por provocar a derrubada de todo o edifício.

Luiz Ramiro

Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.

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