O rosto e a máscara: a distância física e a distância social

por Amálgama (26/04/2021)

Nossas máscaras profiláticas atualmente são uma tentativa de afastar a morte e encobrir nossa fragilidade.

por Melania Moscoso Pérez [1]
tradução de Sâmara Costa [2]

Em um recente artigo de opinião The New York Times, a retratista Riva Lehrer  lamentava que a pandemia havia retirado a sua matéria-prima de trabalho. O texto, cujo eloquente título é “O vírus me tirou teu rosto”, relata de forma amena como as máscaras, cujo uso é defendido a todo custo, roubaram-lhe a variedade de caras que transitam pelas ruas de Chicago.

Habituada a desenhar as expressões faciais das pessoas, disse sentir um “apetite insaciável de caras”, que desde o início da pandemia aparecem veladas por máscaras de várias cores e estampas. O artigo contém uma frase de uma ambiguidade dificilmente traduzível: “I  think of the human face as a theater that performs the actor inside” (“Penso o rosto humano como num teatro em que interpreta o ator que está dentro”). Nela se misturam os sentidos da palavra teatro, e também o espaço em que se encena uma representação teatral e a própria ação de representar uma peça. Nesta frase mencionada o rosto torna-se representação teatral e palco em que ocorre. A metonímia recai nesta ocasião na palavra teatro, mas remete a outra anterior, que na Grécia Antiga nomeava significados de máscara e “cara” na palavra “prosopon”, indistinção que se repetiria na palavra romana “pessoa”.

Culturas de honra e de vergonha

Esta concepção teatral do rosto é  como lembra Belén Altuna em seu excelente livro Uma história moral do Rosto, própria das culturas de honra e vergonha, nas que predominam as relações cara a cara; civilizações  embasadas na proximidade social.

Como resultado da filosofia estoica e da teologia cristã, o conceito de pessoa foi adquirindo qualidades espirituais que reconhecemos hoje como próprias de uma cultura que concede valor a interioridade da consciência. Essa transformação é descrita em um texto clássico de Marcel Mauss que tem por título Sobre uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa e a noção do “eu” na Sociologia e Antropologia.

Marcel Mauss aponta que entre os Zuñies e os Kwuakiutl, assim como nos aborígenes australianos, a máscara representa bem o papel que o indivíduo desempenha nos dramas sagrados, bem como o pertencimento a um determinado clã. Quem a usa aparece investido das qualidades dos ancestrais estaticamente incorporados nele, ou das propriedades mágicas dos animais totémicos que representavam os clãs.

Em todo o caso, é um procedimento, o de colocar uma máscara, através do qual as comunidades marcam com os seus elementos distintivos os indivíduos que as integram. O sujeito caracterizado com os atributos de seu clã incorpora as qualidades de seus ancestrais míticos e familiares, de modo que a máscara o identifica como pertencente a ele, perante o grupo social mais amplo.

De personagem para pessoa  

Por meio da máscara, o participante num ritual dramático ou numa representação teatral da cultura antiga tornava-se um personagem, havia uma cristalização das expectativas coletivas sobre quem as usava. A eficácia da máscara consiste em atribuir a quem a usa uma determinada função social e em esconder o rosto. Com razão Elías Canetti apontou que com a máscara se instaura uma perigosa separação entre o que o aparece e o que se oculta, que ao próprio tempo fascina e impõe uma distância: “eu sou o que vês – diz a máscara – e tudo o que temes detrás”.

A pessoa, lembra Marcel Mauss, só se tornou “sujeito” de direito na Roma Antiga, de modo que incorpora a esta categoria toda a classe de homens, embora haja uma série de distinções hierárquicas entre os mesmos.

Se o personagem é uma criação para o exterior, destinada a gerar distância entre quem leva a máscara e o espectador, a pessoa reveste-se do valor da interioridade da consciência, para além ou acima dos diferentes papéis atribuídos a uma dada ordem social. A pessoa, por outro lado, é uma construção para dentro, pois como aponta Belén ex Altuna, citando David Le Breton, “os olhos do outro tocam o rosto de forma metonímica e alcançam o sujeito em sua totalidade”.

Do rosto para a máscara

Afirma Riva Lehrer em seu artigo que usa sua voz e seu rosto para atenuar as reações das pessoas diante suas botas ortopédicas, sua lordose pronunciada e outros sinais de espinha bífida. Despida de seu escudo contra o preconceito e a ignorância, a máscara transforma seu corpo em um mero estigma, analisável apenas sobre o prisma da patologia.

As máscaras impedem que os outros nos perguntem com o olhar e são a lembrança cotidiana de que algo ruim e incomum está acontecendo em nossa sociedade, um perigo cujo nome conhecemos, mas que paira vagamente sobre nossa saúde e nossa vida. A sua superfície asséptica protege nossa saúde e a dos que nos rodeiam. A máscara é uma barreira física que previne o contágio da enfermidade pela presença física.

Diferente das máscaras rituais evocavam o pertencimento de quem as usava ao mundo dos seus antepassados, a máscara hoje supõe, como aponta Andrés Ortiz Osés num artigo recente, para assumirmos o controle de nossa frágil condição mortal e da condição finita e interdependente de nossas vidas. Se o mundo dos mortos aparecia nas danças dos guerreiros e rituais dos hopis e dos zuñíes, nossas máscaras profiláticas atualmente são uma tentativa de afastar a morte e encobrir nossa fragilidade.

Máscaras e ritos: as mediações e nós

As máscaras, segundo Cannetti, servem para estabelecer uma distância de quem a usa e o espectador. Não é certamente a única peça de roupa usada para estes fins, as listras, o cetro, a tiara e a coroa são outras peças que serviam para indicar a distância entre duas pessoas de distinta posição social.

Contudo, convém perguntar-se pela natureza específica da separação imposta pela máscara. A máscara nos obriga a reparar no que leva inscrito em sua superfície e por isso impede, como aponta Riva Lehrer, aceder à humanidade desnuda, o rosto.

Representação de um antepassado ou de um animal totémico, a máscara permitia canalizar as preocupações das comunidades humanas em cerimônias e rituais, como marcar a passagem do tempo ou encontrar mecanismos que tornavam socialmente toleráveis a morte e a dor. Por isso, o uso de uma máscara é um acontecimento essencialmente social que convoca ao público e o espectador.

A epidemia de Covid confronta-nos com a situação inédita de usar máscaras para nos desculpar de nossa presença no espaço social e assegurar aos demais de que não somos um perigo para sua integridade física. Abafados por um perigo certo, mas intangível, aparecemos perante os outros desprovidos do que nos torna mais reconhecíveis, o nosso rosto e nossa voz.

O sacrifício da cidadania, portanto, cria limites e distâncias em uma vida social acostumada demais à sua ausência. Quando nossa vulnerabilidade coletiva entra em cena, a distância social só poderá ser uma solução provisória; além das vacinas que façam as máscaras desnecessárias, é urgente estabelecer mediações culturais e institucionais que saibam descer e dar conta de nosso pertencimento comum ao reino dos seres vivos com os quais compartilhamos uma estada provisória e precária neste planeta.

Como Judith Butler aponta em seu último livro: o nosso corpo é dado a outras pessoas antes que possamos fazer uso dele. Portanto, a nossa fragilidade e interdependência revela-se, hoje mais do que nunca, como uma questão de Estado.

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NOTAS

[1] Melania Moscoso Pérez | Centro de Ciencias Humanas y Sociales (csic.es)

[2] Estudante de doutoramento em Filosofia – Universidade do Porto, Portugal.

Amálgama

Revista digital de atualidade e cultura.

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