por Daniel Lopes – Resenhando Human smoke no Estadão, Roberto DaMatta confidenciou o que um amigo lhe dissera: “No dia em que a verdadeira história da Europa e dos Estados Unidos for escrita, vai sair faísca.” É provável que ele se referisse à história dos Aliados na Segunda Grande Guerra Mundial. O jornalista Nicholson Baker, autor […]
por Daniel Lopes – Resenhando Human smoke no Estadão, Roberto DaMatta confidenciou o que um amigo lhe dissera: “No dia em que a verdadeira história da Europa e dos Estados Unidos for escrita, vai sair faísca.”
É provável que ele se referisse à história dos Aliados na Segunda Grande Guerra Mundial. O jornalista Nicholson Baker, autor de Human smoke, é um corajoso escritor de não-ficção (além de ficcionista). Esse seu livro mais recente é feito de recortes: trechos de reportagens de jornais e revistas, excertos de discursos e de documentos (alguns originalmente ultrasecretos) de todos os cantos do mundo, cobrem um período que vai do final da Primeira Grande Guerra até 31 de dezembro de 1941, quando, conforme lembra o autor no posfácio, a maioria das pessoas que morreram na Segunda Guerra ainda estavam vivas.
O objetivo de Baker, pacifista convicto, é mostrar as infinitas chances que se perderam de evitar a matança de 1942-45 (e também a anterior, na verdade). O pacifismo de Baker não é ingênuo. Também ele não é um revisionista irresponsável, e muito menos um negador do Holocausto judeu. Aliás, o que mais claro fica após a leitura de seu livro é como a arrogância de Churchill e o jogo duplo dos Estados Unidos colaboraram com o sofrimento dos judeus europeus nas mãos de Hitler e seus sabujos.
A esta altura do campeonato, apenas indivíduos com problema mental ou simplesmente ignorantes ainda desconhecem a barbaridade que foi o nazismo. Talvez, mesmo, pelo início da década de 40, quando o extermínio de judeus (e inválidos físicos e mentais, homossexuais, ciganos, opositores políticos etc.) deu os primeiros passos para sua escala industrial, tenha sido um dever moral a intervenção do Ocidente. Não é isso que Nicholson Baker quer negar. O que ele expõe é o apuro mundial em um cenário dominado pelo carniceiro ditador Adolf Hitler e seu Reich e o carniceiro democraticamente eleito Winston Churchill e seu Império brutal.
Como as malfeitorias de Hitler já estão devidamente expostas nos livros escolares, Baker se concentra em destruir o mito de Churchill como um humanista, um iluminado, um civilizado. Comandou bombardeios contra povos “inferiores” da Índia e da África, para que servissem de teste aos pilotos da Força Aérea Real, que logo iriam provar suas habilidades ao aterrorizar a Alemanha. Atenção: muito rapidamente Churchill deixou de lado os alvos militares e ordenou o terrorismo de Estado puro e simples – crianças, mulheres, idosos… se são alemães, que se salvem em abrigos anti-bomba, se tiverem sorte de chegar lá antes das bombas em suas cabeças. Sim, exatamente como a força aérea alemã fazia nas cidades inglesas, só que com antecedência e maiores frequência e intensidade.
Paralelo aos infinitos bombardeios a alvos civis e culturais, havia o implacável bloqueio comercial à Europa ocupada por Hitler. A Marinha britânica não permitia sequer a passagem de alimentos. A ordem era deixar alemães, tchecos, poloneses, (depois) franceses e outras nações à mingua, literalmente morrendo de fome – segundo Churchill, para que assim se revoltassem e se levantassem contra Hitler. Pouca gente sabe, por exemplo, que algumas das primeiras vítimas do Gueto de Varsóvia caíram de fome diante do bloqueio britânico. Embarcações de pacifistas e voluntários vindos dos Estados Unidos com alimentos, o premiê britânico afirmou, não poderiam furar o bloqueio de maneira alguma. Primeiro as prioridades.
Foi o bloqueio dos mares pela Inglaterra que não permitiu aos nazistas levar a cabo o plano inicial de deportar judeus para Madagascar. Apenas após várias tentativas frustradas dos nazistas de conseguirem uma trégua com a Inglaterra que os permitissem expulsar os judeus dos territórios ocupados é que entraram em atividade a todo vapor os fornos de Auschwitz e similares.
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Não que Churchill visse a má sorte dos judeus com lágrimas nos olhos, claro. A guerra é um jogo de interesses, apenas. Aliás, ele não punha lágrimas nos olhos nem em vista das cidades inglesas bombardeadas pela Luftwaffe. Esses ingleses mortos, ele raciocinava, ao menos poderiam tocar o coração dos estadunidenses e forçá-los a entrar na guerra.
Em 1937, com o nazismo de vento em popa na Alemanha – mas ainda não prejudicando além da conta os interesses do império inglês –, Churchill escrevia em seu Great contemporaries que Trotski, exilado no México, representava uma ameaça maior que Hitler. “(…) em tempos mais felizes, poderemos chegar a ver Hitler como uma pessoa mais gentil”, ele anotou. Já Trotski, “ele foi um judeu. Ele ainda era um judeu. Nada poderia mudar isso”. Seu capítulo sobre o exilado russo chamava-se “Leon Trotsky, Alias Bronstein”.
Em novembro de 1938, um comunicado de Churchill à imprensa dizia: “Eu sempre disse que se a Grã-Bretanha fosse derrotada numa guerra, esperaria que pudéssemos encontrar um Hitler para nos colocar de volta à nossa posição entre as nações.”
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De posse dessas informações, não surpreende que, quando a limpeza étnica nazista começou de vez na Europa, Churchill viu os judeus apenas como mais uma peça no jogo de interesses entre a aspirante a império Alemanha e o (em breve decadente) império Britânico.
Por isso, os muitos milhares de judeus que tiveram a oportunidade de migrar para áreas do império britânico e para as Américas, se viram diante de portas fechadas. Isso seria satisfazer os anseios de Hitler e, no jogo de interesses, nem milhões de vidas salvas pagariam o preço.
Em 25 de novembro de 1940, Gaston Henry-Haye, embaixador da França nos EUA, encaminhou ao Secretário de Estado Cordell Hull um pedido de ajuda. Milhares de “israelitas” expulsos de cidades alemãs para regiões francesas ainda livres de Hitler estavam enfrentando escassez de alimento. Não poderiam alguns desses refugiados conseguir vistas para as Américas, onde poderiam ter uma vida normal?, perguntava Gaston. Várias semanas após, o Departamento de Estado respondeu ao embaixador francês que “As leis dos Estados Unidos em relação à imigração são bastante explícitas, e não permitem qualquer liberalização adicional”.
A carta do embaixador francês havia antes caído nas mãos de Roosevelt (àquela altura já desesperado por algum evento que tornasse natural aos olhos da opinião pública de seu país a entrada da nação na guerra, principalmente para destruir a capacidade japonesa de ser um fator de peso no Oriente – nem que fosse preciso destruir com bombas incendiárias as cidades japonesas feitas de papel e madeira). O presidente
estadunidense, dali a pouco líder do mundo civilizado contra o nazismo e o comunismo, fez saber a seu Secretário de Estado que,
Se fossemos ceder a essa pressão, os alemães encaminhariam aos franceses os judeus remanescentes na Alemanha e nos territórios ocupados, centenas de milhares de pessoas, na expectativa de que os franceses, por sua vez, persuadissem este país e outros países americanos a recebê-los.
Não, não valeria a pena…
Quando o ano de 1942 vai começar, Human smoke acaba. Geralmente, a história da Segunda Guerra nos é contada a partir daí.
::: Human smoke: The beginnings of World War II, the end of civilization :::
::: Nicholson Baker ::: Simon & Schuster, 2009, 576 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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