por Daniel Lopes – Estamos numa área marcadamente judaica da Porto Alegre de ano não especificado, mas provavelmente não mais antigo que 1980. Daniel Lipman, que narra momentos de sua infância, é (ou era) um judeu exemplar, pelo menos externamente: tendo perdido os pais num acidente, é criado por uma tia e, segundo manda a […]
por Daniel Lopes – Estamos numa área marcadamente judaica da Porto Alegre de ano não especificado, mas provavelmente não mais antigo que 1980. Daniel Lipman, que narra momentos de sua infância, é (ou era) um judeu exemplar, pelo menos externamente: tendo perdido os pais num acidente, é criado por uma tia e, segundo manda a tradição para filhos sem pai, tem que “se tornar o homem da casa” mais cedo, fazendo assim seu Bar Mitzvá aos 12, ao invés de aos 13 anos, como é a regra. Como o apartamento da tia fica num condomínio de judeus e, claro, bem próximo à sinagoga, o garoto órfão logo se vê como membro de uma “outra [família] muito maior”.
Desse modo, a maioria das pistas que o porto-alegrense Rafael Bán Jacobsen nos dá nas primeiras páginas de Uma leve simetria apontam para um romance de costumes, ou um romance sociológico. Mas não. Daniel sente-se atraído por Pedro Gleick, um menino da sua idade, do mesmo bairro, da mesma escola e da mesma religião. Os ambientes que os personagens frequentam são dominados pelo conservadorismo que vê a condenação do homossexualismo como um código inalienável.
Estamos, portanto, diante de um romance que abre o campo para a exploração dos efeitos psicológicos de regras sociais inflexíveis. Em tal exploração, Jacobsen é apenas parcialmente bem sucedido, por motivos que apontarei mais adiante.
Pedro Gleick também tem pai ausente, mas, no seu caso, não se sabe se o genitor, Samuel Gleick, está morto ou apenas desaparecido, após fugir de casa – por motivos que escapam a Pedro como ao leitor, e talvez até a Martha, mãe de Pedro. Enquanto Daniel é circunspecto, Pedro é mais galhofeiro e nada ortodoxo na lida com as tradições judaicas. Sua conservadora mãe, aspirante à presidência do conselho da sinagoga, lamenta diante de Daniel, por exemplo, os ingredientes que o filho põe no prato na hora do almoço – arroz, salada e batata frita. “Não gosto dessas comidas diferentes”, justifica-se Pedro. Após esse almoço, mal a mãe sai de casa, Pedro, esse menino de nome tão católico (!), a desobedece e vai direto para a piscina, correndo na frente de Daniel e adaptando uma piada bem católica: “O último a chegar é a mulher do rabino”. Na festa de ano-novo, um pedaço da maçã abençoada no prato de Pedro “saltou do prato e resvalou até o chão”. Durante o Iom Kipur, o dia do perdão judaico, ele quebra a regra do jejum e come um sanduíche na rua, longe dos olhos da mãe (é surpreendido por Daniel e dá de ombros – ou melhor, dá a língua).
Mas deve ser dito que Daniel, inicialmente o pequeno judeu-modelo aos olhos de Martha e da comunidade, certa noite entra furtivamente numa igreja católica e, ao ver as pessoas se ajoelhando diante de um homem pregado na cruz, pensa: “Deve ser tão bom ter um Deus que se pode ver.”
A paixão de Daniel não é reconhecida por Pedro, e muito menos retribuída. Por medo da reação (de Pedro, da comunidade), o narrador guarda seus sentimentos; prende seus sentimentos – que acabam por lhe perturbar cada vez mais os dias, as horas. Em um momento, o sentimento arrisca transformar-se em masoquismo, um masoquismo rudimentar, primitivo, mas é o que ele pode ter, o que lhe é permitido pelas circunstâncias:
(…) Pedro se aproximou de mim na saída do colégio e, dando um tapa desconhecedor da própria força em minhas costas, disse: festa hoje à noite lá em casa, vê se aparece – e desceu a rua correndo, deixando-me ali com o ardor do impacto em minha pele. Queria ter visto a marca dos dedos, contemplado sua vermelhidão de posse, mas, quando entrei em casa, o espelho decepcionou-me ao exibir apenas a palidez inexpressiva de minhas espáduas.
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Ainda que Uma leve simetria guarde um tanto de fábula (veja, por exemplo, a maneira centrada com que as personagens-crianças por vezes se comunicam), há em não raros momentos um sentimentalismo e cenas forçadas, que acabam por chamar mais a atenção do que sua filosofia. A cena em que Daniel desmaia na sinagoga – quando, durante a cerimônia do Iom Kipur, lê, a pedido do rabino, algumas passagens do Levítico, inclusive a que diz “Não te deitarás com um homem como se faz com mulher: é uma abominação” – é, em uma palavra, dispensável. Por sua vez, as passagens de lirismo exagerado nos levam inevitavelmente a pensar se não teria sido melhor uma narrativa em terceira pessoa. O Daniel que está narrando é um Daniel claramente a pouquíssima distância no tempo dos fatos contados. Ele poderia fazê-lo de uma maneira em que palavras e imagens transbordassem menos, mas, para não correr o risco da inverosimilidade, um narrador em terceira pessoa resolveria o problema.
O que ocorre é que a situação em Uma leve simetria é dramática. Isso é inegável. O amor não correspondido. O amor não revelado. Mas então, uma situação dramática nem sempre fica melhor na literatura se aparece contada de forma dramática, como já nos ensinaram Franz Kafka e Graciliano Ramos. Se o romance de Jacobsen, que traz à tona tema muito pouco abordado na literatura brasileira contemporânea (homossexualismo e opressão), tivesse saído com mais sutileza, seria difícil não elencá-lo como candidato a livro do ano.
Há ainda um sério deslize na obra, não na forma, mas no enredo. Com metade do caminho percorrido, Daniel enfim já tendo revelado o que sente para o amigo — o que lhe assustou e afastou –, decide ressuscitar uma idéia que dera a Pedro páginas atrás, a saber, ajudar a descobrir o paradeiro de Samuel, pai de Pedro: “(…) precisava saber notícias de Samuel Gleick, o fazedor de enigmas. Tinha de me arriscar nessa busca – pelo Pedro e por mim também; no caminho do mistério eu me sentiria mais próximo dele”.
Pois bem. Essa vereda, com potencial para transformar a cara do romance e fazer uma revolução no enredo, não é percorrida e o pobre Samuel é abandonado – o fato de ele ter deixado um Livro dos Salmos com o filho antes de sair de casa, livro este que Pedro daria para Daniel, não é nada se comparado às expectativas antes criadas no leitor.
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Neste que é o terceiro livro do ainda jovem Rafael Bán Jacobsen – os anteriores são Tempos & Costumes (Alcance, 1999) e Solenar (Movimento, 2005) – o sagrado está intrinsecamente ligado ao erótico – e, nas páginas finais, o erótico se confunde com o sacrílego. Logo na sua abertura, presenciamos uma confusão proposital de símbolos, quando o narrador observa as “pernas fortes” de Pedro cruzando o “tapete vermelho”, “pernas que eu tão devotamente contemplava quando corrias” (grifo meu), e seus “dedos lentos se esforçando para ajeitar a quipá”.
Em um ponto, Daniel fala para Pedro (quer dizer fala de si para si, como se para Pedro): “Teus olhos são estrelas”; noutro, garante que, ao observar Pedro dormindo na meia-luz altas horas da noite, “havia um halo sobrenatural na pele clara e no movimento perfeitamente compassado do seu peito ao respirar”. E, quando toda a comunidade já sabe de seus sentimentos por Pedro e o trata como um pária, Daniel nos brinda com essas palavras magistrais, que evocam o trágico passado judaico: “não havia mais lugar ou amizade para mim naquele pequeno mundo que, até então, me amparava. Entre todos que vagavam no deserto, sem esteio ou certezas, eu era o andarilho mais disperso, errante e solitário”.
Não é só.
Cada capítulo abre com um versículo dos Salmos e encerra, com letras em itálico, com parte das aventuras dos tempos bíblicos de Davi e Jonatã, que percorrem todo o romance e se desenvolvem em concatenação com o enredo principal. Ora, exatamente para que houvesse essa concatenação, Jacobsen recriou a história de Davi e Jonatã com um forte viés homoerótico. A narração é em terceira pessoa, com linguagem formalíssima, emulando o estilo da Bíblia.
O Rei, pai de Jonatã, abriga o bravo soldado Davi no castelo, para que ele combata os inimigos a seu mando. Logo, um sentimento profundo surge entre Davi e o filho do Rei. Quando Davi vai partir para a difícil batalha contra o Lutador, vai com o intuito de vencê-la não apenas pelo Rei, mas principalmente por Jonatã, que quando da partida lhe dissera: “Não é apenas meu pai que necessita de ti em nossa casa; eu também imploro que retornes, pois preciso muito mais do que os acordes de tua lira.”
Mas, como Daniel na estória principal, Davi teme o que sente. Lemos: “Se [Davi] era bravo e muitos ursos e leões abatera, por que coragem lhe faltava para abater o medo de sentir o que sentia?” Também Jonatã: “Temo que dedos acusadores me apontem (…)”. O que se parece com algo que Daniel lembra mais à frente: “Onde quer que eu fosse, sentia olhares fixos em mim, escutava sussurros e, de cada palavra que deles conseguia capturar, eu, de imediato, forjava uma frase inteira – assustadora.”
Perturba Davi, sem dúvida, a perspectiva das consequências que podem se abater sobre aquele que pratica “love in a dark time” – para usar o título de um livro do irlandês Colm Tóibín sobre a vida e a obra de escritores e escritoras homossexuais (Amor em tempos sombrios é o título da versão brasileira). Só que o dark time que Tóibín explora é o século 20, o mesmo em que se desenvolve o relato de Daniel. Na história de Jonatã e Davi recriada por Jacobsen, o Rei quer matar Davi por inveja de suas qualidades militares e do apoio que cada vez mais angaria na corte, e não por conta de seu envolvimento amoroso com o filho. Já na Porto Alegre de Daniel e Pedro, há um Rei verdadeiramente intolerante com “desvios” sexuais: Martha, a mãe de Pedro, que revolta-se contra Daniel ao saber da natureza dos sentimentos deste para com o seu filho, e lhe faz saber que preferirá ver o filho morto a transgredindo tão sério veto religioso – de fato, um jargão que caberia bem aqui é que Martha é mais realista do que o Rei.
Ou… mais realista que o rabino. O rabino Levi é menos tirânico com Daniel do que dona Martha. Menos tirânico – porque suas palavras doces também escondem certa dose de tirania. A “Lei” não proíbe de gostar, ele ensina a Daniel, mas proíbe a realização. Ao que o narrador só pode concluir que
O mandamento era ainda mais cruel do que parecia a princípio, um cântico terrível que, em vez de trazer paz e alento, inflamava conflitos. Eu poderia viver para sempre querendo Pedro, buscando, no ventre solitário das madrugadas, sua imagem para me acalentar; nunca, porém, a vontade divina se alegraria caso fosse concedida a mim a graça de traduzir o delírio em toques ou palavras sopradas ao ouvido dele, pronunciando o mais sublime enlevo. Nessa hora, então, o sangue derramado sobre nossas cabeças.
O que emerge de Uma leve simetria como a forma ideal de religiosidade – ou melhor, de espiritualidade (porque até no ateísmo há um espírito, conforme André Comte-Sponville) – é aquela que Daniel ameaça seguir, quando o que sente por Pedro, embora em segredo (ou por isso mesmo), ainda lhe é causa mais de prazer que de infortúnio: uma fé voltada mais para as satisfações de necessidades individuais do que para a acomodação individual dentro de uma moral “mais elevada”, aquela do grupo que lhe quer como propriedade. É quando lemos:
(…) minhas orações, já há algum tempo, resumiam-se a agradecer por Pedro ter surgido em minha vida e a suplicar ao Senhor que jamais o afaste de mim. Por que Ele deixaria de me escutar, de cumprir suas promessas de dádivas se a única desejada era essa, assim tão simples?
A propósito, essa é a mesma fé de Davi tal como elaborada por Jacobsen:
Davi abraçou Jonatã:
Está tudo dentro da força da criação.
Tudo é Dele e por Ele feito.E viu Deus tudo o que fez, e eis que era muito bom.
::: Uma leve simetria ::: Rafael Bán Jacobsen ::: Não Editora, 2009, 224 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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