Resenha de "What is a Palestinian state worth?", de Sari Nusseibeh
por Daniel Lopes
Quando as forças armadas israelenses interceptaram ano passado uma flotilha que saiu da Turquia rumo a Gaza, matando alguns de seus integrantes, muita gente no Twitter passou da simples crítica a Israel a rompantes antissemitas, a ponto de uma pessoa que sigo no microblog – não lembro agora se @mariafro ou @ladyrasta – se mostrar pasma e lembrar que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Outras pessoas soltaram bravatas a favor da extinção do estado israelense.
Também fiquei meio espantado. Alguns daqueles tuiteiros, que conheço, até que são racionais ao lidar com outros temas, inclusive alguns de geopolítica que envolvem bem mais cadáveres, mas, ao abordar o conflito árabe-israelense, o mundo de repente fica bem simples e o nível das expressões cai drasticamente.
Esse tipo de coisa acontece porque muitos comentaristas do imbróglio palestino deixaram de considerar a dimensão individual da tragédia e a necessidade de mudanças ao nível dos indivíduos para uma eventual resolução. Está aí o filósofo e professor Sari Nusseibeh apontando esse problema em seu novo livro. Deixamos de enxergar os palestinos cristãos, por exemplo, ou os israelenses muçulmanos, porque nos atemos a sistemas “meta-biológicos” – Israel, Palestina, Bem, Mal, Refugiados, Sobreviventes do Holocausto. Afinal, aqueles colegas que pediram que Israel seja riscado do mapa desejam que todos os árabes do país também desapareçam? Ou seriam apenas os judeus, talvez por meio de uma bomba genética? Ainda assim, defenderiam eles a eliminação de todos os colunistas do Haaretz? Da mesma forma, eles acham todos os Palestinos dignos de apoio, aqueles cercados e humilhados por colonos na Cisjordânia da mesma forma que a elite teocrática do Hamas, interessada mais em continuar enchendo os bolsos com patrocínio estrangeiro do que na real criação de um Estado vivendo lado a lado e em paz com Israel?
Atual presidente da Al-Quds, única universidade árabe em Jerusalém, talvez isso baste, naquele pedaço de mundo salpicado de sentimentos tribais, para fazer de Nusseibeh um cosmopolita. Nem o fato de presenciar a vida difícil de colegas palestinos, tampouco o fato dele mesmo ter sido preso pela polícia israelense em 1991, acusado de ser um espião de Saddam Hussein, nada disso fez com que o autor passasse a enxergar a região como se composta de blocos de seres humanos e demonizasse uns e santificasse outros. É contra o espírito de manada que ele se volta. É nos indivíduos que vê o único caminho para alguma paz na região; afinal de contas, são pessoas de carne e osso, não fantasmas ideológicos, que terão que fazer concessões, e são pessoas de carne e osso que vão usufruir do resultado final – ou continuar sofrendo.
What is a Palestinian state worth? é um livro de perguntas. O título de cada capítulo é uma indagação, o corpo de cada capítulo é uma exploração dos fatores envolvidos na questão. Por que intransigentes palestinos bem acomodados em outros países mas ciosos de seu “direito de retorno” devem ter o mesmo peso na mesa de negociações que os palestinos da Cisjordânia dispostos a estabelecer um Estado sem o direito de retorno? Por que israelenses que teoricamente tão bem querem a seu país não encaram de frente o que em pouco tempo, mantida a indolência atual de seus líderes, será a impossibilidade de Israel continuam sendo uma democracia judaica?
Nusseibeh propõe que se pense soluções drásticas. Mesmo que tenham poucas chances de serem aceitas pelos atores envolvidos, apenas o ato de pensá-las já pode ter um efeito de choque em mentes adormecidas. Por exemplo, por que Israel não incorpora de vez Cisjordânia e Gaza a seu território e concede aos palestinos dessas áreas direitos civis, mesmo que ainda não direitos políticos? Bem verdade que, de uma hora para outra, o caráter judaico do Estado ficaria comprometido, com riscos inclusive para símbolos caros, como a bandeira contendo a Estrela de David. Lamentável? Ora, mas se os políticos israelenses continuarem apegados ao estúpido status quo atual, que na prática nega a possibilidade de um Estado que possa ser a casa dos palestinos como Israel é a casa dos judeus, algo parecido não ocorrerá, apenas um pouco mais tarde? A taxa de natalidade dos árabes israelenses é maior que a dos judeus israelenses e, nesse ritmo, em duas décadas a balança populacional estará equilibrada e, ou Israel dará todos os direitos civis e políticos a essa parcela da população, deixando de ser um Estado judeu, ou manterá os árabes sem direitos, deixando de ser um Estado democrático.
De fato, uma vertente de análise que começará a ganhar fôlego a partir de agora, se a “primavera árabe” mostrar mesmo sinais de sucesso, será sobre os futuros possíveis das relações árabe-israelenses. Podem esperar. É uma pena que o livro de Sari Nusseibeh tenha ido para a gráfica antes da eclosão das revoltas. Mas imagine só o seguinte cenário para daqui a vinte, trinta anos. Tunísia, Egito e Líbia enfim são regimes constitucionais-pluralistas. Líbano, Turquia, Iraque e outros aperfeiçoaram consideravelmente suas democracias. Síria e outros mais recalcitrantes de alguma forma entraram na onda. E Israel… Israel passou as primeiras décadas do século 21 emperrando a criação do Estado palestino e insistindo no caráter judaico de sua nação, a ponto de, agora (que os judeus não são maioria) mais que nunca, o próprio país ter deixado de ser uma democracia digna do nome e ter acabado num estágio parecido ao que o Egito ocupava no final do século 20 – pra não dizer da África do Sul de meados do século 20. Que irônico seria, não? Mas será possível um futuro muito diferente, se o mundo continuar tratando colonos fous de Dieu com a mesma solicitude com que trata as elites intelectuais de Tel Aviv?
No Oriente Médio há algumas ironias, como sabemos, mas nenhuma livre de derramamento de sangue. No cenário pensado acima, os governos árabes conseguirão manter tratados de paz formais ou informais com Israel, apesar dos clamores de sua população (agora também seus eleitores) diante da trágica situação dos palestinos nos territórios ocupados e dos árabes em Israel? Essa pergunta bem poderá constar no próximo livro de Sari Nusseibeh.
Só espero que, se um dia chegarmos a ter Israel como “a única não-democracia do Oriente Médio”, lembremos de dar o devido crédito aos ativistas “pró-Israel”, amigos da onça espalhados por todo o mundo que, contrários a todos os ensinamentos da rica tradição humanista judaica, se especializaram em ver “Israel” como uma entidade Boa que merece ser defendida a qualquer custo dos ataques verbais dos Malvados Defensores dos Palestinos e dos protestos dos próprios.
::: What is a Palestinian state worth? ::: Sari Nusseibeh :::
::: Harvard University Press, 2011, 256 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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