Imagens que arranham superfícies

No MIS, a exposição "Andy Warhol Superfície Polaroides (1969-1986)" retoma e reafirma clássicas concepções filosóficas.

Ser é ser percebido.
Berkeley

Em comemoração aos 25 anos da morte de Warhol, ocorrida em 1987, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo oferece uma oportunidade rara (única no Brasil) de ver/rever o mundo visto através da câmera nada oculta do polêmico artista americano. Não apenas por retratar famosos em poses pouco convencionais ou previamente estudadas, mas por revelar a superficialidade humana em momentos inesperados, tornando seus sujeitos simples objetos diretos na frase artística. Sem o espectro da tentativa e erro da ciência objetiva, cartesiana e ocidental, Warhol vislumbrava a si mesmo ao retratar seus pares. Arte conceitual, econômica, egocêntrica ou pop, nada disso retira dessas centenas de imagens seu caráter de imanência, uma passagem do implícito ao explícito que dialoga com o que vê e com aquilo que é visto.

Podemos hoje – e sempre – criticar qualquer arte superficial e isenta de espiritualidade, de um traço fundamental humano, emocional e sensível em contrapartida a uma arte crítica voraz e sedenta de entranhas psicológicas, psíquicas ou oníricas. Em relação à fotografia, seu advento na segunda metade do século 19 não passou despercebido por filósofos como Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche e Wittgenstein; escritores como Elizabeth Browning, Paul Strand, Kafka e Mann; e posteriormente artistas como Léger, Jasper Johns, Man Ray, Buñuel, Dali. O século 20 seria o palco principal para os fotógrafos-pensadores como Moholy-Nagy, Robert Frank, Cartier-Bresson, Kertész, críticos como Benjamin, McLuhan, Sontag, Weston… A Segunda Guerra Mundial traria consigo, via pax americana, a vitória da produção em massa, do consumo em massa. Fato é que o mundo vivia o boom do pós-guerra, e o desenvolvimento de novas técnicas e uma profunda mudança social acelerava o cotidiano. Os anos 50 e 60 trouxeram novas liberdades, exultando cineastas europeus e filósofos existencialistas, pensadores como Merleau-Ponty, Morin ou Adorno. Era a época da Geração Beat, da Revolução Cultural, do Sexo, Drogas e Jazz. Daí veio o Rock e a Pop-Art. O indivíduo experimentava a criativa auto-informação – o exibicionismo e o voyeurismo voltavam ao centro da criação artística.

A utilização da recém-criada Polaroid (1948) impulsionou gerações de artistas a retratar o imediato, o visível, o fenômeno (“aquilo que salta aos olhos”) na natureza, em uma cena de rua, em um espetáculo, mesmo que reservado em um estúdio, em uma festa ou happening. Imagens instantâneas, a vida retratada em pequenos disparos de luz e sombra, o Império do Olhar. Ansel Adams, Marie Cosindas, Jeanloup Sieff, Christian Vogt, Josef Sudek (não confundir com seu conterrâneo Jan Saudek), Oliviero Toscani e muitos outros difundiram as possibilidades da Polaroid desde seus primórdios. Francis Bacon tentou uma vez utilizá-la, ele que mal sabia como segurar e bater uma foto na primeira vez em que a teve nas mãos. A vida fluía… Com ela, a arte da captura momentânea, instantânea. E como a língua é viva, lembremos que media, mass media está na raiz de “imediato”. Nosso corpo vidente e visível, que a tudo olha e olha a si mesmo, pode reconhecer no que vê o outro lado de seu poder vidente; é em si diferente do pensamento, antes ligado à confusão, à fusão via narcisismo daquele que vê naquilo que vê, daquele que toca naquilo que toca. Similitude ou paradoxo? Enigma que se revela lentamente, como o próprio processo da foto Polaroid/polarizada, vitória do olhar objetivo na tessitura do mundo, do real desejado. E como esse corpo, esse sujeito vê e se move, mantém as coisas em círculo à sua volta. Lenny, personagem de Amnésia, instigante filme de Christopher Nolan baseado num conto de seu irmão Jonathan (Memento Mori), torna-se então um dos atuais avatares do que escreveu Merleau-Ponty em O Olho e o Espírito: “Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas; é captado na contextura do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas já que vê e que se move, ele mantém as coisas em círculo à volta de si; elas não são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo.” Tatuagens, instantâneos, labirintos em busca do real e sua instantaneidade.

Os exemplos proliferam, nesse sentido: o famoso policial/replicante Deckard em Blade Runner na alegórica cena em que escaneia em seu apartamento uma foto (um instantâneo!) de um dos replicantes, tomada de seu esconderijo num quarto de hotel. Que delícia de tecnologia! Ao dar comandos de voz de zoom e direção, o anti-herói nos agracia com o gosto de uma tecnologia virtual na qual identifica e imprime, dentro e através do reflexo de um pequeno espelho ao fundo da foto, a imagem de outra replicante que não era até então visível na foto. Alice viajando através do espelho! O Cinema envolve (e é envolvido) pela Fotografia e cria obras-primas: Menschen am Sonntag, de Robert Siodmark, La Jetée, de Chris Marker, Janela Indiscreta, Blow Up, Antes da Chuva … Ora, cinema é fotografia, quadros por segundo, tempo e espaço, micro-macro, implosão e explosão, ação e imaginação – se bem que com o advento digital, algo se perde, não? Possibilidades virtuais, mundos paralelos, paradoxos…

A Polaroid foi para os fotógrafos de ofício durante o século 20 o que foi o daguerreótipo para os pintores do século 19. Ao final dos anos 40, pós-guerra, estes fotógrafos estavam orgulhosos por terem desenvolvido estilos e métodos próprios. Apenas temiam que amadores copiassem rapidamente sua arte. Hoje, com a digitalização a passos largos, são os defensores do filme que se sentem ameaçados. O futuro do Cinema e da Fotografia tende a um caminho novamente individual, mas não mais em estúdios, e sim no conforto de casa, em salas de estar com enormes telas de alta definição e som ambiente. Uma experiência interior vivida através da luz fria do moderno televisor, descanso e descaso do ser social bombardeado pela mídia feroz, invasiva e desprovida de ética – no máximo, baseada em uma ética não mais protestante do trabalho, mas do lazer passivo e indissociável de mentes sedadas e barrigas protuberantes.

Mas nem tudo está perdido: após o encerramento das atividades em 2008, a Polaroid logo contratou um ícone pop para seu Departamento de Criação e Design: Lady Gaga. À maneira de Warhol, de Polaroid em punho, em movimento, fotografado por Toscani na famosa série das fotos ejetando e revelando o artista em pose “3 x 4”, que fotos serão ejetadas da Polaroid de Gaga, caso esta seja algum dia garota-propaganda? Decerto a digitalização ajudará na identificação. Mas a escolha da empresa para sua revitalização faz sentido. Da Pop Art para a Pop Music do século 21 há apenas a diferença de meios, de mídia, e de massa… cinzenta.



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