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A grande comédia masculina

por Daniel Lopes (24/05/2012)

Um cinquentão espera chegar o dia de seu casamento com a prima rica e dez anos mais nova

"Caderno de ruminações", de Francisco J. C. Dantas

“Era mesmo uma fraqueza danada andar manietado pelo desejo feito um pai de chiqueiro, ou um quadrúpede selvagem”, pensa o doutor Rochinha por meio do narrador. “Afinal, era um homem ou era um bicho?”.

A situação é mais antiga do que andar pra frente. A fêmea se achega jogando charme. O macho se acha o tal por ser alvo do charme, e resolve partir pra cima da fêmea e se divertir bastante no processo, talvez até fazê-la de otária. Após o ato consumado, a fêmea se afasta na medida certa para encucar o macho. O macho se vê perdidamente enlaçado, e se revela o idiota que foi desde o início. No caso do doutor Rochinha, o atordoamento pós-coito é de tal magnitude que, para tentar um pouco de paz e reflexão, ele toma a decisão de sair da sua Aracaju e passar uns dias em Salvador.

Não vai aí uma maliciosa crítica ao macho. A idiotia o acompanha desde tempos imemoriáveis, a ponto de estar incorporada à sua natureza. O observador pode até mesmo dedicar-lhe uma boa dose de simpatia, se não de identificação; com certeza algo mais que condescendência.

E há muito humor nessa idiotia, não devemos esquecer. Fiquei extremamente satisfeito ao ver que no romance de Francisco Dantas, em meio a angústias e delírios de seu protagonista, o que acaba ressaindo mesmo é a comicidade da coisa. Para começo de conversa, Rochinha podia ser um cardiologista. Ele podia ser um pediatra, um geriatra, um ortopedista. Podia ser um psicólogo ou um psiquiatra. Mas não. Ele é um proctologista. Rochinha está sempre avoado ou de mal humor em seu consultório. O leitor pode imaginar que haveria bastante drama em um pediatra fulo da vida. Mas um proctologista fulo ou displicente é um teatro à parte. Também não sei se o nome da fêmea que o arrebatou, com as quatro primeiras letras que tem, é mera obra do acaso.

Rochinha é um cinquentão e está apaixonado pela prima Analice, dez e poucos anos mais nova. Estão de casamento marcado para uma sexta-feira. Caderno de ruminações é dividido em quatro partes, cada uma delas cobrindo um dia da semana a partir de terça. À medida em que o casório se aproxima, Rochinha, sozinho no apartamento ou no consultório, passa a limpo seu passado remoto e seu passado recente, quando se envolveu com a prima. Analice é uma grã-fina, filha do proprietário de um grande grupo empresarial, que inclui uma construtora com negócios no Sergipe e em outros estados. Rochinha está em plena decadência profissional. Ela tem seus próprios interesses para casar com o primo comparavelmente pobre, inexperiente com as mulheres e de corpo mirrado. Ele quer se casar porque está apaixonado, e treme com os pensamentos em que volta a possuir a prima.

Antes de Analice, Rochinha não amara ninguém – “nos momentos mais exigentes, o corpo se extravasara em três ou quatro mulheres fáceis e pagas que possuíra como alívio e paliativo”. De origem humilde, dedicou-se com tenacidade aos estudos desde os tempos de educação primária, com sobra para mais nada. Foi aprovado em medicina. Na faculdade sua falta de tato com o sexo oposto era sobejamente conhecida, a ponto dos colegas apelidarem-no de “arame liso” – aquele que cerca, mas não fura. Seu “sangue sequioso, o espírito obcecado e a floração da vitalidade corporal” só vieram dar as caras agora, aos 50, diante da tentadora prima loira, de olhos azuis e pernas incríveis.

É claro que eu não vou cortar o barato contando os detalhes do momento em que o primo transa com a prima pela primeira vez – e bem pode ter sido a primeira e última. Importa saber que, depois, veio a piração. A paixão naturalmente faz o sujeito perder de vista o longo em proveito do curtíssimo prazo. Pois sabemos que a paixão de Rochinha está elevada ao cubo porque ele persiste tomado pela prima mesmo enquanto a julga uma “sádica”, entre outras coisas, e acredita que, no final das contas, tudo vai dar errado. É a supremacia da carne.

Mas pode dar certo, ainda assim? Quem sabe? O futuro pertence ao futuro. Mas Analice tem para si o seguinte juízo de Rochinha: “um pusilânime encapado de moralista”. E, em quatrocentas páginas, Rochinha só traça uma única e mísera resolução para o pós-casamento: “no criado-mudo de Analice, já decidiu, não vai deixar faltar tranquilizantes”. Façam suas apostas.

-- O autor --

Rochinha começou a vida duas vezes – primeiro, vencendo as adversidades da infância e juventude até se formar em medicina; depois, driblando dificuldades na carreira, conseguindo fazer seu nome e se firmar em Aracaju. Quando Caderno de ruminações inicia, ele está tentando se erguer pela terceira vez. Recentemente, foi alvo de rasteiras após presidir uma investigação em um hospital público que descobriu desvios de conduta. Também recentemente, e mais sério, ele levou bolo de dois sócios aos quais se ligara para tocar uma clínica privada, que lhe deixaram na pindaíba e contra os quais nutre desejos homicidas. Mancomunado com esses dois sócios está Eloíno, irmão de Analice, primo e nêmesis de Rochinha.

O passado, que o protagonista pensara ter enterrado para nunca mais olhar, agora lhe volta nesses dias decisivos para seu futuro:

Com a ruína de seu projeto profissional, a infância tem retornado e lhe chega por caminhos insidiosos ocupando, na calada do tempo, os espaços vazios. E ele, que na mocidade fora tão refratário aos sentimentos, acolhe essa vinda como se recuperasse alguma coisa vaporosa e intangível, mas de valor inestimável.

Rochinha fora criado por pai e mãe durante poucos anos. Logo, a mãe o abandona e ao pai, partindo para o Rio de Janeiro. E ele fica só com o pai, seu Aristeu, na casa da infância, interior de Sergipe. A boataria sobre a mãe, mulher esbelta, e sobre as razões de sua debandada corre solta, e atinge continuamente Rochinha. O pai fica completamente entregue, sentado no sofá da sala e ruminando a falta de sentido do mundo à sua volta. Ríspido e muito religioso, porém, faz questão de que Rochinha tenha uma educação padrão, com catecismo e tudo. Os coleguinhas de ensino religioso, a exemplo de uma sua professora, não deixam passar a chance de fazer referência, na frente do menino, ao passado supostamente indecoroso da mãe.

Quando o filho já estava mais avançado no colégio, Aristeu se muda com ele para a capital Aracaju. Lá, o adulto envelhecido pela dureza da vida vira pequeno comerciante, enquanto o jovem, ainda uma criança na falta de tato com o que a vida tem de melhor, estuda de forma compenetrada – “Desgostoso com o ambiente que o cerca, persevera no estudo com a mesma gana que um condenado perpétuo investe numa fuga suicida, como se, fora daí, fosse um menino perdido.”

Num vislumbre do que a vida pode oferecer de diferente em matéria de estudo e também comportamental, Rochinha preferiria ter sido matriculado no colégio liberal Atheneu. Mas não tem conversa. O pai o matricula no católico São Joaquim. Pior: como não tem dinheiro para a mensalidade completa, Aristeu promete aos padres que o filho estaria à disposição para realizar tarefas de manutenção. Quando vê que não, Rochinha está espanando santos. Seu período nessa instituição não foi invejável. Ele ficou enterrado em meio a adultos que, para lembrar o finado Hitchens, “a impossíveis certezas de retidão aliam tédio e uniformidade”. A vulgaridade de um padre-mestre ao sermonar sobre a desgraça da masturbação! – “O sexo, seu Benildo, é uma pistola dada por Deus para a perpetuação da espécie.”

Não sei se Caderno de ruminações teria ficado mais interessante narrado em primeira pessoa. Chutaria que sim. Às vésperas do casamento, Rochinha repisa seu passado distante, mas por meio do narrador. E o narrador, aqui, é oni-tudo. Seu nível de consciência é abissal. Ele tem consciência até das atmosferas de dois livros anteriores de Francisco Dantas – algo que não temos a oportunidade de ver todos os dias. Não há espaço para certas nuances – imprecisões, preconceitos, parcialidades, dúvidas – que se mostrariam ao leitor no caso de um narrador em primeira pessoa olhando o passado com o filtro do presente.

No entanto, à medida que a terça-feira vira quarta, a quarta vira quinta, e a quinta vira sexta, a narrativa, recapitulando agora as últimas semanas de Rochinha, fica mais interessante. Até devido ao fato dos últimos acontecimentos terem precipitado o casamento e estarem marcados de ambiguidades, trapalhadas e absurdos que desafiam o narrador mais intrometido. Narrador, Rochinha e leitor ficam perdidos, no bom sentido, em meio à comédia do homem – digo, do homem-homem.

Diante de prima e futura esposa, o juízo do personagem é capaz de mudar cento e oitenta graus em questão de minutos. Como quando pega Analice para passear, encanta-se com a figura angélica no banco do carona com os cabelos ao vento, e, quando já estão em seu destino, passa a vê-la como uma “sacana traidora”. Às vezes essa mudança de opinião tem ligação com o aparecimento de algum dado concreto, mas na maioria das vezes parece não passar de paranoia.

O proctologista decadente vê o resto da sociedade de cima para baixo, como uma escrava do Estado. Mas às vezes se descuida, tropeça e se vê junto aos outros mortais. Ele mesmo, anos atrás, ao voltar de um curso em São Paulo, foi pedir emprego a um antigo colega de faculdade, à época secretário de Saúde. O jovem Rochinha era um homem profundamente cínico. Sua opinião sobre a solidariedade? – “senão uma tolice, uma ilusão alimentada pelos bestas e pelos frágeis.” O amor? – “teoricamente, um sentimento patético e ridículo, inerente aos homens fracos, às mulheres impressionáveis.” Essa história também é mais velha do que andar pra frente. O jovem com a pior opinião do mundo que vira um adulto feito sob medida para reforçar suas convicções dos verdes anos.

Foi muito prazeroso ler um romance brasileiro contemporâneo de quatrocentas páginas super bem feito, em meio aos breves romances a que andamos habituados (alguns até bem feitos, mas mesmo assim). Se você ler as obras anteriores do sergipano Francisco Dantas (e você devia ler), verá que essa calma e habilidade ao contar uma estória é traço marcante desse autor que começou a publicar apenas aos 50 anos de idade. Também foi um prazer topar com palavras que nunca mais tinha lido, postas no papel adequadamente, sem esnobismo – varancadas, convolado, debique, esbodegado (melhor: esguedelhado), babujar, verrumar, capitosa, esgrouvinha…

::: Caderno de ruminações ::: Francisco J. C. Dantas :::
::: Alfaguara, 2012, 408 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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