O que temos é uma música do interior e, por isso mesmo, uma música muito brasileira
Bem distante do tempo que discos eram peças gráficas e objetos de coleção, conheci Chão de Aquarela, registro que uniu mais uma vez as vozes e o trabalho das cantoras e compositoras Simone Guimarães e Cristina Saraiva. Agora arranjei um problema sério: preciso logo de um meio de guardar aqueles arquivos que me chegaram pelo iTunes entre os registros daquele tempo já meio que remoto, no qual os discos ocupavam, além do espaço afetivo, o espaço físico da casa da gente. Pois Chão de Aquarela só conta com a segunda parte desse problema, o primeiro já está bem guardado e, creio eu, em excelente companhia.
A falta de ficha técnica de um arquivo digital ou de um encarte de um disco que pode inclusive ser adquirido faixa a faixa guarda, por sua vez, outro tipo de mistério. Faz a gente imaginar, por exemplo, ao invés do nome de quem toca o fagote em “Desafios”, faixa de abertura do CD, na ideia dessa sonoridade em uma letra cheia de uma dureza ao mesmo tempo tão delicada. Bota a gente a pensar onde está afinal Mauricio Maestro, parceiro no disco, e em quem teve a ideia, se Simone ou Cristina, de trazer Renato Braz para cantar em “Relento”, que faz a alma da gente ficar pequena como uma joaninha aninhada numa rosa de janela, num desses milagres que a sensibilidade de Simone é capaz de criar (“Rosa na janela” é uma canção que não integra o novo disco mas que pode ser ouvida no “Radinho da Simone”, como carinhosamente chamei a coleção de preciosidades que se pode ouvir livremente aqui).
O rascar da viola caipira que percorre muitas das faixas até pode dar a crer, num breve momento, que estamos diante de um registro do sertanejo, mas o que temos é uma música do interior e, por isso mesmo, uma música muito brasileira. Do interior que ecoa não na paisagem, mas no sentimento. Interior que cabe em qualquer lugar, desde que pertença ao cenário afetivo de cada um. Interior que não é geográfico, mas emocional. Não a caricatura retirante de quem se abandona a uma nostalgia sem lugar, mas a um estado de espírito que evoca simplicidade, esta sim (e que triste sentir que isso possa ser verdade) talvez hoje sem lugar…
Para quem conhece os registros anteriores dessa parceria, reencontrar “Estrela do Meu Bem Querer” e “Olhos de Fogo” não deve soar um exagero, sequer uma sobreposição. São composições que dão lógica ao conteúdo desse novo trabalho exatamente porque reafirmam a necessidade daquele mesmo tipo de expressão que iniciaram há mais de 15 anos, ao colaborarem em “Visita”, de Cristina e em “Aguapé”, de Simone. As novas canções eu diria que não valem sequer uma visita rápida porque, como a boa gente do interior, são elas que vêm nos visitar. É só abrir a porta.
Ouça uma prévia do disco ou o adquira no iTunes.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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