Brasil

Controle da mídia: do que estamos falando?

por Carlos Orsi (16/05/2012)

A discussão está tomada por uma confusão generalizante

Dia desses me toquei de que já tenho 22 anos de carreira (!) como jornalista, tendo começado a trabalhar no segundo ano de faculdade. Entre outras coisas, isso significa que a geração que vai sair das escolas de Jornalismo neste ano estava nascendo ao mesmo tempo em que comecei a ganhar (pouco) dinheiro neste negócio. Isso também reflete algo a respeito dos anos de formação da minha vocação jornalística, aquele período em que fiquei sem saber se queria ser economista, engenheiro ou advogado e acabei caindo nisto aqui. Foi o período imediatamente seguinte ao fim da ditadura, entre 1985 e 1989, onde liberdade de imprensa, de sátira e de crítica eram temas quentíssimos. Jornalistas, humoristas e cartunistas eram os heróis da resistência, e o povo entrava na faculdade de Jornalismo sonhando em derrubar governos, não casamentos de celebridades ou técnicos de futebol.

Por essas e outras, “controle da mídia” é uma tecla emocionalmente delicada para mim, e finalmente resolvi escrever algo mais longo sobre o assunto. Já havia me manifestado de modo meio tangencial a respeito, por exemplo, aqui.

A discussão sobre o tema, ao menos na medida em que chega ao grande público, me parece tomada por uma confusão generalizante que serve aos extremistas dos dois lados — tanto aos stalinistas (não muito) enrustidos quanto aos oligopolistas irresponsáveis. Essa confusão trata de pôr num mesmo balaio coisas como TV/rádio aberta, jornal/revista impressa, TV/rádio digital ou por assinatura, regulamentação da profissão de jornalista. Mas são todos temas muito diferentes, que requerem tratamento diversificado. Quando se fala em “marco regulatório da mídia” sem distinguir uma coisa da outra, a reação de gente como eu é de algo entre mera desconfiança e puro pânico.

Então, por partes: a “regulamentação ideal” é regulamentação nenhuma. É o paradigma que hoje reina, por exemplo, entre os blogs da internet: você não precisa de licença do governo para manter um blog, você não precisa de diploma universitário para manter um blog, você não precisa de carteirinha do sindicato para manter um blog. Claro, você ainda é imputável por coisas como calúnia, injúria, difamação, pedofilia, etc., mas essas são coisas que recaem sobre você, um indivíduo responsável por seus atos. Não têm nada a ver com uma “lei geral dos blogs” ou coisa do gênero.

Impressos

É um paradigma herdado da mídia impressa. Qualquer pessoa pode ir a uma gráfica e encomendar quantos panfletos quiser sobre qualquer coisa, contra ou a favor do aborto, do governo, dos alienígenas, das máquinas inteligentes ou do que quer que seja. Você também pode botar a mão no bolso, pôr o patrimônio da família no prego e fundar um novo jornal ou uma revista. O processo é igual ao de se abrir uma empresa qualquer. Não há um “marco regulatório” de jornais e revistas, e é bom que seja assim.

Por que, alguém poderia perguntar, é bom que seja assim? Por que a regulamentação ideal é regulamentação nenhuma? Simples: porque essa é a melhor forma de garantir um livre mercado de circulação de ideias e informações. Porque, para a democracia funcionar, as pessoas têm de ser capazes de dizer o que sabem e o que pensam com o mínimo de embaraço possível.

Aqui, alguém poderia cutucar lembrando que o mundo real está longe do ideal e que existem assimetrias, por exemplo, na disponibilidade de capital para a criação de veículos de amplo alcance, no acesso aos canais de distribuição, e será que é justo que os Civita e os Mesquita e os Frias e os Marinho tenham meios de se fazer ler (ver e ouvir é outro assunto, que fica para mais adiante) pelo Brasil inteiro, enquanto que as ideias de gente legal como eu e você ficam escondidas por aí?

Bom, a primeira coisa a lembrar é que essas famílias, em algum momento, apostaram parte (ou a totalidade) de seu patrimônio na construção das estruturas que, hoje, lhes permitem chegar, com seus jornais e revistas, às multidões, algo que gente como eu e você provavelmente não tem coragem ou vocação para também fazer. Outros, como os responsáveis pelo Jornal do Brasil, pela Gazeta Mercantil, pelas revistas Cruzeiro Manchete, tiveram a coragem e a vocação e até se saíram bem por algum tempo, antes de ir a pique. E outros ainda têm a coragem, a vocação e vão se firmando, como no caso de Carta Capital.

A segunda coisa a se pensar é, qual a alternativa? O governo ou um comitê qualquer dizer qual revista ou jornal as pessoas podem ou devem ler, ou qual deve ser o conteúdo desses jornais e revistas?

Uma questão subsidiária aqui é a da propriedade: já que a pluralidade de vozes e de ideias é um valor, por que o Estado não deveria agir, por exemplo, impedindo que uma mesma empresa controle uma fração excessivamente alta da circulação, ou um mesmo empresário mantenha jornais e revistas em diversas praças simultaneamente?

O argumento, que embute o temor de que um grande magnata da mídia venha a operar uma espécie de “lavagem cerebral” monolítica na população, me parece ignorar a lição histórica de que monopólios privados de meios impressos são sempre mais instáveis do que parecem (lembre-se de O Cruzeiro). O melhor controle social desse tipo de mídia ainda é o exercido pela audiência — que pode não ser perfeito, mas que ainda é a coisa mais parecida com democracia direta que temos: quem não gosta do jornal X ou da revista Y não os compra, não os lê. Votar com o cartão de crédito pode não ser a solução perfeita mas, ao menos nesse caso, é mais segura para a sobrevivência do ideal democrático da livre circulação de ideias, argumentos e informações do que delegar responsabilidades a agentes políticos ou burocratas.

Mutatis mutandis, a mesma linha de argumentação se aplica aos meios audiovisuais digitais e por assinatura. A razão é que, assim como acontece com os meios impressos e os blogs, não há um limite físico relevante à ocupação desse espaço. Papel e tinta são abundantes, e espaço para transmissão digital de conteúdo, mais abundante ainda. O único recurso limitado, no caso, são a atenção e o interesse do público, e cada membro do público deve ser livre para dispor de seu tempo como melhor lhe aprouver.

Rádio e TV

Esse doce laissez-faire, no entanto, torna-se indefensável quando se fala em TV e rádio de sinal aberto, tradicional, e por um simples motivo: a fatia do espectro eletromagnético disponível para esses meios é limitada. Se a emissora W ocupa o canal Z, então nenhuma outra emissora poderá fazê-lo, e o conjunto de canais é finito. Assim, torna-se necessário que uma estratégia de distribuição e alocação seja traçada por uma autoridade reconhecida por todas as partes interessadas. Entra o Estado.

Há diversos regimes concebíveis para que essa distribuição ocorra (os canais poderiam ser doados, vendidos, alugados, etc.), mas o Brasil optou pelo regime de concessão pública, no qual o Estado continua dono do canal, mas permite que ele seja explorado por uma empresa privada. Essas concessões estão sujeitas a contratos, como as concessões de estradas, por exemplo.

Num regime assim, fica difícil justificar o arrendamento de fatias inteiras da programação a terceiros não-concessionários, como igrejas, redes de televenda ou, mesmo, grandes redes nacionais de programação (se tudo que o concessionário de um canal na cidade de Qualqueruma-MA faz é retransmitir a Globo, fica difícil justificar o fato de a concessão ter sido dada a seu detentor atual e não a qualquer outra pessoa, ou à própria Globo, para começo de conversa). O “arrendamento” informal de concessões de rádio para não-concessionários (principalmente igrejas) também é comum e representa uma clara distorção do sistema.

Claro, o sistema de concessão também pode ser usado, de modo perverso, para prejudicar o exercício legítimo da liberdade de expressão. Um canal que faça uma série de reportagens expondo corrupção no Ministério da Comunicações poderia se ver, de repente, alvo de escrutínio especial das autoridades. Dado o caráter patrimonialista do Estado brasileiro — ficando no caso das estradas, não é incomum políticos intimidarem concessionárias para que sejam convidados a “inaugurar” obras viárias nas quais não tiveram participação alguma — a preocupação é mais do que legítima.

Portanto, se a discussão do tal “controle social da mídia” for uma discussão sobre o regime de concessões, sobre o cumprimento dos contratos pelas concessionárias e sobre a forma ideal de fiscalizar esses contratos, evitando tanto a permissividade total quanto o uso do perverso do regime para fins de extorsão política, trata-se de um debate mais do que bem-vindo, e que o Brasil deveria ter feito ainda nos tempos de Marconi.

Agora, se a discussão for para tratar da criação de conselhos e carteirinhas para jornalistas, ou da imposição de limites burocráticos à criação, estabelecimento, manutenção, alcance e conteúdo de mídias baseadas em papel e tinta, ou de mídias eletrônicas onde os canais são ilimitados, atenção: está em curso uma traição do espírito da democracia que os brasileiros lutaram para instalar lá quando comecei a pensar em ser jornalista, nos idos de 1985.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.