Carta a Juca Kfouri

Repudio sua afirmação de que os interioranos vampirizam a “elite”, pois ocorre justamente o contrário.

Prezado Juca,

Tento decifrar os rótulos pejorativos que você anexa ao Campeonato Paulista e só consigo entendê-los como sintoma de algum ódio reprimido aos clubes do interior. Não imagino que outra nefasta particularidade explicaria apenas os estaduais merecerem críticas tão equivocadas e injustas. Por isso, atingido no orgulho de pontepretano brioso, dirijo-lhe esta humilde contestação.

Imoralidades diversas, oportunismo eleitoral e abuso de bens estatais são corriqueiros no universo futebolístico, e agravam-se na medida em que aumenta o poder financeiro dos envolvidos. Também a mediocridade técnica ultrapassa bandeiras e raízes, considerando o nível do futebol brasileiro em geral. Segundo tal critério, deveríamos chamar o torneio nacional de “Brasileirinho”, em referência aos longos meses de pasmaceira suportados até que os mesmos clubes mais ricos terminem nas melhores posições. Ademais, se os atletas dos rincões fossem inferiores ao padrão dominante, não comporiam os milionários elencos sediados nas capitais.

Um preconceito muito em voga, o suposto desinteresse das platéias interioranas, pede primeiro um contraponto matemático. Apesar de todo o glamour da Série A, as maiores torcidas do país são incapazes de ultrapassar a média de quinze mil pagantes por jogo. O peso desse público num conjunto urbano de vários milhões de habitantes não alcança a mesma proporção observada nas cidades menores.

Mas quem disse que a bilheteria deve constituir um objetivo central do esporte? É evidente que a natureza capitalista dos clubes tem certos limites, pois no mundo cruel dos negócios as empresas mal administradas desaparecem muito antes que suas dívidas cheguem a centenas de milhões de reais. A transcendência sócio-cultural do futebol, por definição, está acima do gosto hegemônico e das modas passageiras. Os mais restritos círculos religiosos, criativos, étnicos ou políticos merecem tratamento honroso e igualitário, mas os futebolísticos precisam ser legitimados por fatores mercadológicos?

Repudio sua afirmação de que os interioranos vampirizam a “elite”, pois ocorre justamente o contrário. Os clubes poderosos sempre exploraram os menos prestigiados, cooptando sua mão-de-obra capacitada e barata (depois lucrando com ela), desviando recursos a que tinham direito e usando a conseqüente penúria para sufocá-los nos viciados bastidores das federações. Espelhando um notório mecanismo da geopolítica, as tradições dos “grandes” foram construídas com o sacrifício histórico dos “pequenos”.

Os analistas esportivos das metrópoles, eternos cúmplices da pilhagem, agora defendem que as agremiações coadjuvantes sumam dos últimos torneios sérios de que ainda participam. Todos sabem que o golpe aniquilaria os excluídos, mas disfarçam a ânsia genocida com placebos retóricos do tipo fundos emergenciais e regulamentos anódinos. Tentam, assim, fazer os torcedores dos “grandes” que vivem nas cidades menores pensarem que a agonia dos times locais só atinge quem sofre por eles. Não se reconhecendo vítimas desse menosprezo e incapazes de antever seus graves efeitos colaterais, as platéias distantes ignoram que são usadas pelo marketing da homogeneidade, que visa apenas lucrar à custa da audiência massificada.

Algo muito importante, que ninguém parece notar, é o prejuízo causado pela decadência do interior a todo o futebol nacional, inclusive os poderosos “favoritos” da mídia. Os recentes fracassos da seleção e dos representantes brasileiros em disputas internacionais refletem a pobreza de uma estrutura viciada nas glórias fáceis e imediatas dos seus protagonistas. Beneficiados pela miséria dos adversários regionais e iludidos com a equivalência dos concorrentes diretos, os times vitoriosos se acomodam a uma superioridade artificial, que só faz sentido num ambiente esportivo menos qualificado.

Suponhamos que minha leitura esteja errada, caríssimo Juca, e que você queira realmente lutar pela dignidade dos “pequenos”. Sugiro-lhe então liderar uma campanha para que as verbas televisivas de qualquer campeonato sejam repartidas igualmente por todos os competidores. Aposto que não faltaria base constitucional para reivindicação dessa natureza. E que tal defender também que a insossa e onerosa Copa do Brasil passe a abrigar os melhores de cada estado que não disputam a Série A, dando vagas na Sul-Americana ao campeão e ao vice? O calendário da “elite” ficaria enxuto e dinâmico, o prestígio dos estaduais aumentaria, os “pequenos” investiriam nas categorias de base e o mercado conheceria milhares de bons profissionais que hoje vivem no ostracismo.

Se tais ideias soam alucinógenas é porque de fato salvariam os clubes menores. Porque a cúpula do futebol, mídia inclusa, tem horror de um cenário com torneios imprevisíveis e dezenas de times competitivos roubando os triunfos, a visibilidade e os lucros do cartel predominante. É essa arrogância monopolista que gera a depreciação da única oportunidade que têm os desfavorecidos de conhecer algum sucesso, mesmo “fortuito” e “circunstancial”, para usar seus discutíveis adjetivos. Não por acaso, os ataques aos estaduais costumam acompanhar elogios ao tendencioso sistema de pontos corridos, fórmula de manipulação classificatória baseada no privilégio econômico.

Finalizo deixando um apelo para que você repense a mania de chamar de cegos e provincianos os pontos-de-vista discordantes. Não há nada mais provinciano que louvar a supremacia de apenas quatro times num estado com população equivalente à de países europeus. Só bairristas obtusos ignoram a imensa riqueza regional brasileira, querendo reduzi-la a um punhado de referências construídas e disseminadas pela imprensa das capitais e por seus anunciantes. Os inimigos de tamanho empobrecimento adotam visão contrária, que respeita a diversidade, a integração e o equilíbrio de forças.

Embora desunidos e submissos, os clubes interioranos ainda podem escapar da morte que seus detratores anunciam. Quando parlamentares, governantes e dirigentes conhecerem as dimensões da tragédia, imediatamente buscarão evitá-la. Mas para tanto é necessário que a crônica esportiva deixe as paixões na arquibancada e trate de fazer jornalismo, para variar um pouco.

Deixo-lhe um abraço de admirador.



  • http://www.sul21.com.br/blogs/miltonribeiro/ Milton Ribeiro

    Peço licença para concordar inteiramente…. com Juca Kfouri.

  • Everton

    Já está mais do que na hora do futebol parar de fazer parte tão ‘importante’ da sociedade brasileira e de deter 99,9% do espaço em mídias esportivas, em detrimento de outros esportes.
    Futebol tornou-se um antro de lavagem de dinheiro, torcidas violentas, jogos comprados, jogadores narcisistas que dão péssimos exemplos a juventude e abutres do marketing.

    Não concordo com nenhum dos dois, ou como diria alguém qualquer que li em algum site qualquer: Não concordo e nem discordo, muito pelo contráario!

  • Bosco

    Juca Kfouri é tão psicodoido, sociopata quanto Ayn Rand. Ela tinha verdadeira antipatia pelo homem comum, Ele por clubes que não sejam os grandes do eixo Rio, SP, RGS, MG. E o pior é que ele se acha o suprasumo da imprensa esportiva brasileira. Grande coisa, a imprensa esportiva brasileira.

  • Luiz

    Lindo. O único problema é que precisaríamos viver num país socialista pra isso dar certo. Tirando isso, suas convicções sobre o futebol brasileiro são ótimas e dariam muito certo, hahah

    só não sei se a massa proletária curtiria saber o fato de que seu coritnhians não conseguiu contratar o craque Fulano de tal porque recebeu a mesma cota que o XV de piracicaba e o Novo Horizontino hahah

  • Franzé

    Concordo totalmente!!!!Matou a pau!!! Isso acontece em todos os níveis!!!

  • Felipe Augusto de Souza

    Acredito que você ou eu interpretou errado o Juca. Na minha opinião ele diz vampirizar no sentido que a fonte de renda dos pequenas vem no campeonato paulista, que tem sua principal fonte de renda a televisão que por sua vez tem seus valores ancorados nos grandes.

    Ele na verdade quer um formato sustentável. Citaste compra de jogadores de clubes do interior. De fato isso acontece, mas clubes do interior financeiramente melhores deixaria mais justa essas negociações.

  • Marcia Costa

    Show de bola este comentário! É por desqualificar os pequenos clubes que o futebol no Brasil caminha a passos largos de se transformar um retumbante fracasso em 2014. Anotem os prováveis finalistas da Copa que será no Brasil: Alemanha, Uruguai, Argentina e Espanha.

  • Carlos Henrique

    Outro excelente artigo do Scalzilli. Juca Kfouri e seus colegas de imprensa ganham a vida em cima dessa imagem de honrosos e justos, inimigos do marketing e da cartolagem, mas no fundo eles são mesmo é cúmplices de toda a safadeza do futebol brasileiro. E do pior tipo, daqueles que fazem pintas de indignados só quando os interesses dos seus queridos times são ameaçados. Desde que a vítimas sejam os pequenos do interior, tudo vai muito bem, obrigado. E viva a seleção!
    Os torcedores comuns podem (dis)torcer à vontade, mas os jornalistas, pelo menos os jornalistas sérios, tem obrigação moral de denunciar que a máfia da bola está matando os times do interior para salvar os grandes da falência. E que os campeonatos de futebol se transformaram em festinhas privadas da rede Globo para promover os interesses dos seus anunciantes. Alguém precisa ser muito cara-de-pau para fingir que isso é justo, ou merecido, ou até mesmo desejável.
    Imaginem dois jogadores de xadrez iniciando uma partida. O regulamento estipula que as peças serão compradas pelos competidores, numa escala crescente de valor segundo a importância da peça. Então chega a própria organização do torneio e dá dinheiro para que um dos jogadores forme o grupo completo, enquanto o adversário recebe apenas para os peões. Desde que a maioria da platéia concorde, tudo seria justo e equilibrado, certo?
    É inútil tentar argumentar com alguém que aceita um negócio desses…

  • zezé

    Este Kfouri se acha o tal da bola chita, ou melhor da bala chita !
    Mas nem tudo que, ou melhor tudo que falla é factível ! É mais factóide !

  • guilherme

    Muito bom, excelente; sugiro que você envie para o Flávio Prado
    que comunga da mesma idéia do Juca.

  • Alexandre Perin da Paz

    Espetacular!!!!!!!1 Sensacional!!!!!! Realmente o texto que eu gostaria de ter escrito, mas assumo que não tenho tanta desenvoltura textual quanto a sua. Meus sinceros parabéns. Sempre acreditei em tudo isto que você dissertou. Só não comungo da admiração ao Juca Kfouri, escrita ao final. Digo isto por uma razão muito simples, referido cidadão, com sua turma de pseudo-intelectuais do futebol, querem fazer do esporte paixão nacional, o único realmente popular e que pode fazer com que o Ibis vença o Barcelona (o Brasil já perdeu para Honduras), uma verdadeira imensidão de marasmo e pseudo-justiça capiteneada pelos clubes mais ricos, enraizados nos grandes centros e que atendem, com subserviência, aos interesses globais. Os chamados cronistas de “fala bonita” e que se reúnem em mesas redondas com cara de estudiosos do desporto com grandes doses de chá da cinco, ficam a elocubrar teorias importadas (como a dos pontos corridos, que funciona bem na Europa exatamente pelo marasmo) e a tentar impingir ao torcedor brasileiro cultura futebolista que não representa nossa história no esporte e nossa própria cultura. Não quero me alongar muito para não me tornar chato como os pseudo-intelectuais do futebol, pois a bem da verdade este debate seria longo e tenho muito a dizer, mas passei aqui apenas para cumprimentá-lo e dizer que me senti representado pelo seu texto. Parabéns.

  • Glauco Lima

    Sinceramente, e eu que acompanho o Juca Kfouri há muito tempo, posso afirmar que ele jamais foi ou é contra qualquer time pequeno, ou do interior. As suas críticas são feitas especificamente ao formato dos campeonatos organizados pelo Brasil, que realmente acabam com o futebol. A Copa do Nordeste, por exemplo, nunca vi o Juca criticar negativamente. Acho que deve ter havido um mau entendido na forma de interpretar o que ele quis dizer. O certo é que eu acho que as pessoas levam o futebol muito à sério, e isto é que é o grande problema:transformar algo lúdico em algo acadêmico.

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