Até o tênue limite da última linha, tudo pode acontecer
Baudelaire afirmou que o maior truque já feito pelo diabo foi nos convencer de que ele não existe. Ao término da leitura de Pássaros na boca, livro de Samanta Schweblin lançado pela Benvirá, é impossível não sentir desconforto ao entender que o fantástico convive pacificamente com a realidade, e que nele se escondem os piores receios e verdades de um ser humano. Samanta Schweblin desvenda o diabo que caminha entre os homens e mostra a sua verdadeira face, mas, ao final, nos diz que ele não existe, que somente revelou sombras distorcidas em um espelho. No entanto, longe de acalmar, esta constatação deixa o leitor ainda mais desconfortável, pensando nos pequenos infernos que se esgueiram no meio do cotidiano.
Uma das maiores dificuldades de escrever sobre o fantástico é torná-lo crível, palpável, um mero desvio da normalidade que ganha forma e possibilidade no dia a dia de qualquer pessoa. E a autora argentina consegue esta magia através da linguagem: seca, dotada de poucos adjetivos, quase estéril, ela abandona os jogos estilísticos e as construções de efeitos para se deter na trama. O resultado torna-se recompensador: os dezoito contos de Pássaros na boca disponibilizam fraturas da realidade, áreas de intersecção onde o fantástico se instala e cria novas regras. Importante recordar as palavras de Julio Cortázar ao tratar da obra de Felisberto Hernández: “Pois se há uma certeza quanto aos contos de Felisberto é que não são insólitos, na medida em que seu inevitável protagonista também é inevitavelmente fiel à sua própria visão e não faz o menor esforço para explicá-la, para estender pontes de palavras que ajudem a compartilhá-la”.
Esta constatação pode ser aplicada também para Samanta Schweblin: a versão inquietante do mundo criado dentro dos seus contos, este microcosmo dotado de regras particulares, não é explicada para o leitor, que, apesar disso, entende de forma quase instintiva o simulacro de realidade proposto. E, assim, torna-se natural, quase inevitável, que a filha adolescente de um casal coma pássaros vivos (“Pássaros na boca”), que um homem seja a dissonância portadora de toda a tristeza de uma família inteira (“Meu irmão Walter”) e que, para evitar as incomodações e reflexos da gravidez, uma mulher adote um método experimental visando eliminar todos os efeitos da concepção, mas mantendo o feto e transformando-o em algo corriqueiro, capaz de ser discretamente extirpado (“Conservas”).
O paralelo com Felisberto Hernández é importante: a preferência por cenários desérticos, inóspitos, para o desenvolvimento de uma história fantástica também o aproxima dos contos de Samanta Schweblin. Da mesma forma, os laivos de surrealismo que se apossam dos contos, mascarado por uma linguagem exata, como se o autor estivesse narrando aquilo que assiste e não contando uma história, faz com que a trama ganhe verossimilhança não naquilo que é narrado, mas no espaço longo do que está subentendido. Nesta conjectura, o homem que perde o trem que passa em uma estação quase desabitada e se vê envolvido em uma série de circunstâncias atípicas, raptado por um casal e forçado a virar parte de sua família (“Rumo à alegre civilização”), torna-se muito verossímil, assim como as suas reações iniciais de desconfiança, aceitação hesitante e, enfim, revolta. O conto poderia ter terminado com um lugar comum, como a volta à civilização, no sentido que se desejar atribuir a este conceito vago. No entanto, e esta é outra característica muito marcante de Samanta Schweblin, o conto tem uma reviravolta decisiva nas últimas linhas, algo tão inesperado que força uma nova reinterpretação de tudo que foi lido. Nas mãos de um escritor com menos domínio narrativo, esta modificação abrupta representaria a quebra indissolúvel da verossimilhança criada no texto, a “suspensão momentânea da descrença” que Samuel Taylor Coleridge mencionou. Contudo, o acréscimo desta surpresa ao final acaba se tornando parte indissolúvel do texto, em especial por seu caráter ambíguo de inesperado/inevitável. Os contos de Pássaros na boca só terminam quando a autora assim decide e, até o tênue limite da última linha, tudo pode acontecer. Estabelecer – e manter – esta relação com o leitor é a característica de um grande escritor.
Em muitos momentos, os contos recordam as histórias de Antonio Di Benedetto, em especial por causa da atmosfera fantástica que ronda a realidade. No entanto, é importante diferenciar fantástico como irreal do fantástico como uma nova possibilidade do cotidiano. Samanta Schweblin não se detém no surrealismo explícito e na surpresa do inimaginável; ao contrário, ela busca tratar do surrealismo como um pequeno elemento de diferença inserido no mundo real. Neste aspecto, qualquer uma de suas histórias pode ser verdadeira, pode acontecer com qualquer pessoa, e é isto o que as torna tão assustadoras. É possível chegar em um bar, na beira de uma estrada deserta, e encontrar estranhos personagens, como um garçom tão baixo que não alcança as prateleiras das bebidas que deve servir, acompanhado do corpo de uma mulher extremamente gorda (“Irman”). Da mesma maneira, não seria impossível acreditar no chefe de uma organização criminosa que, como tarefa para ver a capacidade de um futuro contratado, ordena que ele mate um cachorro, missão esta com desdobramentos indesejados (“Matar um cão”). No mesmo estilo adotado por Di Benedetto, o fato de Samanta Schweblin caminhar tão próxima do real faz com que os seus contos incomodem pela aparência de verdade e pela sensação de que cada palavra é a mais honesta expressão linguística daquilo que está ocorrendo.
Todos os contos de Pássaros na boca são interessantes, mas, se tivesse que destacar um, realçaria aquele cuja leitura causou maior impacto e reflexão. Em “Mulheres desesperadas”, uma mulher é abandonada pelo marido no meio do campo, em um lugar desconhecido. Ela encontra outra mulher mais experiente, confrontando-a com seus sonhos e idealizações de amor eterno. Enquanto isto, uma quantidade indefinida de mulheres igualmente abandonadas no passado cerca a dupla com gritos de fúria que se assemelham ao coro das tragédias gregas, em uma atmosfera sufocante e assustadora. A revelação contida na última frase, longe do maniqueísmo costumeiro que cerca as relações entre homens e mulheres, revela grande compreensão de gênero, além de mostrar uma inefável tristeza pela forma com que os sexos se comportam nos relacionamentos. É um conto inquietante, que retira o fôlego do leitor, e perdura na sua memória mais tempo do que seria aconselhável.
É um pouco prematuro dizer que Samanta Schweblin seja a nova voz da literatura argentina. Existem muitas vozes e existem muitas maneiras de ver a literatura, o que é justamente sintoma da sua renovação constante. No entanto, este é um livro que deixa a vontade de ler mais. Também é um livro que, assim que se encerra, deixa no leitor a vontade de ser retomado, relido e discutido. Das muitas vozes de escritores que ecoam no deserto das histórias, a voz de Samanta Schweblin é uma daquelas que vale a pena ser escutada.
::: Pássaros na boca ::: Samanta Schweblin (trad. Joca Reiners Terron) :::
::: Benvirá, 2012, 224 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
[email protected]