Pequeno tratado da mentira
John Mearsheimer estabelece pontos de referência precisos a fim de que o público conheça as nuances da mentira internacional.
“Everybody lies”
Gregory House
Mearsheimer é professor de Ciência Política na Universidade de Chicago e atua como codiretor do Programa em Política de Segurança Internacional pela mesma instituição. Suas credenciais bastariam para, numa análise densa e sofisticada, abordar as tensões geopolíticas do mundo contemporâneo, assim como observar quais são as raízes dos conflitos que envolvem as principais potências do planeta. Nesse sentido, seu mais recente estudo poderia, entre outras coisas, lançar novas hipóteses acerca das nações emergentes, atentando, inclusive, para o surgimento de um novo sistema internacional. A despeito desse leque de possibilidades à mão, Mearsheimer preferiu algo mais simples, porém não menos contundente: escreveu um livro que propõe discorrer sobre “toda a verdade sobre as mentiras na política internacional”. Esse é o mote de Por que os líderes mentem, editado no Brasil pela editora Zahar.
Com apresentação do jornalista Merval Pereira, o livro não traz um texto revelador sobre os segredos da política internacional. Ao leitor interessado nesse tipo de narrativa, é melhor esperar pelos novos passos de Julian Assange e seu Wikileaks. Em Mearsheimer, o propósito é, talvez, mais conceitual, embora o livro seja breve: atentar para o fato de que a mentira é instrumento da política internacional e, em alguns casos, é até mesmo considerada necessária, em que pese o discurso corrente de que é preciso mais transparência nas relações políticas entre os países e destes para com suas respectivas populações. O autor, aliás, destaca que, ao contrário do que se costuma difundir, os Estados mentem menos do que se imagina uns para os outros. Sobre isso, comenta:
Quando iniciei este trabalho, esperava encontrar evidências abundantes de estadistas e diplomatas mentindo uns para os outros. Mas essa suposição inicial acabou por se mostrar incorreta. Em vez disso, tive de suar a camisa para encontrar os casos de mentira internacional que discuto no livro.
A estrutura do livro de Mearsheimer permite ao leitor acompanhar de forma bastante cristalina a linha de raciocínio do autor. Assim, de início, o pesquisador define conceitualmente as diferentes gradações existentes dentro da ideia de mentira. É possível que o senso comum não veja qualquer diferença quando se fala em omissão, enganação, mentira, torção. Ainda assim, a explicação de Mearsheimer estabelece pontos de referência precisos a fim de que o público conheça essas nuances. De modo semelhante, a seguir, o autor produz o que chama de inventário das mentiras internacionais, que, em verdade, serve como prévia para os capítulos que seguem.
Pois é no capítulo subsequente, “Mentira entre Estados”, que o professor justifica sua crença de por que os Estados não mentem entre si. Em síntese, porque não existem registros que sinalizem isso e o fato de que existe dificuldade em mentir e não ser descoberto, além do fato do custo-benefício ser altíssimo. Adiante, ao tratar da difusão do medo, o pesquisador destaca que é um subterfúgio necessário quando se trata de chamar a atenção para o inimigo externo e, para a surpresa daqueles que consideram o presidente George W. Bush ou mesmo Richard Nixon como os maiores mentirosos a ocuparem um cargo presidencial, Mearsheimer sublinha: “A difusão do medo tem desempenhado um papel importante na política externa dos Estados Unidos ao longo dos últimos setenta anos”. Ao citar exemplos, mais um golpe àqueles que gostam da alimentar a disputa partidária sob a perspectiva de um discurso moralista: o professor cita o caso de Franklin Roosevelt (na entrada para a Segunda Guerra Mundial) e Lyndon Johnson (para a Guerra do Vietnã), dois expoentes do partido Democrata, para só depois mencionar o nome de George W. Bush (com as famigeradas armas de destruição em massa no Iraque). Em outras palavras, em vez de produzir uma diatribe ideológica contra esse ou aquele governo, o professor prefere apresentar os casos que se circunscrevem ao caráter de sua análise. Nesse contexto, os personagens não são vilões ou mocinhos; antes, agentes políticos que atuam com os recursos que têm à mão.
É de acordo com essa perspectiva que Mearsheimer comenta o caso do acobertamento estratégico. Para o autor, tal atitude é tomada por líderes que desejam esconder um fracasso na mesma medida que não esperam danificar sua imagem no plano doméstico. É curioso observar que, numa sociedade cada vez mais marcada pelo discurso e pela manutenção da imagem, algumas dessas considerações podem ser percebidas como ultrapassadas. No entanto, vale a pena destacar que a análise do autor parte de uma premissa teórica das Relações Internacionais, alinhada à corrente realista, tomando como referência para sua observação pensadores como Kenneth Waltz, que entende o sistema internacional como anárquico, haja vista que não há entidade necessariamente superior no plano da política internacional. Tal perspectiva autoriza o professor a questionar os pressupostos mais próximos às estratégias do soft power (ou poder brando), entendendo, portanto, que a mentira não apenas pode ser um instrumento, como também que é um recurso utilizado pelos líderes em momentos de alta tensão política. Sobre isso, ele escreve:
De fato, os líderes por vezes pensam que têm o dever moral de mentir para proteger seus países. É claro que eles não mentem sempre quando o assunto é política externa, mas ocasionalmente dizem ou propositalmente sugerem coisas que eles sabem que não são verdadeiras. A população, no entanto, geralmente não os pune por suas enganações, a menos que elas conduzam a maus resultados. Parece claro que os líderes e seus povos acreditam que a mentira é parte integrante das relações internacionais.
A principal virtude de Por que os líderes mentem reside no fato de o autor dedicar-se de maneira bastante elaborada para produzir uma análise conceitual e com exemplos sobre a incidência, os casos e as responsabilidades da mentira na política internacional. Apesar de enxuto e de, a certa altura, soar repetitivo, a obra consegue se sustentar – ao contrário das mentiras inconvenientes de algumas lideranças políticas.
::: Por que os líderes mentem ::: John J. Mearsheimer (trad. Alexandre Werneck) :::
::: Zahar, 2012, 180 páginas :::
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