Dezessete segundos – o tempo de muitas vidas

por Gustavo Melo Czekster (09/05/2012)

O romance se passa, inteiro, na exiguidade de dezessete segundos de uma luta de boxe

"Segundos fora", de Martín Kohan

Para Julio Cortázar, a literatura poderia ser sintetizada na imagem de uma luta de boxe: enquanto o romance, por sua natureza caudalosa, vasta, com múltiplos narradores e pontos de vista, ganharia a atenção do leitor da mesma forma que um boxeador vence a luta por pontos, o conto, pela brevidade e pela concentração do efeito pretendido, conquistaria o leitor de maneira idêntica a um boxeador que vence a luta por nocaute, através de um soco certeiro que seria, ao mesmo tempo, surpreendente e inevitável. Porém, o que se pode dizer de um romance que se passa, inteiro, na exiguidade de dezessete segundos de uma luta de boxe? Dezessete longos, infindáveis segundos, onde vidas são decididas, destinos são modificados e nascem os mistérios. Este curto espaço de tempo, que muitos desconsiderariam na velocidade da vida cotidiana, concentra toda a ação dramática de “Segundos Fora”, de Martín Kohan.

A referência a Cortázar não é ocasional. O próprio autor menciona o conto “Torito”, presente em Final de Jogo, trazendo à tona o nome de Cortázar, único escritor citado no romance. Da mesma forma, tanto pela estrutura do livro quanto pela escolha de diferentes focos narrativos, Kohan deixa entrever a sombra de O Jogo da Amarelinha, com os seus jogos que extrapolam a lógica narrativa e brincam com as percepções do leitor. No entanto, ao contrário de Cortázar, o autor não se limita a uma brincadeira estética; as suas inovações na estrutura objetivam transmitir a tensão da história, colocar o leitor em cima do ringue de boxe e, ao mesmo tempo, no meio da caçada a um possível assassino. Como exemplo, podemos citar o próprio nome dos capítulos: quando um boxeador cai, a contagem do juiz vai até dez, sendo que, se o caído não estiver pronto até o último número, a luta acaba. Contudo, no caso da luta entre Jack Dempsey e Luis Ángel Firpo, o juiz – por motivos explicados no livro e que, pela sua singeleza quase patética, acabam se tornando espantosos – extrapola a contagem. A partir do capítulo/segundo onze, cada número passa a ser acompanhado por sinais de exclamação (Onze!!, Doze!!, e assim por diante), como se alertassem o leitor que o livro está no final, como se avisassem que um grande erro está acontecendo. É um recurso simples, mas que transmite ainda mais urgência para a narrativa. O conteúdo destes últimos capítulos acompanha a mudança dos títulos, pois o narrador que termina o capítulo anterior reinicia o posterior desconstruindo a impressão deixada poucos instantes antes. Da mesma forma, os trechos são mais curtos, mais prementes, demonstrando que os dezessete segundos de queda estão chegando ao fim e o tempo iniciará a sua contagem normal depois daqueles momentos em que as suas engrenagens andaram em câmera lenta.

Segundos Fora conta, em primeiro plano, a luta de boxe entre Jack Dempsey e Luis Ángel Firpo, El Toro Salvaje de Las Pampas, ocorrida em 1923, e os fatídicos dezessete segundos em que o boxeador argentino acertou um soco tão poderoso no campeão mundial dos pesos pesados (“o campeão de todos os pesos”) que o jogou para fora do ringue, criando a possibilidade de transformar a derrota prevista em um triunfo de proporções épicas. Para tal relato, além das percepções desnorteadas do lutador atingido, o autor conta a história incidental de dois personagens em diferentes pontos de vista em relação ao ringue: o juiz, Mister John Slowest Gallagher, um ex-boxeador frustrado, imerso em uma relação de amor e ódio com sua antiga namorada, e Donald Mitchell, fotógrafo de eventos esportivos, que enxerga o mundo através de quadros na sua câmera fotográfica e, subitamente, por força das circunstâncias, acaba sendo envolvido na situação que só deveria testemunhar e registrar.

Em um segundo plano, Kohan conta a história de dois repórteres de Trelew, cidade do interior da Argentina, que recebem a incumbência de preparar um caderno especial do jornal contando os fatos ocorridos 50 anos atrás, em 1923. Enquanto Verani pretende contar a história da luta de boxe que parou o país naquele ano, Ledesma decide relatar a excursão feita pelo regente e compositor Richard Strauss e a apresentação (inédita) da primeira sinfonia de Gustav Mahler no Teatro Colón, em Buenos Aires. Esta sequência é integralmente narrada através de diálogos entre os dois jornalistas, cada um defendendo o seu ponto de vista: enquanto um deles é de conclusões e humor refinado, representando a cultura dita erudita, o outro desfere alegações simplistas e grosseiras, em uma síntese do que seria a cultura popular. Mais do que um recurso da narrativa, estes diálogos aproximam-se do embate travado no ringue de boxe, assemelhando-se a um duelo retórico tão implacável quanto uma luta selvagem. Lutar com palavras pode ser mais devastador do que lutar com punhos.

Por fim, no terceiro e último foco de tensão, é contada a investigação, feita por Verani, Ledesma e Roque (personagem que testemunha todos os eventos envolvendo os dois jornalistas), de uma morte ocorrida no City Hotel em 1923 e as dúvidas se teria sido um suicídio ou um homicídio. Como os eventos que cercaram esta morte foram abafados e reduzidos a uma simples menção no canto da página da crônica policial, os repórteres precisam reviver fatos ocorridos meio século antes, assim como as mudanças enfrentadas pela sociedade.

-- O autor --

Ao contrário do que se poderia imaginar, o maior atrativo do livro não são as três histórias principais contadas. As tramas secundárias são ainda mais instigantes, nem tanto pelas respostas, mas por causa das perguntas que acabam criando. No meio dos diálogos de Ledesma e Verani, são relatados trechos da vida de Gustav Mahler, deixando entrever que a sua mulher o odiava, tanto que ela acabou por estragar a amizade e a veneração que Richard Strauss nutria pelo seu já falecido marido em uma atitude que parece gratuita (apesar do personagem representativo da cultura popular sentenciar, com a dureza da sabedoria das ruas, que uma mulher pode levar uma vida inteira buscando vingança, em uma conclusão que ecoará em outras tramas secundárias do livro). Além disso, uma forte personagem feminina surge na vida de Roque, deixando nas entrelinhas um relacionamento oculto do passado, mas, ao perceber que o personagem não pretende reavivar a relação de outrora, age com ímpeto vingativo, tentando destruir o sonho e a investigação dos repórteres (até por não entender a quem poderia interessar uma investigação daquele tipo, ainda mais de uma morte ocorrida há tanto tempo).

Entre outros detalhes ocultos na narrativa, a mais interessante trama secundária são as pistas de um outro delito – a insinuação de um abuso infantil – que teria sido cometido diante dos olhos dos jornalistas, ao contrário da distante morte ocorrida na capital do país. O fato dos personagens estarem hipnotizados por um crime distante, deixando escapar o delito próximo, revela uma nova faceta cortazariana do autor, clara inspiração de “As babas do diabo”, conto que deu origem ao filme Blow Up, de Antonioni. Torna-se mais fácil e distinguível ver o que está longe do que as particularidades do perto. A própria possibilidade do crime não-investigado faz com que os personagens adquiram novos contornos aos olhos do leitor: Roque, que era uma espécie de balanço entre os dois extremos retóricos do erudito e do popular, passa a ser a testemunha cegada pela verve dos companheiros e, por conseguinte, parcial e desconfiável; da mesma forma, os diálogos ferinos e acalorados de Ledesma e Verani, assim como o tratamento polido entre dois oponentes agressivos (que se chamam de “senhor” enquanto se agridem), passam a ser vistos como a faceta visível de um confronto muito mais insidioso e oculto. Interessante que, em determinado momento do livro, onde se conta a história do fim do casamento de Ledesma, chega-se a três possibilidades: ele seria um covarde, um violento impulsivo ou um omisso. A sua reação diante do abuso é a resposta para esta dúvida, mas cabe ao leitor responder, pois os personagens sequer vislumbram tal possibilidade – ou podem estar utilizando a investigação longínqua de um crime do passado para esconder a realidade vivida.

Não é um livro de fácil leitura, mas possui uma trama envolvente e dinâmica, que, quando prende o leitor, o enreda na teia narrativa como uma calma aranha. O mosaico de histórias entrecortadas eleva a temperatura da história. Em muitos momentos da leitura, percebe-se uma linguagem que chega ao limite do cinematográfico, com a aceleração e o retardamento do tempo da ação, o esmaecimento de outras imagens no canto da visão, a utilização de flashbacks. É difícil imaginar um livro que tenha tratado de forma tão fidedigna os eventos de uma luta de boxe, assim como tenha sido tão respeitoso e vibrante ao abordar as minúcias da música clássica. Da mesma forma, como todo bom romance policial, um livro capaz de deixar a resolução do mistério literalmente na última folha – abrindo novas e incômodas interpretações – e sem perder a tensão narrativa é um feito notável. O leitor se vê transplantado para um ringue de boxe, em uma angustiante e infindável sensação de atordoamento, quase como se também tivesse levado um soco, assim como caminha pelas ruas da Buenos Aires do passado, vivendo uma época em que as pessoas tinham confiança no futuro e onde o destino da Argentina era fulgurante.

Após acompanhar a queda do boxeador em câmera lenta, passando pelo seu estupor e os pensamentos íntimos que sacodem um homem desnorteado, é com decisão que o leitor se ergue, junto com Jack Dempsey, para ganhar a luta/leitura. O leitor acompanha os dramas pequenos do juiz da luta e do fotógrafo, imaginando qual a relação que possui com o resultado final, e constata que a vida possui, no seu ritmo próprio, estranhas maneiras de resolver situações. Da mesma forma, é o leitor que, junto com a testemunha Roque, termina a investigação da morte ocorrida muitos anos atrás, em uma sucessão de descobertas que fazem cultura popular e erudita se encontrarem unidas na singularidade da morte de uma pessoa. Mas, mais do que tudo, o leitor aprende que dezessete segundos pode ser o tempo necessário, imprescindível, para que muitas vidas sejam decididas.

::: Segundos fora ::: Martín Kohan (trad. Heloisa Jahn) :::
::: Companhia das Letras, 2012, 256 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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