Jogar videogame, sugere Johnson, é uma espécie de implementação lúdica do método científico
Os arautos do apocalipse cultural – da ideia de que novas tecnologias e formas de entretenimento estão lançando a humanidade numa espiral descendente de estupidificação – são, provavelmente, mais numerosos que os que proclamam a iminente Segunda Vinda de Cristo. Também pertencem a uma tradição muito mais antiga: não é difícil imaginar os doutos escribas de tabuinha de argila da Babilônia tremendo diante de inovações perigosas para a preservação da alta cultura, como o papiro e o pergaminho. Onde, devem se ter perguntado os ludistas midiáticos da Mesopotâmia, isso vai parar?
Vozes que, vinte ou trinta anos atrás, teriam carpido lágrimas sobre a deterioração mental trazida pela televisão ou pelas histórias em quadrinhos hoje lançam alertas soturnos a respeito da internet, dos videogames, dos reality shows e da violência e infantilização crescentes dos grandes sucessos do cinema. Contra esse oceano de análises distópicas, erguem-se, aqui e ali, gotas de dissidência. Uma delas é Tudo que é ruim é bom para você, de Steven Johnson, lançado no Brasil pela Zahar, em boa tradução de Sérgio Góes.
A tese central do livro de Johnson é de que a chamada “cultura pop” – os videogames, os seriados e shows de TV e, em menor escala, os filmes do chamado “cinemão” hollywoodiano – estão se tornando cada vez mais complexos e inteligentes, e que os pais e críticos culturais em geral não devem se desesperar porque os jovens (e as pessoas em geral) passam boa parte de seu tempo livre, por exemplo, jogando Grand Theft Auto ou assistindo a Big Brother.
Fundamentais para essa tese são a constatação de que é preciso dissociar conteúdo explícito de qualidade – o fato de uma obra estar saturada de sexo e violência, por exemplo, não implica que ela seja ruim: a contagem de corpos da Ilíada é provavelmente maior que a de toda a filmografia de Sylvester Stallone – e o conceito de demanda cognitiva: o quanto o cérebro é exigido para que haja fruição de uma obra.
Armado dessas duas ideias, Johnson pede ao leitor que concorde em comparar “laranjas com laranjas”. Isto é, que não se caia na tentação de medir Big Brother com uma régua calibrada por Dostoiévski, mas, por exemplo, pelo velho Show de Calouros de Sílvio Santos. Em sua primeira parte, o livro dedica-se a isso: a buscar métricas e argumentos para demonstrar que mesmo o lixo cultural de hoje é mais sofisticado e interessante que o de décadas passadas. Afinal, a carga cognitiva exigida de um fã de Big Brother – que envolve decifrar as relações interpessoais na “casa” e extrapolar a estratégia e o comportamento dos participantes – é ordens de grandeza maior que a do fã do Show, que se resumia a olhar, embasbacado, enquanto o homem-avestruz engolia cacos de vidro.
Falando de seriados de TV, Johnson mapeia o número de relações e interações entre personagens que é preciso compreender para fazer sentido de 24 Horas ou da Família Soprano e o que era preciso para assistir a Mary Tyler Moore ou Dragnet, e chega à mesma conclusão: a demanda cognitiva é muito maior nos produtos atuais.
Demanda cognitiva é, compreensivelmente, o fulcro da defesa dos videogames, que ocupa a maior porção da primeira parte do livro. Aqui não se trata apenas de constatar a crescente sofisticação do meio – de Pac-Man a Myst – mas de defender sua legitimidade como manifestação cultural autônoma e relevante. Trata-se, no fim, da mesma batalha já travada pelos quadrinhos, pelo cinema, pela televisão. De modo convincente, Johnson argumenta que os jogos estimulam o cérebro de um modo diverso que as mídias narrativas tradicionais, na medida em que instigam o jogador a testar os limites do universo criado pelos programadores – a buscar respostas a questões como, se meu personagem saltar de um prédio de dez andares, ele vai se esborrachar lá embaixo ou será que a gravidade é inconsistente neste jogo? Jogar um videogame moderno, sugere o autor, é uma espécie de implementação lúdica do método científico.
Johnson concede, no entanto, que essa linha de crescente sofisticação dos produtos culturais de massa parece não ter sido muito bem seguida pelo cinema. Para ficar num exemplo do próprio autor, ET era certamente um filme mais instigante que Transformers. Ele atribui a discrepância à questão do tempo: um seriado de TV pode se prolongar por anos a fio, ganhando camadas de complexidade à medida que a trama se desenrola; já os filmes estavam limitados ao teto de duas ou três horas.
Essa é uma constatação que lhe permite lançar-se na segunda parte do livro, onde busca explicar quais as forças por trás desse processo de complexificação e sofisticação: afinal, não seria natural que a mídia de massa corresse atrás, sempre, do menor denominador comum? Seria, responde Johnson, se os meios tecnológicos não tivessem mudado. Quando os programas de TV tinham apenas uma oportunidade de capturar a audiência – quando qualquer piada mais sofisticada representava um risco concreto de que parte da audiência mudaria de canal, por não pegar a graça da coisa – então, sim, a corrida ao menor denominador comum era uma força de mercado irresistível. Mas aí surgiram o videocassete, o DVD, a internet, e de repente a receita perdida com o público que fugia da piada inteligente podia ser resgatada vendendo o programa para as pessoas que tinham se intrigado com ela, e queriam revê-la de novo e de novo. No caso dos reality shows, a expansão do espaço midiático para a internet, pay-per-view, etc., acaba gerando pressão no mesmo sentido.
Enfim, o argumento é de que quando a cultura pop deixou de ser um item de consumo imediato e virou item de coleção ou de desfrute prolongado (via listas de discussão, websites, análises em blogs, etc.), as forças de mercado passaram a atuar no sentido oposto: as pessoas só vão querer ter o box de um seriado em casa se os episódios puderem ser revistos diversas vezes, sem saturar; se as tramas suportarem horas e horas de discussão online sem se exaurir. Daí, Os Simpsons substiuem Os Waltons, e 24 Horas engole Starsky & Hutch. De modo análogo, SimCity destrona Pac-Man, e o Big Brother põe o Show de Calouros de lado. Este é o paraíso de McLuhan, onde a dinâmica e a interação dos meios incentiva a mensagem a transformar-se em algo cada vez melhor.
Johnson afirma que, a despeito dessa análise otimista, não se considera um entusiasta do poder benevolente do mercado: da mesma forma que a configuração atual de tecnologias e mídias pede do mercado que ponha coisas cada vez mais sofisticadas na tela, há trinta anos o sinal apontava na direção oposta, e nada impede que outras inversões venham a ocorrer.
Ao longo de todo o livro, e principalmente na conclusão, ele chama atenção para o fato de que seu argumento não deve ser usado em detrimento das formas tradicionais, como a literatura e o teatro, e nem como uma espécie de passe livre para que as pessoas reduzam seu consumo de cultura a reality shows e videogames. O que ele defende é uma espécie de “dieta equilibrada” de produtos de mídia, sem o desprezo intelectual muitas vezes lançado sobre os formatos recém-chegados. E, mesmo reconhecendo que muita coisa – principalmente os reality shows – é lixo, ele nos desafia a encarar o fato de que o lixo atual é bem melhor que o lixo do tempo de nossos pais.
::: Tudo que é ruim é bom para você ::: Steven Johnson (trad. Sérgio Góes) :::
::: Zahar, 2012, 188 páginas :::
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Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.