O livro é um passeio guiado pela história da matemática e sua relação com a filosofia, as artes e a ciência.
Um novo livro do matemático britânico Ian Stewart é sempre uma alegria. Em parceria com o biólogo Jack Cohen, ele é autor de duas de minhas leituras prediletas: o romance de ficção científica Heaven e a obra de divulgação/especulação biológica What does a Martian look like?, que analisa desde a teoria da evolução e até a probabilidade matemátca de as leis do Universo permitirem a existência de seres inteligentes.
O livro mais recente, 17 equações que mudaram o mundo, sai pela Zahar, mesma editora que já trouxe ao Brasil várias outras obras de Stewart, como os dois divertidos volumes Mania de matemática (onde, entre outras coisas, discute-se a forma mais racional de um grupo de piratas sanguinários dividir seu butim) e a miscelânea Almanaque das curiosidades matemáticas, que nos informa de que Bram Stoker, o autor de Drácula, era matemático.
A nova obra entrega o que promete, e mais: além de apresentar, explicar e discutir 17 equações fundamentais para o funcionamento da civilização – começando pelo Teorema de Pitágoras, e terminando na fórmula de Black-Scholes, usada para orientar mercados de opções e futuros – Stewart contextualiza a história da descoberta (ou criação) de cada equação, relaciona-as entre si (Pitágoras e a fórmula da Teoria da Relatividade Geral, por exemplo, têm uma relação íntima) e, talvez o mais interessante para quem tem apenas uma curiosidade passageira por física e matemática, discute o impacto das equações na cultura, na arte e na filosofia.
O capítulo sobre a Equação da Onda, que descreve a propagação de vibrações, por exemplo, é também uma aula de teoria musical, e o capítulo a respeito do Teorema de Pitágoras introduz conceitos que depois são retomados no que trata de topologia – a parte da matemática que estuda formas e espaços – e, como já foi dito, na Relatividade. Nessa trinca de capítulos, o autor oferece, entre outras coisas, uma explanação clara e simples para o fato de que um espaço curvo não precisa de um “espaço fora si” onde curvar-se, ao contrário do que sugere o senso comum.
Stewart também resolve alguns mistérios recônditos da matemática escolar que parecem perpetuamente ocultos para quem, ao fim do ensino médio, migra para as Humanidades. Por exemplo, para que servem logaritmos (resposta: eles permitem transformar multiplicações em somas, o que facilita muito as contas – ou facilitava, antes da invenção dos computadores), ou como e por que diabos os matemáticos aceitaram coisas como números elevados a potências fracionárias, a expoentes negativos ou a zero, todas operações sem sentido na definição tradicional de potenciação – que é, apenas, multiplicar um número por si mesmo tantas vezes quanto diz o expoente.
Se há, aliás, algo triste na leitura do livro é a comparação entre a exposição sempre interessante do autor e a forma como a matemática é ensinada nas escolas – ou era, no meu tempo. Stewart mostra que há uma boa razão por trás de cada norma aparentemente arbitrária. Para quem teve de estudar as regras que regem números complexos e matrizes como se fossem declinações verbais de alguma língua morta, ver esses objetos matemáticos ganhando vida no estudo da forma do Universo e de outros problemas fundamentais é quase uma revelação. Da leitura também fica a impressão de que os currículos atuais de matemática do ensino médio poderiam se tornar mais úteis e relevantes para a cidadania se passassem a incluir algumas noções de estatística e, talvez, um toque de cálculo diferencial. O valor dessas ferramentas para a correta interpretação do que sai nos jornais – notícias e também gráficos – é difícil de subestimar.
Falando em estatística, foi no capítulo sobre a distribuição normal que encontrei o que me parece ser um de dois erros que, de certa forma, comprometem a competente tradução de George Schlesinger. A versão nacional, ao discutir o uso de inferência estatística, diz que se o teste estatístico de um evento gerar uma probabilidade de “0,05%”, o evento em questão muito provavelmente não foi causado pelo acaso, com um nível de confiança de 95%. Na verdade, o correto seria 0,05 (como consta do original, consultado via função “look inside!” da Amazon.com), ou então 5%. O sinal de porcentagem depois da cifra 0,05, presente no texto em português, tem forte potencial de confundir o leitor que esteja encontrando o tema pela primeira vez. O erro se repete quando a probabilidade de “0,01%” é relacionada a um nível de confiança de 99%. O correto seria 0,01, ou 1%.
Outro erro que tem boa chance de fazer engasgar o leitor não familiarizado com o tema aparece no capítulo sobre mecânica quântica, onde o original inglês “eigenfunction” é traduzido ora como “autofunção” e ora como “função eigen”, sem nenhuma explicação da transição entre terminologias, enquanto que o original (mais uma vez, checado via Amazon) usa, consistentemente, “eigenfunction” o tempo todo.
Livros sérios de divulgação científica para leigos – isto é, excluindo-se os que apenas usam a ciência como pretexto para vender mistificações – tendem a ser conservadores em sua abordagem, buscando apresentar ao público o consenso da opinião científica no momento em que são escritos. Stewart faz isso, mas também não se furta a, uma vez exposta a versão ortodoxa, pôr o pescoço a prêmio e apresentar sua visão discordante em alguns pontos.
Por exemplo, ele desaprova a prática, mais ou menos generalizada, de se universalizar o conceito de “ordem” entronizado na Segunda Lei da Termodinâmica. Essa lei normalmente é interpretada como afirmando que, em qualquer sistema isolado, a desordem tende a aumentar, o que seria válido até mesmo para o Universo como um todo. Stewart discorda: para ele, a relação entre entropia e a “flecha do tempo” – a ideia de que a desordem universal aumenta à medida que caminhamos para o futuro – é algo que vem não da equação em si, mas da forma como pensamos nela, numa aplicação, para ele, descontextualizada.
Stewart também desconfia de três dos pilares da moderna cosmologia: a existência da matéria escura, da energia escura e a inflação cósmica que se teria seguido ao Big Bang. Depois de apresentar, serenamente, a evidência em favor dessas três teorias – hoje tratadas, para todos os efeitos práticos, como fatos – ele questiona sua solidez lógica e epistemológica, e aponta a existência de formulações alternativas, não consensuais, mas também elaboradas, com rigor matemático, dentro da comunidade científica. Uma sugestão que oferece é o Novo Paradigma do Universo, de Colin Rourke e R.S. McKay. Quem estiver interessado pode encontrar um resumo aqui (pdf). Cá comigo, eu gostaria de saber o que o Daniel Bezerra pensa disso.
De todas as equações apresentadas no livro, a que mais me fascina – talvez por deformação profissional – é da Teoria Matemática da Comunicação, de Claude Shannon, base para a internet, o CD, o DVD, a telefonia celular e todas as modalidades contemporâneas de comunicação digital. Não consigo deixar de sentir um certo gosto amargo de ironia ao compará-la com a Teoria Social da Comunicação que estudei na faculdade – e que é base para, fundamentalmente, muita conversa fiada de boteco.
17 equações que mudaram o mundo é um passeio guiado pela história da matemática e sua relação com a filosofia, as artes e a ciência. É também um livro extremamente atual, registrando desenvolvimentos bem recentes, incluindo a suposta descoberta – já desmentida – de neutrinos mais velozes que a luz por uma equipe de cientistas italianos. Sua discussão da relação entre a Lei da Gravidade e a Teoria do Caos também é bastante atual, já que lança mão de trabalhos recentes (e, para quem curte ficção científica, interessantíssimos) sobre a aplicação do caos no cálculo de trajetórias mais eficientes para naves espaciais. Para o público em geral, no entanto, a peça de resistência provavelmente é o capítulo final, que discute a equação de Black-Scholes, que traz uma análise do papel dos modelos matemáticos usados no mundo das finanças no desencadear da crise global de 2008.
Mesmo com as falhas que, em alguns pontos, tornam a tradução confusa, quando não enganosa, para o leigo, a edição nacional não deixa de ser um livro ótimo não só para quem já conhece alguma coisa a respeito dos assuntos tratados e quer se atualizar, ao mesmo tempo em que revê contextos, fundamentos e aprende um pouco mais sobre a história de cada equação, como também para os leitores meramente curiosos sobre aquilo que o físico ganhador do Nobel Eugene Wigner chamava de “Absurda Eficácia da Matemática nas Ciências Físicas” – o fato de que as regularidades da natureza se prestam a descrições precisas por meio dessas estranhas abstrações da mente humana, os símbolos matemáticos.
::: 17 Equações que Mudaram o Mundo :::
::: Ian Stewart (trad. George Schlesinger) :::
::: Zahar, 2013, 432 páginas :::
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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