As três mortes do intelectual

Seja porque o regime representativo atravessa uma crise de longa duração, seja porque a distância cognitiva entre as “elites” e as “massas” são muito maiores do que a teoria liberal-democrática supunha, uma parcela considerável dos cidadãos, em qualquer país, atribui um papel sacerdotal aos líderes e partidos políticos.

(nota do editor: os pensamentos abaixo foram apresentados por Lamounier em um evento em sua homenagem realizado no último dia 25 de abril, no Instituto Fernando Henrique Cardoso.)

– Oliveira Vianna (1883-1951), ideólogo do Estado Novo -

Vou discorrer sobre um personagem histórico que teve entre suas principais características o fato de haver morrido. Refiro-me ao intelectual, naturalmente. Ele morreu três vezes. Morreu em sua tríplice condição de tribuno, profeta e sacerdote. O tribuno engaja-se em causas justas, defendendo pessoas, coletividades ou instituições. O sacerdote é o guardião das normas, da fronteira entre o permissível e o não permissível, dos padrões de comportamento, do que pode ou não ser lido, pesquisado, divulgado; administra a incerteza dos crentes quanto a tais limites. O profeta anuncia mundos novos e afirma poder conduzir os crentes até eles.

O que aprendemos com as três mortes do intelectual?

Consta que o tribuno foi condenado por alta traição e fuzilado. Quem o acusou foi o escritor francês Julien Benda, no livro La Trahison des Clercs, de 1927. Mas eu não acredito que o fuzilamento tenha se consumado. Julien Benda devia ser processado por falsa declaração de óbito. E digo mais: a não-morte do tribuno é um fato intelectual e político de grande relevância na atualidade. No Brasil e no mundo.

Sob a influência das ideologias historicistas, nós demoramos várias décadas para aceitar a noção de uma humanidade comum. Quarenta ou cinquenta anos atrás – naquela época a expressão “direitos humanos” ainda não era usada –, toda referência a direitos do homem, ao valor do indivíduo e equivalentes era descartada sumariamente como uma evocação da filosofia dos direitos naturais do século 18, vale dizer, como um conceito metafísico e parte essencial da ideologia burguesa.

Para nos contrapormos a esse discurso, basta lembrar Garcia Lorca defendendo a minoria mais odiada da Europa e da Espanha: os ciganos. Ou, antes dele, o argentino José Hernández, grande sucesso de público: seu poema Martín Fierro deu vida, por assim dizer, ao “gaucho pampeano”, trabalhadores rurais que labutavam num estado de extrema pobreza, ignorados pela então próspera sociedade argentina. A contraparte de Hernández no Brasil foi Euclides da Cunha: Os Sertões conferiu forma humana e identidade aos beatos de Antonio Conselheiro. Atualmente, vemos Yoani Sánchez denunciando o caráter totalitário do regime de Havana e dando voz a uma parte considerável da sociedade cubana.

A figura do tribuno ganhou terreno também no plano institucional, por exemplo com o Ministério Público brasileiro. Não menos importante, a Declaração de Helsinki, de 1973, consagrou o conceito de Direitos Humanos como uma figura jurídica internacional. Mesmo não sendo um preceito mandatório, tal conceito tem fortalecido a luta de pessoas e grupos oprimidos no mundo inteiro; os dissidentes soviéticos, por exemplo – Andrei Sakharov à frente –, souberam fazer bom uso dele.

O profeta teria também morrido, mas ninguém sabe ao certo em que pé se encontra seu processo, tantos são os requerimentos de revisão. A causa mortis teria sido uma overdose de ideologia, conforme atestou Raymond Aron num de seus excelentes livros: O Ópio dos Intelectuais. Publicada na França com esse título, em 1955, a obra apareceu no Brasil em 1959 com o curioso título de Mitos e Homens: seria uma receita do editor para o livro não ser lido?

Como produtor de utopias seculares, é possível que o profeta tenha mesmo perecido; se não pereceu pelo ópio, dificilmente sobreviverá às condições do mundo atual, a este nosso mundo de comunicações instantâneas, da internet e do audiovisual. Esses poderosos meios estão hoje ao alcance de milhões de pessoas, possibilitando-lhes desmistificar rapidamente os paraísos mirabolantes que algum profeta aggiornato lhes queira oferecer.

Eu não seria tão otimista em relação às ideologias religiosas – e aqui não me refiro só ao islamismo. Nelas, como é óbvio, o profetismo conserva muito vigor. Mas não vou abordar neste momento o fenômeno religioso; as religiões só entram em meu âmbito de preocupações quando extravasam para a política e a vida pública, e sobretudo quando isso acontece através da violência.

Mesmo no âmbito secular e político, há uma distinção importante a ser feita.

Profecias moderadas, comedidas e abertas à discussão têm evidentemente um papel muito positivo: rejuvenescem as utopias, e nenhum intelectual ou político sério pode viver sem alguma.

Profecias escatológicas são uma outra questão, e elas proliferam com extrema facilidade na América Latina. Profetas desse tipo necessariamente se arrogam uma capacidade de conhecer antecipadamente o devir histórico, e por esse caminho resvalam facilmente para a auto-atribuição de uma superioridade ética, para a justificação dos meios pelos fins e, como não poderia deixar de ser, para tentativas de deslegitimar a regra fundamental da democracia: a competição pelo poder dentro de regras preestabelecidas e aceitas por todos. Por definição, o profetismo escatológico é uma recusa da alternância no poder, e portanto da própria democracia.

Entendamo-nos: é óbvio que o profetismo escatológico não explica suficientemente a ocorrência de desequilíbrios políticos duradouros, ou seja, o predomínio exagerado de um partido e a consequência provável de tal situação: o apego ilegítimo ao poder, a pretensão de nele permanecer ad aeternum.

No Brasil, desequilíbrios desse tipo devem-se a diversos fatores, entre os quais quero destacar dois. Um, de caráter histórico: o patrimonialismo, vale dizer, o peso desproporcional do Estado em relação à sociedade, fenômeno muito bem estudado por Raimundo Faoro e Simon Schwartzman. O segundo, atual, é a debilidade da oposição. Aqui é preciso ressaltar o risco que corremos – nós e outros países da América Latina – de repetir (talvez de forma piorada) a experiência dos anos 30-60, época em que líderes profético-populistas ascenderam ao poder com a pretensão de nele permanecerem por muito tempo. Em sociedades complexas como as nossas estavam se tornando, eles não podiam usufruir despreocupadamente a posição dominante que conquistaram; para o bem em certos casos, para o mal em outros, eles enfrentavam a resistência de grupos sociais e políticos relativamente poderosos, que a eles se opunham em nome de outras concepções acerca do Estado e da economia. Não estou emitindo um juízo de valor generalizado acerca de tais oposições, algumas delas careciam também de convicção democrática; estou apenas constatando que existiam, e portanto que existia uma competição política atual ou potencial, um dado fundamental para a evolução de um sistema político na direção da democracia. Presentemente, é uma situação precisamente oposta o que observamos em diversos países da América Latina: na Venezuela, no Equador, na Argentina, e também no Brasil. Em todos esses casos, as oposições encontram-se num estado de extrema debilidade. Esta questão está a exigir uma reflexão aprofundada. Deixo aqui a sugestão e passo ao sacerdote, ou seja, à terceira das três mortes de que falei no início.

O sacerdote, como vimos, é o guardião dos livros sagrados, o curador da doutrina, um atento vigia na fronteira do permissível com o não permissível. Na Antiguidade ele tinha o poder de oferecer vítimas à divindade.

Não se sabe ao certo se ele faleceu, embora tal hipótese seja frequentemente aventada. Da mesma forma que o profeta, o sacerdote não se adapta com facilidade ao mundo da internet e do audiovisual. O ambiente acadêmico também evolui num sentido que lhe pode ser letal: o da institucionalização e da extrema especialização e profissionalização da pesquisa científica.

No plano das ideologias políticas, há diferenças importantes quanto ao sentido do sacerdócio.

Os marxistas acreditam ter uma base científica, da qual se segue a chamada unidade da teoria e da prática. Guiados pela teoria, os líderes supostamente dispõem de critérios para avaliar a ação do partido, num processo pelo qual eventuais “desvios” são evitados e a “linha justa” continuamente reafirmada. Por si só, esta sentença delineia a função sacerdotal, uma função crítica, evidentemente; tão crítica que foi em geral assumida pelo Secretário Geral ou pelo Comitê Central como um todo, não por um individuo específico. No passado recente, um bom exemplo foi o filósofo francês Louis Althusser, a quem coube a tarefa de fechar o Partido Comunista Francês contra os desvios “idealistas” inspirados no jovem Marx.

No nazifascismo, o caso de maior repercussão, sem dúvida o mais chocante, é o do filósofo Martin Heidegger – cuja enorme influência sobre Jean-Paul Sartre é um fato conhecido. O envolvimento de Heidegger com o nazismo começou a ser desvendado em 1962 pelo jornalista Guido Schneeberger, e a meu ver concluído no início dos anos 80 pelo filósofo chileno Victor Farías, cujo livro sobre o assunto não deixou pedra sobre pedra.

O caráter “sacerdotal” da ambição política de Heidegger evidenciou-se em diversas ocasiões, mas com especial clareza em 1933, ao tomar posse na reitoria da Universidade de Friburgo. Ao discurso proferido por Heidegger na ocasião, o também filósofo Benedeto Croce se referiu como “servil e indecente”. Haveria uma relação intrínseca entre o pensamento filosófico e a ação política de Heidegger? Como é óbvio, esta não é uma indagação que se possa responder com ligeireza; mas é também certo que o próprio Heidegger a tornou em certa medida ociosa, ao oferecer sua filosofia como base para o “reencontro da nação alemã com seu destino”. Segundo o filósofo Carl Ott, Heidegger pretendeu “den Führer fuhren”, ou seja, orientar o líder, conduzir o condutor.

No Brasil, a pretensão sacerdotal mais bem configurada foi talvez a do protofascista Oliveira Vianna, a quem o historiador Wilson Martins se referiu como o ideólogo “quase oficial” do Estado Novo e como “diretor de consciência da Nação brasileira”.

Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas creio que o essencial está claro: na vida política, o pedigree do intelectual-sacerdote não é bom. É muito ruim, para ser exato, e não por acaso: há uma contradição insanável entre a função de pensar com independência, própria do intelectual, e a de ditar normas ou dirigir consciências, própria do sacerdote-político. Essa é sua fatal vulnerabilidade.

Figuras “sacerdotais” fazem certo sentido na vida acadêmica e na pesquisa científica; estas admitem, mais que isso, precisam de líderes, de orientadores, de diretores aptos a antecipar tendências e a manter uma visão de conjunto. Os individuos que se investem em tais papéis se percebem ou são percebidos por seus assistentes e estudantes como quase-sacerdotes: assim foi com Florestan Fernandes e José Arthur Giannotti na USP, e com Mário Henrique Simonsen na FGV-RJ, para ficarmos só nestes três
exemplos.

Agora bem, as sociedades democráticas, por essência avessas a todo holismo, não precisam e não admitem sacerdotes. Nelas, a norma “sacerdotal” é a que resulta dos embates entre os partidos, dentro de cada partido e entre os grupos sociais de maneira geral; nem mais e nem menos. Esta é a prescrição filosófica liberal e é o que de fato ocorre na maioria dos casos.

Na sociedade liberal-democrática, a norma filosófica quase coincide com a realidade dos embates, dos conflitos de interesse e das pelejas eleitorais. Por um lado, essa virtual coincidência é um consolo; significa que as democracias não se deixam aprisionar por ideologias totalizantes ou totalitárias. Mas é também uma fonte de preocupação, uma vez que uma tensão se manifesta praticamente por toda parte. Seja porque o regime representativo atravessa uma crise de longa duração, seja porque a distância cognitiva entre as “elites” e as “massas” são muito maiores do que a teoria liberal-democrática supunha, uma parcela considerável dos cidadãos, em qualquer país, atribui um papel sacerdotal aos líderes e partidos políticos. Espera que eles lhes ditem normas, caminhos, soluções acabadas, ou seja, que se comportem como os sacerdotes, às vezes ao ponto de diluir as diferenças entre partidos democráticos e totalitários; quer que os dirigentes políticos lhes ofereça a certeza de um “bem comum” inequívoco, mais confortável que a incerteza que percebem diariamente na realidade, onde o bem comum se manifesta em quase tantas versões quantos são os eleitores.

Deste ponto de vista, algo de muito sério nos aguarda: o desafio de repensar a política. Não recorro a esta expressão num espírito idealizante, como um profeta empenhado em recriar pela raiz a sociedade e a política; nem de longe. Digo repensar a política num sentido bem mais simples, humilde, caseiro: repensar o recrutamento, os mecanismos pelos quais os grupos e partidos identificam, atraem, motivam e preparam novas vocações políticas. Isto pode soar complicado à primeira vista, mas basta olhar em volta para se ver que algo nessa linha tem sido feito ou é continuamente feito por diversas instituições. Nos anos 30, um grupo de idealistas aceitou o desafio de criar uma universidade exemplar; hoje a USP, uma referência na América Latina, vem subindo no ranking internacional, e já nem falo de seu impacto dentro do Brasil. Numa escala diferente, temos experiências semelhantes em certos nichos da alta burocracia pública. Grupos artísticos e clubes de futebol não poderiam assegurar a continuidade de seu padrão se não tivessem uma política de recrutamento, no sentido que dei acima a este termo.

Se não conseguirmos avançar nesse terreno, uma coisa é certa: daqui a 50 anos, a nossa discussão sobre os partidos e o Legislativo será idêntica à de hoje. Estaremos falando de desânimo, mediocridade e corrupção. Como marinheiros no convés de um navio durante a tempestade, nós e a própria democracia continuaremos batendo cabeças, jogados de um lado para outro entre duas concepções de política tão extremadas quanto tolas. Num extremo, aquela concepção idealizada de um “bem comum” aristotélico; no outro, a visão rasteira da política como uma luta sem objetivo: um jogo de cabra-cega, para lembrar uma imagem cara ao presidente Fernando Henrique Cardoso.



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