As três mortes do intelectual
Seja porque o regime representativo atravessa uma crise de longa duração, seja porque a distância cognitiva entre as “elites” e as “massas” são muito maiores do que a teoria liberal-democrática supunha, uma parcela considerável dos cidadãos, em qualquer país, atribui um papel sacerdotal aos líderes e partidos políticos.
(nota do editor: os pensamentos abaixo foram apresentados por Lamounier em um evento em sua homenagem realizado no último dia 25 de abril, no Instituto Fernando Henrique Cardoso.)
Vou discorrer sobre um personagem histórico que teve entre suas principais características o fato de haver morrido. Refiro-me ao intelectual, naturalmente. Ele morreu três vezes. Morreu em sua tríplice condição de tribuno, profeta e sacerdote. O tribuno engaja-se em causas justas, defendendo pessoas, coletividades ou instituições. O sacerdote é o guardião das normas, da fronteira entre o permissível e o não permissível, dos padrões de comportamento, do que pode ou não ser lido, pesquisado, divulgado; administra a incerteza dos crentes quanto a tais limites. O profeta anuncia mundos novos e afirma poder conduzir os crentes até eles.
O que aprendemos com as três mortes do intelectual?
Consta que o tribuno foi condenado por alta traição e fuzilado. Quem o acusou foi o escritor francês Julien Benda, no livro La Trahison des Clercs, de 1927. Mas eu não acredito que o fuzilamento tenha se consumado. Julien Benda devia ser processado por falsa declaração de óbito. E digo mais: a não-morte do tribuno é um fato intelectual e político de grande relevância na atualidade. No Brasil e no mundo.
Sob a influência das ideologias historicistas, nós demoramos várias décadas para aceitar a noção de uma humanidade comum. Quarenta ou cinquenta anos atrás – naquela época a expressão “direitos humanos” ainda não era usada –, toda referência a direitos do homem, ao valor do indivíduo e equivalentes era descartada sumariamente como uma evocação da filosofia dos direitos naturais do século 18, vale dizer, como um conceito metafísico e parte essencial da ideologia burguesa.
Para nos contrapormos a esse discurso, basta lembrar Garcia Lorca defendendo a minoria mais odiada da Europa e da Espanha: os ciganos. Ou, antes dele, o argentino José Hernández, grande sucesso de público: seu poema Martín Fierro deu vida, por assim dizer, ao “gaucho pampeano”, trabalhadores rurais que labutavam num estado de extrema pobreza, ignorados pela então próspera sociedade argentina. A contraparte de Hernández no Brasil foi Euclides da Cunha: Os Sertões conferiu forma humana e identidade aos beatos de Antonio Conselheiro. Atualmente, vemos Yoani Sánchez denunciando o caráter totalitário do regime de Havana e dando voz a uma parte considerável da sociedade cubana.
A figura do tribuno ganhou terreno também no plano institucional, por exemplo com o Ministério Público brasileiro. Não menos importante, a Declaração de Helsinki, de 1973, consagrou o conceito de Direitos Humanos como uma figura jurídica internacional. Mesmo não sendo um preceito mandatório, tal conceito tem fortalecido a luta de pessoas e grupos oprimidos no mundo inteiro; os dissidentes soviéticos, por exemplo – Andrei Sakharov à frente –, souberam fazer bom uso dele.
O profeta teria também morrido, mas ninguém sabe ao certo em que pé se encontra seu processo, tantos são os requerimentos de revisão. A causa mortis teria sido uma overdose de ideologia, conforme atestou Raymond Aron num de seus excelentes livros: O Ópio dos Intelectuais. Publicada na França com esse título, em 1955, a obra apareceu no Brasil em 1959 com o curioso título de Mitos e Homens: seria uma receita do editor para o livro não ser lido?
Como produtor de utopias seculares, é possível que o profeta tenha mesmo perecido; se não pereceu pelo ópio, dificilmente sobreviverá às condições do mundo atual, a este nosso mundo de comunicações instantâneas, da internet e do audiovisual. Esses poderosos meios estão hoje ao alcance de milhões de pessoas, possibilitando-lhes desmistificar rapidamente os paraísos mirabolantes que algum profeta aggiornato lhes queira oferecer.
Eu não seria tão otimista em relação às ideologias religiosas – e aqui não me refiro só ao islamismo. Nelas, como é óbvio, o profetismo conserva muito vigor. Mas não vou abordar neste momento o fenômeno religioso; as religiões só entram em meu âmbito de preocupações quando extravasam para a política e a vida pública, e sobretudo quando isso acontece através da violência.
Mesmo no âmbito secular e político, há uma distinção importante a ser feita.
Profecias moderadas, comedidas e abertas à discussão têm evidentemente um papel muito positivo: rejuvenescem as utopias, e nenhum intelectual ou político sério pode viver sem alguma.
Profecias escatológicas são uma outra questão, e elas proliferam com extrema facilidade na América Latina. Profetas desse tipo necessariamente se arrogam uma capacidade de conhecer antecipadamente o devir histórico, e por esse caminho resvalam facilmente para a auto-atribuição de uma superioridade ética, para a justificação dos meios pelos fins e, como não poderia deixar de ser, para tentativas de deslegitimar a regra fundamental da democracia: a competição pelo poder dentro de regras preestabelecidas e aceitas por todos. Por definição, o profetismo escatológico é uma recusa da alternância no poder, e portanto da própria democracia.
Entendamo-nos: é óbvio que o profetismo escatológico não explica suficientemente a ocorrência de desequilíbrios políticos duradouros, ou seja, o predomínio exagerado de um partido e a consequência provável de tal situação: o apego ilegítimo ao poder, a pretensão de nele permanecer ad aeternum.
No Brasil, desequilíbrios desse tipo devem-se a diversos fatores, entre os quais quero destacar dois. Um, de caráter histórico: o patrimonialismo, vale dizer, o peso desproporcional do Estado em relação à sociedade, fenômeno muito bem estudado por Raimundo Faoro e Simon Schwartzman. O segundo, atual, é a debilidade da oposição. Aqui é preciso ressaltar o risco que corremos – nós e outros países da América Latina – de repetir (talvez de forma piorada) a experiência dos anos 30-60, época em que líderes profético-populistas ascenderam ao poder com a pretensão de nele permanecerem por muito tempo. Em sociedades complexas como as nossas estavam se tornando, eles não podiam usufruir despreocupadamente a posição dominante que conquistaram; para o bem em certos casos, para o mal em outros, eles enfrentavam a resistência de grupos sociais e políticos relativamente poderosos, que a eles se opunham em nome de outras concepções acerca do Estado e da economia. Não estou emitindo um juízo de valor generalizado acerca de tais oposições, algumas delas careciam também de convicção democrática; estou apenas constatando que existiam, e portanto que existia uma competição política atual ou potencial, um dado fundamental para a evolução de um sistema político na direção da democracia. Presentemente, é uma situação precisamente oposta o que observamos em diversos países da América Latina: na Venezuela, no Equador, na Argentina, e também no Brasil. Em todos esses casos, as oposições encontram-se num estado de extrema debilidade. Esta questão está a exigir uma reflexão aprofundada. Deixo aqui a sugestão e passo ao sacerdote, ou seja, à terceira das três mortes de que falei no início.
O sacerdote, como vimos, é o guardião dos livros sagrados, o curador da doutrina, um atento vigia na fronteira do permissível com o não permissível. Na Antiguidade ele tinha o poder de oferecer vítimas à divindade.
Não se sabe ao certo se ele faleceu, embora tal hipótese seja frequentemente aventada. Da mesma forma que o profeta, o sacerdote não se adapta com facilidade ao mundo da internet e do audiovisual. O ambiente acadêmico também evolui num sentido que lhe pode ser letal: o da institucionalização e da extrema especialização e profissionalização da pesquisa científica.
No plano das ideologias políticas, há diferenças importantes quanto ao sentido do sacerdócio.
Os marxistas acreditam ter uma base científica, da qual se segue a chamada unidade da teoria e da prática. Guiados pela teoria, os líderes supostamente dispõem de critérios para avaliar a ação do partido, num processo pelo qual eventuais “desvios” são evitados e a “linha justa” continuamente reafirmada. Por si só, esta sentença delineia a função sacerdotal, uma função crítica, evidentemente; tão crítica que foi em geral assumida pelo Secretário Geral ou pelo Comitê Central como um todo, não por um individuo específico. No passado recente, um bom exemplo foi o filósofo francês Louis Althusser, a quem coube a tarefa de fechar o Partido Comunista Francês contra os desvios “idealistas” inspirados no jovem Marx.
No nazifascismo, o caso de maior repercussão, sem dúvida o mais chocante, é o do filósofo Martin Heidegger – cuja enorme influência sobre Jean-Paul Sartre é um fato conhecido. O envolvimento de Heidegger com o nazismo começou a ser desvendado em 1962 pelo jornalista Guido Schneeberger, e a meu ver concluído no início dos anos 80 pelo filósofo chileno Victor Farías, cujo livro sobre o assunto não deixou pedra sobre pedra.
O caráter “sacerdotal” da ambição política de Heidegger evidenciou-se em diversas ocasiões, mas com especial clareza em 1933, ao tomar posse na reitoria da Universidade de Friburgo. Ao discurso proferido por Heidegger na ocasião, o também filósofo Benedeto Croce se referiu como “servil e indecente”. Haveria uma relação intrínseca entre o pensamento filosófico e a ação política de Heidegger? Como é óbvio, esta não é uma indagação que se possa responder com ligeireza; mas é também certo que o próprio Heidegger a tornou em certa medida ociosa, ao oferecer sua filosofia como base para o “reencontro da nação alemã com seu destino”. Segundo o filósofo Carl Ott, Heidegger pretendeu “den Führer fuhren”, ou seja, orientar o líder, conduzir o condutor.
No Brasil, a pretensão sacerdotal mais bem configurada foi talvez a do protofascista Oliveira Vianna, a quem o historiador Wilson Martins se referiu como o ideólogo “quase oficial” do Estado Novo e como “diretor de consciência da Nação brasileira”.
Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas creio que o essencial está claro: na vida política, o pedigree do intelectual-sacerdote não é bom. É muito ruim, para ser exato, e não por acaso: há uma contradição insanável entre a função de pensar com independência, própria do intelectual, e a de ditar normas ou dirigir consciências, própria do sacerdote-político. Essa é sua fatal vulnerabilidade.
Figuras “sacerdotais” fazem certo sentido na vida acadêmica e na pesquisa científica; estas admitem, mais que isso, precisam de líderes, de orientadores, de diretores aptos a antecipar tendências e a manter uma visão de conjunto. Os individuos que se investem em tais papéis se percebem ou são percebidos por seus assistentes e estudantes como quase-sacerdotes: assim foi com Florestan Fernandes e José Arthur Giannotti na USP, e com Mário Henrique Simonsen na FGV-RJ, para ficarmos só nestes três
exemplos.
Agora bem, as sociedades democráticas, por essência avessas a todo holismo, não precisam e não admitem sacerdotes. Nelas, a norma “sacerdotal” é a que resulta dos embates entre os partidos, dentro de cada partido e entre os grupos sociais de maneira geral; nem mais e nem menos. Esta é a prescrição filosófica liberal e é o que de fato ocorre na maioria dos casos.
Na sociedade liberal-democrática, a norma filosófica quase coincide com a realidade dos embates, dos conflitos de interesse e das pelejas eleitorais. Por um lado, essa virtual coincidência é um consolo; significa que as democracias não se deixam aprisionar por ideologias totalizantes ou totalitárias. Mas é também uma fonte de preocupação, uma vez que uma tensão se manifesta praticamente por toda parte. Seja porque o regime representativo atravessa uma crise de longa duração, seja porque a distância cognitiva entre as “elites” e as “massas” são muito maiores do que a teoria liberal-democrática supunha, uma parcela considerável dos cidadãos, em qualquer país, atribui um papel sacerdotal aos líderes e partidos políticos. Espera que eles lhes ditem normas, caminhos, soluções acabadas, ou seja, que se comportem como os sacerdotes, às vezes ao ponto de diluir as diferenças entre partidos democráticos e totalitários; quer que os dirigentes políticos lhes ofereça a certeza de um “bem comum” inequívoco, mais confortável que a incerteza que percebem diariamente na realidade, onde o bem comum se manifesta em quase tantas versões quantos são os eleitores.
Deste ponto de vista, algo de muito sério nos aguarda: o desafio de repensar a política. Não recorro a esta expressão num espírito idealizante, como um profeta empenhado em recriar pela raiz a sociedade e a política; nem de longe. Digo repensar a política num sentido bem mais simples, humilde, caseiro: repensar o recrutamento, os mecanismos pelos quais os grupos e partidos identificam, atraem, motivam e preparam novas vocações políticas. Isto pode soar complicado à primeira vista, mas basta olhar em volta para se ver que algo nessa linha tem sido feito ou é continuamente feito por diversas instituições. Nos anos 30, um grupo de idealistas aceitou o desafio de criar uma universidade exemplar; hoje a USP, uma referência na América Latina, vem subindo no ranking internacional, e já nem falo de seu impacto dentro do Brasil. Numa escala diferente, temos experiências semelhantes em certos nichos da alta burocracia pública. Grupos artísticos e clubes de futebol não poderiam assegurar a continuidade de seu padrão se não tivessem uma política de recrutamento, no sentido que dei acima a este termo.
Se não conseguirmos avançar nesse terreno, uma coisa é certa: daqui a 50 anos, a nossa discussão sobre os partidos e o Legislativo será idêntica à de hoje. Estaremos falando de desânimo, mediocridade e corrupção. Como marinheiros no convés de um navio durante a tempestade, nós e a própria democracia continuaremos batendo cabeças, jogados de um lado para outro entre duas concepções de política tão extremadas quanto tolas. Num extremo, aquela concepção idealizada de um “bem comum” aristotélico; no outro, a visão rasteira da política como uma luta sem objetivo: um jogo de cabra-cega, para lembrar uma imagem cara ao presidente Fernando Henrique Cardoso.