Judaísmo, humor e drama

Apesar de deslizes, Nathan Englander é um bom contador de histórias. Sua maestria é alternar a atmosfera de seus contos sem cair no sentimentalismo.

“Do que a gente fala quando fala de Anne Frank”, de Nathan Englander

Para um escritor, veterano ou iniciante, qual é o verdadeiro reconhecimento que a literatura lhe concede? O que vale mais: ganhar o Jabuti ou ter o livro nos trending topics do Twitter? Fazer leituras públicas de sua obra para um grande número de pessoas ou uma entrevista para um jornal literário? A pergunta sem resposta ecoa cáustica nas páginas de “O leitor”, conto que faz parte da coletânea Do que a gente fala quando fala de Anne Frank, de Nathan Englander. Um escritor, chamado apenas de Autor, que em um passado não tão remoto colheu os louros do sucesso de crítica e público, amarga uma via crúcis que o leva por diversas livrarias do país para realizar leituras de seu novo romance. Dez anos para concluí-lo e uma repercussão tão discreta que durante a maior parte do percurso apenas um leitor se faz presente. O mesmo leitor em cada nova cidade, em cada nova livraria, o suficiente para que Autor se sentisse estimulado a continuar. Diz o leitor para ele: “Você é. Um grande autor. Um autor poderoso. Que seja um ou um milhão para vê-lo, tem de ser no pódio. Leia alto. Leia com vigor.” E, de certa forma, também Englander busca sua multidão de leitores, que subjaz ainda oculta sob a sombra de suas próprias dificuldades e de uma cultura literária pouco afeita ao humor.

O primeiro conto, “Do que a gente fala quando fala de Anne Frank”, é hilariante, e extrai de Raymond Carver não apenas o título, baseado no clássico What I talk about when I talk about love, mas a inspiração. Assim como na história de Carver, Englander narra o encontro de dois casais. Um deles, o do narrador e sua esposa, é composto por judeus americanos que abraçaram a vida secular. Eles recebem um antigo casal de amigos, convertidos ao hassidismo e que vivem em Jerusalém há mais de uma década. O encontro, completamente aversivo para o protagonista, em um espírito que remete imediatamente ao personagem clássico de Woody Allen, vai ganhando contornos absurdos conforme os quatro judeus se embriagam e ficam extasiados sob o estímulo da maconha. Quando a consciência – a sã consciência – é suspensa, medos e verdades afluem em igual medida. É quando os personagens jogam o chamado Jogo da Anne Frank, que de jogo carrega apenas o nome. É, na verdade, uma forma de descobrirem quem de seus amigos gentios os esconderia na ocasião de um novo Holocausto. E Nathan Englander mostra sua capacidade única de trafegar entre o humor e o drama com segurança, em transições que em poucas linhas mudam por completo o tom da narrativa — uma de suas melhores qualidades, repercutindo em todo o livro.

Apesar do uso do humor, que tem sido apontado como o maior chamativo dessa coletânea, é nos momentos de seriedade que a lucidez narrativa do autor se faz presente. “Colinas irmãs” e “Frutas de graça para jovens viúvas” são os melhores momentos do livro. Momentos sérios, amargos, carregados de verdades históricas que caminham do Holocausto às Intifadas, dos escombros da Segunda Guerra Mundial ao niilismo do século XXI. São narrativas emocionalmente complexas, cinematográficas em suas imagens quase palpáveis de tão vívidas.

Do que a gente fala quando fala de Anne Frank é o terceiro livro de Nathan Englander. Sua primeira coletânea de contos, Para alívio dos impulsos insuportáveis, lançada em 1999, recebeu o PEN/Malamud Award, que premia escritores com “excelência na arte da narrativa curta”. O mesmo prêmio que já galardoou John Updike, Alice Munro, Saul Bellow, Joyce Carol Oates, Ursula K. Le Guin, John Barth. Em suma, Englander está em boa companhia. E agora, catorze anos depois, intercaladas por um romance (O ministério de casos especiais), as duas coletâneas sinalizam um movimento: o do autor que busca deixar de ser promessa para se tornar, de fato, um grande escritor. Englander trilha esse caminho.

Judeu ele mesmo, o autor fala do judaísmo como um apaixonado. E essa paixão é, ao mesmo tempo, seu calcanhar de Aquiles. Claramente, Do que a gente fala… é um livro confeccionado com retalhos de sua própria experiência e conhecimento. E na tentativa de inserir o máximo de judaísmo possível em seus contos, Englander incorre na armadilha do excesso, pecado capital para qualquer escritor. “Peep Show” é o momento mais fraco do livro: um homem até então fiel à esposa decide, sem qualquer razão convincente, entrar em um peep show, espécie de clube para strip tease em que o indivíduo insere fichas em uma cabine para ser seduzido pelas modelos. Mas o que vê não são mulheres: vê os rabinos de sua infância, vários deles. E a narrativa se perde em uma tentativa de combinar memória e tradição que soa artificial, forçada, como se houvesse a obrigatoriedade de inserir tais elementos em um conto que de outra forma poderia ter sido interessante. Não sabemos quem é esse personagem e suas ilusões são imaturas e ilógicas.

“Campo do Pôr do Sol” traz um mote narrativo interessante: um acampamento em que alguns judeus idosos reconhecem em um senhor um antigo guarda nazista de campo de concentração. Mas a história parece querer se condensar em poucas páginas. Parece ter pressa: há uma preocupação em chegar logo à sua conclusão, deixando de lado bons personagens, boas oportunidades de conflito em prol de uma parábola judaica.

Ainda assim, Nathan Englander é um bom contador de histórias. Sua maestria é alternar a atmosfera de seus contos sem cair no sentimentalismo. Por outro lado, deixa a sensação de que em alguns momentos poderia desempenhar melhor o seu trabalho se deixasse os contos mais tempo na gaveta e não caminhasse tão depressa para o fim. Seu vocabulário propicia uma leitura fluida e prazerosa, que contrasta com eventuais saltos narrativos. Seria interessante que Englander desenvolvesse melhor seus personagens, aproximando-se do nível de alguns de seus contemporâneos. E é curioso que a contracapa da edição brasileira de Do que a gente fala quando fala de Anne Frank traga elogios de dois desses contemporâneos americanos: Michael Chabon e Jonathan Safran Foer. São autores já estabelecidos, com livros adaptados para o cinema (Tão forte e tão perto, de Foer, é o mais recente), sucessos de público e crítica. Chabon chama a coletânea de “obra-prima da narrativa curta”, e Foer considera Anne Frank o “livro mais engraçado, corajoso e belo de Englander”. Forma-se uma tríade de autores que têm sido apontados como sucessores de uma geração que chega ao fim – uma geração que tem em Pastoral americana, O arco-íris da gravidade, Meridiano de sangue e Submundo baluartes absolutos da cultura americana, responsáveis por talhar em pedra o nome de seus autores na história da literatura.

Pynchon, McCarthy e DeLillo já se aproximam dos oitenta anos, e o mais velho deles, Philip Roth, anunciou que está abandonando a literatura. As gerações seguintes têm pela frente um trabalho digno de Hércules: manter elevado o padrão da literatura americana, alçado às alturas nos últimos duzentos anos e responsável pelo surgimento de clássicos absolutos do cânone ocidental.

Nathan Englander traça seu próprio caminho, especializando-se nas narrativas curtas ao invés dos grandes romances. Com um pouco mais de experiência pode abandonar para sempre a categoria de promessa da literatura e ter seu nome inscrito nas referências literárias americanas. Muito distante de Autor, seu personagem romancista e pessimista, renegado aos porões da história, lido por quase ninguém.

::: Do que a gente fala quando fala de Anne Frank :::
::: Nathan Englander (trad. Claudio A. Marcondes) :::
::: Companhia das Letras, 2013, 208 páginas :::
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