Fantasmas da realidade e da ficção

O elemento curioso do livro de Valeria Luiselli é que a história é fragmentada, montada com pequenos parágrafos que alternam-se em tempo e espaço.

"Rostos na multidão", de Valeria Luiselli

“Rostos na multidão”, de Valeria Luiselli

Não sei se existe alguma regra que define a partir de que ponto você tem certeza que um livro é bom. Ou quantos livros de um determinado autor você precisa ler até ter certeza de que ele realmente é bom. Como quase tudo na literatura, essas relações de gosto são bem relativas. Um parágrafo pode ser o bastante para alguém se apaixonar por uma história, enquanto outros sempre ficarão à procura das qualidades que fazem aquele escritor ser adorado por tantos. Isso tudo só para dizer que para mim as coisas também funcionam de um jeito bem diferente dependendo do livro. O ideal é o básico: ler tudo, e na última página decidir se é bom ou não. Mas às vezes ignoro essa minha própria regra, e já determino bem antes disso o que pensei sobre o livro.

Com Valeria Luiselli, posso dizer que lá pela página 20 do seu romance eu estava totalmente encantada com a sua narradora. Valeria nasceu na Cidade do México, vive entre o México e Nova York, onde faz mestrado na Universidade de Columbia. Antes de Rostos na multidão, havia publicado apenas um livro de ensaios em 2010. Assim como a autora, a protagonista e narradora do romance é uma mexicana que se divide entre a capital do país e a Big Apple. O elemento curioso do livro está presente logo no começo, que deixa claro que toda a história é fragmentada, montada com pequenos parágrafos que alternam-se em tempo e espaço, um agrupamento de retalhos literários que dão conta da história da mulher. “Os romances são de longo fôlego. Assim querem os romancistas. Ninguém sabe exatamente o que significa, mas todos dizem: longo fôlego. Eu tenho uma bebê e um menino médio. Não me deixam respirar. Tudo o que escrevo é – tem que ser – de curto fôlego. Pouco ar.”

É essa a estrutura que a protagonista escolhe para contar sua história: fragmentar a trama em rápidos trechos, com constantes espaços para o leitor “respirar”. A princípio, são duas as linhas narrativas que Valeria segue: a vida da narradora no presente, mãe de duas crianças, casada, uma mulher preocupada com a família e que resolve escrever um romance sobre um escritor que admirava no passado; e esse passado, nos anos 1990, em que era uma jovem editora e tradutora vivendo em Nova York, às voltas em uma pesquisa sobre um poeta mexicano, Gilberto Owen, tentando convencer seu chefe a publicar a tradução de seus poemas. No presente, sua interação com o mundo é limitado ao espaço de sua casa. São constantes seus diálogos com o “menino médio”, seu primogênito, uma criança curiosa e inteligente que não pára de fazer perguntas à mãe e oferecer a elas interpretações imaginativas – a graça do menino é um fator que contribui com a conquista do leitor.

Quando volta ao passado, a vida da narradora é muito mais movimentada, cheia de pessoas. Tem seu chefe, seus amigos, as pessoas desconhecidas que deixa dormir em seu apartamento pequeno e vazio – que não gosta de habitar durante a noite por ser muito melancólico. Como se não tivesse lugar próprio, ela transita entre muitas casas, ruas e bares de Nova York pensando em literatura, em poesia, mentindo e roubando compulsivamente, mas sem prejudicar ninguém com isso. E é nessa época também que sua fixação pelo poeta Owen está no auge: para convencer o editor de que são textos publicáveis, inventa que as traduções que vem fazendo são, na verdade, de autoria de um outro famoso escritor – sua obsessão por ele é tanta que ela reúne tudo o que consegue sobre sua vida, pesquisa os lugares por onde passou e até enxerga seu rosto na multidão que anda no metrô. A trama de Valeria Luiselli consegue se manter de pé apenas com esses dois pilares narrativos, pela espontaneidade de sua escrita e como relaciona o real – a protagonista do presente – com a ficção – seu eu do passado, que diz ao marido, que eventualmente lê o manuscrito, ser pura invenção.

Contudo, o objetivo da narradora não é dar conta de sua vida, de registrar o que foi e o qual é o seu processo de escrita. Ela quer é escrever um livro sobre Gilberto Owen, esse é, conforme ela diz ao marido, a desculpa do livro. E a partir de certo ponto uma segunda voz toma conta do romance, a voz do poeta mexicano. Sabe-se que ele viveu na cidade nos anos 1920, teve uma participação ativa na cena literária, porém obscura para a história cultural dos EUA e do México. Assim como faz sua futura admiradora, Owen se divide entre seu passado e um “presente”, o início dos trabalhos como escritor e sua rotina depois de ser largado pela mulher, um bêbado descontrolado que passa por várias “mortes”:

É óbvio que há muitas mortes ao longo da vida. A maioria das pessoas não se dá conta. Acham que morrem uma vez e pronto. Mas basta prestar um pouco de atenção para perceber que a gente vai embora e morre com frequência. (…) A maioria das mortes não importa: o filme continua correndo. É exatamente aí que tudo dá um giro, embora seja imperceptível e os resultados não sejam imediatos.

Assim, o romance se alterna entre quatro diferentes tempos, os quatros estágios de vida e “morte” da narradora e seu escritor favorito, e como se a trama de Valeria Luiselli já não parecesse bastante mirabolante, ambos se cruzam em diversos momentos de encontros casuais, visões breves e esparsas entre multidões. Cada um deles está lidando com alguma perda – a da narradora vemos acontecendo durante sua própria escrita, a fragilidade do casamento abalada pelo livro que escreve –, alguma mudança na vida que resulta em reflexões sobre suas relações com as pessoas e o mundo.

No fim, é difícil dizer quem ou o que nessa história é real. No mundo de cada um o outro não passa de um fantasma, uma figura misteriosa que chama a atenção e leva a algum temor interno. Tanto o contexto da época quanto as vidas dessas personagens são diferentes, mas a conclusão que Valeria Luiselli estabelece é que, não importando a época, o lugar ou o gênero, existem coisas intrínsecas à vida de todos, questionamentos, dúvidas, escolhas e erros que conectam um ao outro, anos depois de cada um ter pisado no mundo. Esse jogo entre ficção e realidade feito pela narradora transforma o livro em uma leitura curiosa e intrigante, feito com cuidado para empregar beleza e elegância nas frases e transformar a vida monótona de uma dona de casa em uma intrincada história.

::: Rostos na multidão :::
::: Valeria Luiselli (trad. Maria A. B. Lemos) :::
::: Alfaguara, 2012, 168 páginas :::
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Amálgama




Taize Odelli

Escreve no R.izze.nhas




Amálgama






MAIS RECENTES


  • Mimi

    No livro mais recente da Zadie Smith, ‘NW’, tem uma parte que é toda dividida em pequenas secoes, que podem variar de apenas algumas linhas à até três páginas. Numa entrevista a autora usou o mesmo argumento que a Valeria, sua producao ficou restrita depois que teve filho. Quatro horas por dia era tudo que ela tinha. A ideia de escrever qualquer coisa mais longa se tornou absurda.

    • Taize Odelli

      Oi, Mimi!
      Legal saber disso! Acho esse estilo ótimo quando bem usado, dá mais ritmo à leitura. E faz tempo que a Zadie Smith tá fazendo zum-zum na minha cabeça pedindo para ser lida, vou colocar na minha lista 😀

  • Marco Aurélio Carvalho

    Muito boa a resenha, me despertou interesse na leitura. Cheguei ao final do livro com a sensação de que realmente um bom romance pode ser escrito “com pouco fôlego”.
    Abraços,
    Marco Aurélio

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