Através de uma boa dose de humor, Alexandre Soares narra – quem sabe – os arquétipos do mundo moderno
Ao folhear as primeiras páginas de um livro, deleito-me quando logo de saída ele introduz o leitor ao seu sentido primordial, apresentando seu universo simbólico. É assim com a A coisa não-Deus, de Alexandre Soares Silva:
O paraíso não é um estado de espírito. É um lugar. Se você der dois passos pra fora, está fora; se der dois passos pra dentro, está dentro. Uma vez lá dentro, você pode pisar à vontade na grama, pode dar cambalhotas, pode até se machucar dando cambalhotas, porque o chão não é de ectoplasma, não é de nenhuma espécie mística de fogo, não é de gelatina amorfa; é matéria, pura e sólida e dura matéria. Mesmo os anjos são matéria. Se você perguntar a eles se acreditam em algo que não seja matéria, eles vão rir da sua cara. Logo, eles não só são matéria, como são materialistas; e não só são materialistas, como são ateus.
Logo no primeiro parágrafo lemos a carta de intenções simbólicas do autor. Com boas doses de ironia, Alexandre Soares conduz o leitor ao mundo invertido do paraíso – quem sabe, ao mundo da imanentização do divino, onde só a matéria existe e possui sentido.
Os anjos são matéria pura. Mais do que isso: são afirmações de si mesmos que não recorrem ao exterior de si para ter sentido. Eles são materialistas e ateus.
Indagados pelos outros anjos sobre se alguém já tinha visto Deus, Pul – o anjo mais inteligente – faz um retiro espiritual e afirma que tinha certeza absoluta da sua inexistência, mas que havia conversado com Ele. Deus era Julio Dapunt, conhecido como a “coisa não-Deus”. Esta é chave do livro: “esta é a história d’Ele, a crônica do Senhor”.
O narrador – um jornalista – é o próprio autor. Ele recebe um convite de um anjo para contar a história de Júlio Dapunt, recebendo uma casa no Paraíso. Dapunt é diferente de todos os outros humanos, pois irá morrer e não ascenderá ao céu nem cairá ao inferno. Baterá as botas e fenecerá.
Dapunt é a negação de Deus e, por isto, Ele mesmo. O seu destino faz os anjos prestarem reverência e conceder-lhe prazeres, orgias, passeios fabulosos. E esta é a chave do livro: uma viagem do não, seus paradoxos e vicissitudes, sua ironia simbólica por apresentar o divino em sua indolência persistente por negá-lo. A história da negação da transcendência que emerge sempre nas entrelinhas do pressuposto.
Neste mundo da completa imersão na matéria, o bem não tem unidade, não é universal, mas consiste na expansão da vontade. O bem é a farra, o prazer, o desejo hedônico. Através de uma boa dose de humor, Alexandre Soares narra – quem sabe – os arquétipos do mundo moderno, com a redenção pela matéria, as ilusões de liberdade e a rebeldia prometeica. Um livro conceitualmente muito interessante, que merece ser lido por transformar experiência em criação literária.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.