Entre a literatura, a crítica e a ação

Da importância da literatura e da erudição em um país de vulgaridades.


"Cenário com retratos: Esboços e perfis", de Antonio Arnoni (Companhia das Letras, 2015, 312 páginas)

“Cenário com retratos: Esboços e perfis”, de Antonio Arnoni (Companhia das Letras, 2015, 312 páginas)

Cenário com retratos é uma reunião de ensaios, alguns mais densos (ou longos), outros mais ligeiros. Não está claro em nenhum lugar da publicação, mas pelo que pude levantar tratam-se de textos que foram produzidos nos anos recentes como artigos científicos, artigos para revistas culturais ou conferências em eventos acadêmicos.

Nada de mal uma super autoridade acadêmica como o professor da UNICAMP reunir textos esparsos em livro. Com esse trabalho a Companhia das Letras faz um bem ao mercado editorial, tornando mais visível uma produção que estava dispersa, que possui qualidade e profundidade, e que faz sentido quando reunida em uma encadernação, embora não tivesse sido pensada desta forma.

Mas seria mais cuidadoso se a edição informasse a ocasião para a qual cada texto foi produzido da primeira vez, ajudaria muito a entender e situar em relação a outros trabalhos, do mesmo autor ou dos autores com os quais a obra dialoga. Isso também ajudaria a explicar porque os capítulos do livro podem variar de 30 páginas, como em “Confabulações do exílio (Joaquim Nabuco e Oliveira Lima)” a apenas 4 páginas, como em “Oswald de Andrade versus José Lins do Rego?”.

O interessante é que a diferença de tamanhos entre os textos quase não chega a ser notada durante a leitura, porque Arnoni Prado consegue a proeza de ser profundo mesmo em ensaios tão curtos. O autor mobiliza uma invejável erudição, que é também a principal dificuldade do livro quando se pensa no leitor. Embora seja uma obra destinada ao leitor especializado (pensemos no pesquisador de história da literatura brasileira que já fez sua graduação em letras), ela quase demanda vários leitores especializados. Um para cada capítulo seria o ideal.

Afinal, o livro vai desde a Arcádia mineira (século XVIII) até a segunda metade do século XX, e é escrito sempre para um leitor que sabe do que o autor está falando, conhece a multiplicidade de autores e obras que são citados e mobilizados sem maiores detalhamentos ao longo de cada ensaio. No meu caso, a leitura me fez lamentar profundamente minha ignorância, minha falta de letramento. Estudei o ensino fundamental na década de 1980, fiz ensino médio e superior na década seguinte, e estou agora amaldiçoando o dia em que os formuladores de políticas educacionais resolveram “superar” aquela escola antiga que dava uma cultura bacharelesca aos estudantes brasileiros. No meu caso, passei pelos 11 anos da educação básica e não li na escola nenhum dos escritores que devia ter lido para entender o livro de Arnoni Prado.

Por causa desses percalços, parte da leitura serviu apenas para aguçar minha curiosidade. Como já passei da idade em que é possível preencher essas lacunas com o necessário proveito, resta aquele gosto de ressaca após ler o livro. O que me salvou foi a parte em que ele trata do modernismo em diante, as fantásticas discussões sobre Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Érico Veríssimo – o que me fizera aceitar a proposta do editor do Amálgama para resenhar o livro. Se houver ao menos um capítulo no livro que trate de autor que interesse a você, provável leitor, digo que já vale a pena.

A escolha dos temas estudados por Arnoni Prado obedece a um critério claro, e muito interessante. São escolhidos personalidades do nosso mundo das letras que reuniram a característica de serem ótimos escritores, que em geral foram apenas “mais ou menos” escritores. Se parece contraditório, explico: os escolhidos foram intelectuais brasileiros que não chegaram a exercer plenamente o ofício de escritores à medida que oscilaram entre a escrita literária, a crítica e a ação política. Eram críticos profissionais em órgãos de imprensa, exerciam cargos ou funções públicas, eram homens de ação – e nesse afã acabavam abandonando a literatura como ofício ou no mínimo adiando projetos e/ou arrefecendo a veia criativa dos romances e poesias para dedicarem-se ao ensaio, à crítica, ao estudo sociológico, à obra de referência.

A maneira com que esses homens interessantíssimos articularam cada uma dessas facetas é traço de união e o ponto de interesse do livro. Aparece ali um Sérgio Buarque de Holanda que deixa de ser primordialmente um crítico literário para ser o autor de Raízes do Brasil. Ou aparece o autor de Casa Grande e Senzala imiscuindo-se pela literatura com uma desenvoltura criativa que faz confundir ficção e realidade histórica de maneira magistral na “seminovela” Dona sinhá e o filho padre (se entendi corretamente, reunida no volume Prefácios desgarrados, de 1978) – e imaginando os personagens e os mundos não narrados por trás de notícias de jornal antigas em Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, de 1963.

Como misturar realidade e pessoas de carne e osso para compor personagens literários é o assunto do texto sobre Érico Veríssimo, e é muito interessante entender a maneira como o autor rio-grandense fez isso em suas primeiras obras, aprendendo com Aldous Huxley, até chegar à maturidade plena de suas fórmulas construtivas em O tempo e o vento, uma obra de fôlego que consegue manter o interesse por milhares de páginas simplesmente porque não há personagens menores – todos são profundos.

Outra marca do livro é o fato de os escritores escolhidos terem a caraterística comum de serem grandes eruditos em outras línguas. Através do diálogo fluente com a literatura e com a crítica inglesa, ou francesa, ou alemã, ou norte-americana – cada um destes intelectuais contribuiu para construir um legado para a literatura brasileira: que ela não corresse o risco de se tornar sempre irrelevante por fechada em si mesma, sempre pensar de si mais do que deveria por simplesmente não saber o que acontece no mundo.

Uma lição que nos sai do livro de Arnoni Prado é a da importância inestimável da crítica literária. Não tivesse o Brasil a quantidade de críticos do quilate dos que ele analisa nos seus ensaios, não teríamos nada parecido com uma literatura brasileira. O momento em que deixamos de ser um apêndice irrelevante ou menor da literatura portuguesa para termos alguma coisa como uma literatura nacional é o momento em que temos uma crítica tão significativa quanto a produção literária. Ou quando os críticos são, por vezes, até maiores que os escritores. É notável também que os maiores críticos, entre os quais estão os estudados no volume de Arnoni Prado, não eram literatos fracassados ou homens menores diante dos gênios da criação. O crítico literário, subentende-se após a leitura desses ensaios, é um gigante de mesma estatura que o poeta ou o romancista. É ele mesmo um criador de primeira grandeza, que faz crítica enquanto faz literatura ou invés de fazer literatura. Não por incapacidade de fazer outra coisa, mas por conjunturas da vida ou mesmo por escolha.

Do mesmo modo, é notável como aquela cultura bacharelesca que quisemos sepultar nos faz falta hoje em dia, nos tempos de Cunhas e Calheiros, quando a mediocridade política nacional parece ter atingido seu clímax. Havia um tempo em que um Joaquim Nabuco era estadista, foi viver no exílio, prestou serviços à diplomacia brasileira e podia fazer trabalho significativo justamente por ser um homem de grande cultura – literária principalmente. Ou, nos dizeres de Arnoni Prado:

a verdade é que sem a poesia e a cultura literária dificilmente ele teria sido a liderança militante que sempre foi, como o atesta a influência decisiva que terão em seu espírito as prescrições literárias da imaginação romântico-realista e a convivência com os modelos da tradição clássica de Europa (p. 75)

Os ensaios de Arnoni Prado parecem nos dizer que não se faz grandes homens sem a necessária erudição, sem o conhecimento do passado, sem a tradição, sem o diálogo com as grandes civilizações. A civilização brasileira não poderia surgir do isolamento xenófobo, mas senão do confronto humilde com os grandes que vieram antes, de quem se podia aprender muito. Ao mesmo tempo, a pesquisa das particularidades que faziam a possibilidade de uma literatura brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda identifica no trabalho de Mário de Andrade, ou como na citação de Antônio Cândido (uma grande referência teórica, muito presente em todo o livro – certamente o autor mais citado nos trabalhos incluídos) em que afirma Sérgio Buarque de Holanda ser capaz mobilizar toda a civilização do Ocidente para explicar um texto de 14 versos de Cláudio Manoel da Costa (p. 203).

Livro muito necessário, a nos lembrar da importância da literatura e da cultura literária, numa época em que o país vem sendo pisoteado cotidianamente pela arrogância ignorante dos medíocres.

Amálgama




André Egg

Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).


Amálgama






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