Sabatina pra valer?

Algumas das manifestações contra Luiz Edson Fachin incorrem em erros e em visões insatisfatórias do fenômeno jurídico.


fachin

1.

No dia 14 de abril, a presidente Dilma Roussef finalmente indicou o jurista Luiz Edson Fachin para preencher a vaga surgida no STF com a aposentadoria do Ministro Joaquim Barbosa, ocorrida em 31 de julho de 2014.

Desde a indicação, parcela considerável da imprensa nacional tem apresentado ressalvas ao nome, muito mais como fruto de medos injustificados ou baseados em falsificações, incompreensões e até em má vontade. Tendo a ver isso como fruto do momento conturbado pelo qual o país passa, em que todas as ações do Executivo Federal são vistas com desconfiança. Não que não exista um direito e, inclusive, um dever da imprensa sondar o passado e as opiniões de pessoas públicas, especialmente aquelas indicadas para fazer parte da mais alta corte de justiça do país, mas esse direito/dever exige responsabilidade. Assim, sobre as atitudes que decorrem de má-fé ou ignorância (admito que acho difícil distingui-las neste caso), só podemos vê-las como fruto da pequenez de quem as profere.

Entretanto, quando tais manifestações incorrem em erros e em visões reputadas por nós como insatisfatórias do fenômeno jurídico, o dever de escrever e responder se impõe. É por isso que escrevo este texto para responder – de forma muito respeitosa, já que é grande a estima que nutro por ele – o texto de um colega meu.

O texto inicia expondo experiências pessoais do articulista com o indicado e relatando as desconfianças que sua indicação gerou em certos meios da opinião pública brasileira. Então, comete-se um erro que vai circular por todo o texto, resignificando suas palavras e frases: a pretensão de julgar o indicado como herói ou vilão. Segundo o texto, “é preciso definir qual perfil, afinal, melhor corresponde a Fachin”. A visão da necessidade de tal definição expõe a visão do articulista que pretende ignorar complexidades para rotular o professor como bom ou mau; como herói ou vilão.

Mas esta espécie de julgamento apenas desumaniza aquele que é julgado, já que não há ser humano que seja um completo herói ou vilão, mas apenas pessoas que podem realizar ações boas ou más. No nosso entendimento, a construção de heróis e vilões, isto é, de campeões e de bodes expiatórios, é um expediente simplificador e mi(s)tificador. Logo, para cumprir essa sua “missão julgadora”, o texto não pretende apresentar as qualidades e os defeitos – sob sua ótica – da pessoa, mas sim os prós e contras de Fachin, como se ele fosse algum produto ou programa que está sendo avaliado.

Assim, segue o texto enumerando os “contras” de Fachin, que podem ser resumidos no que é chamado de sua “visão esquerdista” do Direito, que se manifestaria em quatro características, segundo o texto: um ceticismo cognitivo, isto é, uma relativização da possibilidade do alcance de “verdades”; a divisão da população entre opressores e oprimidos; a compreensão e a utilização do Direito como uma ferramenta de transformação da realidade; e a defesa de uma maior atuação do Estado na sociedade.

Ainda segundo o articulista, tal visão de mundo teria levado a Faculdade de Direito da UFPR a ser um “espaço consagrado do esquerdismo”, um ambiente que, com raras exceções, é dominado por um pensamento único, o que pode ser aferido na distribuição de bolsas de pesquisa e na seleção de projetos de mestrado e doutorado. Também diz o autor que isto vai contra a própria idéia de Universidade, que “pressupõe a constituição de um ambiente de pluralidade de crenças”.

Duas grandes inconsistências se apresentam aqui: em primeiro lugar, a visão do que seria “esquerdismo” que acabará por contaminar a visão do articulista sobre o Direito e sua história mais à frente em seu texto; em segundo lugar, a ideia de Universidade que o autor esboça.

2.

Das quatro características que o autor apresenta para o “esquerdismo” apenas as duas últimas me parecem que realmente fazem sentido. Na verdade, o caráter transformador do Direito, de certo modo, parece inegável, já que as regras jurídicas efetivamente causam mudanças na sociedade. Entretanto, as duas primeiras – embora facilmente identificáveis em comportamentos esquerdistas “de boutique”, muito presentes em caixas de comentário e redes sociais na internet – são muito raras em qualquer autor sério, se é que foram defendidas desse modo por algum autor.

A primeira característica não é aplicável, por exemplo, para nenhuma corrente marxista de pensamento – muito numerosa na esquerda ainda hoje – já que, para o marxismo em geral, o conhecimento não só é possível como é necessário para o desenvolvimento do homem. Inclusive, autores abertamente “de esquerda” no Direito – mas não marxistas, como autores ligados à Hermenêutica Jurídica do professor gaúcho Lênio Streck, por exemplo – não se cansam de bater no relativismo cognitivo existente no senso comum teórico do Direito pátrio. Parece-me, inclusive, que Fachin está muito próximo desta corrente de pensamento jurídico atual.

A segunda característica também é encontrável com facilidade na internet, em geral fruto de pouca ou má leitura de autores considerados de esquerda. Assim, embora haja a utilização de conceitos de opressão por determinados autores, eles referem-se a estruturas sociais que não podem ser reduzidas ao conjunto dos seus membros (como classes ou instituições, por exemplo) e nunca a pessoas. Além do mais, é difícil enquadrar o pensamento do indicado nessas duas características, haja vista suas loas à hermenêutica jurídica e ao paradigma da solidariedade.

Essa visão equivocada do que seja um pensamento de esquerda no Direito leva o autor a uma estranha concepção da história do Direito, ao estabelecer uma unidade simplista entre legalismo e positivismo e opô-los ao ativismo judicial. O legalismo é uma espécie de positivismo jurídico surgida na França com o movimento de codificação do Direito, expresso no Código Napoleônico de 1804 e que deu origem à Escola da Exegese, de hermenêutica imperativista. Nesta espécie de positivismo, as leis são vistas como portadoras da vontade do legislador (que expressa a vontade geral), devendo o juiz limitar-se a aplicar as leis, isto é, a ser a boca da lei. Essa corrente apresenta problemas porque esconde a real natureza da atividade judicial aplicadora da lei (o texto legal nunca é claro, sempre há interpretação e criação de sentido) e, também, porque confia na discricionariedade judicial para resolver os problemas das lacunas, isto é, o juiz deve utilizar a analogia e os princípios gerais do Direito de modo a “fechar” artificialmente o sistema.

Entretanto, existem outras espécies de positivismo jurídico que não são legalistas, como a jurisprudência dos conceitos alemã, ou a jurisprudência analítica inglesa (contemporâneas à Escola da Exegese). Mas esse não é o único erro que o autor comete (identificar positivismo e legalismo): ao não entender a real natureza do positivismo, acredita que correntes críticas ao positivismo são favoráveis ao ativismo judicial e não dão valor ao texto legal. Acontece que são as diversas espécies de positivismo que confiam na discricionariedade judicial – isto é, no voluntarismo – como forma de resolver os casos difíceis (do inglês “hard cases”). Pelo contrário, a hermenêutica jurídica utiliza os conceitos de integridade e coerência do Direito, bem como o de limites semânticos do texto, que, juntamente com a obrigatoriedade de fundamentação da decisão, funcionam como armas contra as arbitrariedades interpretativas. Assim, o texto legal – que não possui sentidos originais – não pode limitar nada. É apenas pela prática interpretativa responsável – no sentido de “accountability – que o texto adquire um sentido e pode limitar o poder: não é o texto, mas a norma que limita.

Esse problema do texto analisado fere de morte a crítica porque o suposto esquerdismo do indicado não pode ser confundido com ativismo judicial e nem leva a ignorar o texto legal para “transformar a realidade”.

3.

O segundo ponto que separamos para análise diz respeito à concepção de Universidade esboçada pelo autor.

Não acreditamos que uma universidade “pressupõe a constituição de um ambiente de pluralidade de crenças”. É normal que existam “pluralidade de crenças” em universidades localizadas em sociedades plurais. Entretanto, em sociedades majoritariamente cristãs, encontraremos dificuldade em encontrar pessoas com crenças diversas na universidade, por exemplo.

Acredito, por isso, que o autor quis se referir a uma pluralidade de correntes de pensamento. Todavia, o autor parece confundir a liberdade de pensamento, princípio basilar de uma universidade digna desse nome, com a ocorrência real de uma maioria de pensadores de uma mesma corrente em determinada universidade.

Logo, ainda que exista uma liberdade de pensamento, é natural que um expoente de uma corrente de pensamento atraia estudantes que queiram estudar conforme aquela corrente de pensamento. Ninguém é proibido de pensar desta ou daquela maneira, mas qual o sentido que existe em submeter um projeto sobre Nietzsche, por exemplo, para ser orientado por um professor especialista em Kant? Assim, com o tempo, as Universidades acabam por serem núcleos de uma determinada corrente de pensamento.

Exemplos paradigmáticos no Brasil são as Faculdades de Economia da FGV-SP, FGV-RJ, UNICAMP, PUC-RIO e UFRJ. Cada uma é conhecida por ter mais representantes de uma escola de pensamento econômico que outra, mas todas são plurais. Ninguém vai impedir alguém de pensar mais próximo de ortodoxos em uma escola de maioria heterodoxa. O mesmo acontece na Faculdade de Direito da UFPR, que possui uma maioria de esquerda, mas exceções importantes, segundo o próprio autor. Maior prova disso, parece, é o fato do autor ter feito o seu mestrado nessa mesma faculdade.

4.

Por último, o articulista critica o acúmulo de cargos públicos e privados pelo indicado e como prática no serviço público brasileiro. Logicamente que o autor tem o direito de achar que certas práticas são maléficas ao Estado e à sociedade brasileira. Entretanto, o que devemos verificar é se tais práticas ferem a legalidade constitucional, isto é, as regras e os princípios que possuem fundamento constitucional. E o que vemos é que o acúmulo de um cargo de procurador do Estado (advogado do Estado) com um cargo de advogado privado era proibido por regra encontrada na Constituição do Estado do Paraná.

Todavia, devemos perguntar: podia a Constituição do Estado proibir essa conduta? E a resposta deve ser, simplesmente, não. A Constituição da República estabelece no art. 22, XVI, que compete privativamente à União legislar sobre “organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões”; e, ainda, no art. 5º, XIII, que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (grifo nosso).

Como podemos ver, apenas legislação federal pode limitar o exercício de profissões. Assim, a Constituição do Estado é inconstitucional nesse aspecto, devendo prevalecer a lei nº 8.906 de 1994 (Estatuto da OAB), que diz no seu art. 30, I, que são impedidos de exercer a advocacia “os servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora”, isto é, apenas contra o ente que os emprega.

Por fim, acreditamos com o texto que é bom, sim, que as sabatinas sejam pra valer. Mas também acreditamos que já passou da hora de revermos o modo como recrutamos os juízes dos tribunais cuja escolha não pode, ao contrário do que diz o articulista, “caber à própria população”. O Judiciário deve estar obrigado somente com o Direito, que é produzido de forma democrática.

Amálgama




Hugo Guimarães

Bacharel em Direito pela UFPR, com mestrado em Filosofia pela mesma instituição.


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