O Estado de Israel, desde a sua fundação, trilha inúmeras veredas
Em 5 de Iyar de 5708 (ou 14 de maio de 1948), ao irromper de mais um shabat, David Ben-Gurion e outras lideranças judaicas assinaram a Declaração de Independência do Estado de Israel. Nascia um novo país, “em virtude de um direito natural e histórico e por força de uma resolução das Nações Unidas” – assim registrou o documento.
Já em sua Declaração de Independência e em vários itens de sua legislação fundamental, esse novo país foi concebido como um estado judeu e democrático, características que, tomadas conjuntamente, parecem estabelecer um inquietante paradoxo.
Por um lado, a visão religiosa judaica tem seus alicerces assentados na autoridade divina, na verdade absoluta, na imutabilidade de certas leis e na distinção dada a um grupo humano em especial (o Povo Escolhido); a visão democrática, ao contrário, possui raízes no poder que emana do próprio homem, em verdades e leis passíveis de mudança para que se ajustem à realidade e aos anseios de cada época, a fim de preservar sempre a igualdade humana, sobrepassando questões étnicas, religiosas, raciais.
Perante essa dicotomia, surgem dúvidas e debates. Há quem enxergue divergências profundas entre esses dois sistemas de pensamento e defenda a sua incompatibilidade, acabando por abraçar um e rejeitar o outro; mas também há vozes que se erguem para sustentar a complementaridade e mesmo a convergência de ambos. Qual será a posição correta?
A tradição cabalística nos ensina que existem o nosso mundo e o Mundo Superior, sendo que informação vem do Mundo Superior até o nosso, manifestando-se na forma de matéria. Nós podemos ver entes físicos, pessoas, árvores, pássaros, insetos; contudo, se conseguirmos enxergar com os olhos do espírito, seremos capazes de contemplar as forças que governam a matéria, entre tantas outras coisas mais sutis.
A Cabala ainda diz que, neste cenário bipolarizado, o homem foi criado nas mais altas esferas como um ser inicialmente preenchido de Luz; porém, o Criador esvaziou-o dessa Luz, trazendo-o ao plano terreno para que, pouco a pouco, possa encetar sua jornada de aperfeiçoamento, buscando aproximar-se cada vez mais de Deus. Para isso, o homem precisa ter a coragem e a liberdade de agir voluntariamente entre duas qualidades opostas – o seu próprio ego e o Criador –, desenhando seu caminho particular. Em outras palavras, é somente ao transitar entre dois universos contrastantes que o ser humano desempenha a plenitude de seu arbítrio e constrói a si mesmo.
De maneira análoga, o Estado de Israel, desde a sua fundação, exerce soberania e se desenvolve nos âmbitos político, econômico e social à medida que trilha as inúmeras veredas possíveis entre a milenar tradição do Judaísmo e as aspirações da democracia moderna. Essas duas pedras angulares, de fato, não são inconciliáveis, mas tampouco podem ser ditas confluentes: não há encaixe ou sequer proximidade, mas também não há impedimento de que ambas se firmem sobre um mesmo terreno e que, a partir delas, algo grandioso seja edificado.
Desde aquele festivo dia 5 de Iyar de 5708, ano após ano, judeus de todo o mundo comemoram Iom Haatzmaut, o “Dia da Independência”, resgatando o valor simbólico de hoje existir um país desenvolvido e progressista que se ergueu a partir dos escombros de séculos marcados pelas perseguições, pelos exílios e pelos massacres a que nosso povo foi submetido. É uma data de júbilo e libertação que adquire notável significado nesta época em que vivemos, na qual fé e tradição continuamente perdem espaço e regimes totalitários recrudescem em todos os continentes.
Israel resiste como prova de que a religiosidade e a primazia da vontade popular ainda têm poder e, mais do que isso, como lição de que a verdadeira independência só pode ser alcançada através de um exercício contínuo de circulação entre antíteses. Israel nos mostra que, para ser livre e evoluir, é preciso abraçar os paradoxos.
Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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