Estes contos confirmam Viana como um dos melhores escritores contemporâneos brasileiros
Penso que o resenhista pode ter todos os defeitos, menos o de ser canalha. Portanto vou eximir o leitor da pandilha, confessando de agora minha admiração incondicional pela literatura de Antonio Carlos Viana, o que implica numa aprovação prévia à leitura.
Entenda que isso não é uma venda, mas a segurança de que não há chance de ficar insensível aos textos do autor sergipano. Desafio a qualquer um, ao dobrar a última página de Jeito de matar lagartas, hesitar de que se está diante de um dos melhores contistas contemporâneos brasileiros.
De fato, não precisa sequer ir tão longe. Eis o primeiro conto, “A Muralha da China”. Dois irmãos são enviados à casa da vizinha a fim de ganhar tempo, enquanto os pais se preparam para levar a notícia de que o filho e o marido dela morreram num acidente há poucas horas. “Façam de conta que o Lelo ainda está vivo, conversem com dona Irene, fiquem como se ele fosse chegar e que vocês foram lá só pra brincar com ele”, avisa a mãe.
Assim o fazem, então. Entram e dona Irene os autorizam ir ao quarto do filho, onde iniciam a montagem de um quebra-cabeça com a foto da tal muralha, na medida que a hora passa e os pais não dão as caras. O almoço é uma rabada caprichada, que a dona da casa preparou especialmente para a volta do filho e do marido. Os pais das crianças finalmente chegam. Ficam sem coragem. Elogiam o cheiro da comida e a notícia se dispersa.
A tessitura dá voltas, traz à tona pontos secundários, porém evolui sempre atada a um fio tenso. Viana demonstra domínio total sobre a ação narrativa, comprimindo o texto até o fim ocorrer em poucas linhas, de maneira impiedosa, sumária.
A crueldade para com os personagens, aliás, é um expediente comum. Há um sadismo em conformá-los com requinte, humanizá-los com densidão, para em seguinte esboroá-los, expor seus breus, seus pavores, suas chagas emocionais. Um estamparia de tipos dos mais ordinários, invariavelmente alocados em períodos no qual o esforço em lidar com a vida se mostra inútil, descompensador.
É o caso do conto que dá nome à antologia, em que o modo de matar lagartas se equivale à descoberta sexual, à pulsão do prazer que pode ser a mesma da perversão. Nunca há triunfo, superação ou revide. “Salviano” traz a história de um menino que se apega a um porquinho, até o animal encontrar o destino que os homens naturalmente reservam aos suínos. Os contos de Viana não são bonitos, são impecáveis.
Prova disso é a obra-prima “Cara de boneca”. Lilá, um carroceiro de meia-idade, vagueia pelas ruas à cata de tralhas, enquanto atrai olhares desaprovadores das senhoras e a vontade dos garotos. É com ele que aprendem a “educação da rua”, enfileirados atrás do muro do cemitério. “Os meninos iam um por um, baixavam o calção, se esfregavam nele e só. Cada um levava umas folhas de mamoeira para limpar a sujeira que o outro tinha deixado e se esfregava do mesmo jeito, ensebando mais um vez as coxas de seu Lilá, que não gemia, que não dizia nada”.
As reprises de humilhações, contudo, não são suficientes para saciar o gosto pela vilania daqueles que deveriam orbitar nos ardores da juventude. Emprega-se, desse modo, a escalada da maldade, elemento de conflito recorrente nos contos de Viana. Lilá sofre um ataque terrível, mas age de maneira complacente, submissa, chocando o leitor com o correr da história inexistente, a que cabe a ele inventar.
Uma frase da narrativa resume precisamente esse artifício: “Lilá era apenas a confirmação de que o mundo se dividia entre os de coração aflito e os de maldade extrema”. Uma dualidade que também aponta para os temas principais nos textos do autor: a infância e a velhice. Mais presente em suas antologias iniciais, o primeiro vai perdendo espaço para a predominância do segundo, processo inaugurado nos imprescindíveis “Aberto está o inferno” e “Cine Privê”, que conquistou, em 2009, o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes.
Decadência da alma e do corpo
Dos 27 contos, mais da metade trata da velhice e dos conflitos a ela associados. Os protagonistas são solitários, inválidos, vítimas da ruína física, do desprezo familiar, da ronda da morte. Não é incomum, sobretudo no caso das personagens femininas, a intenção de fuga, de retardar o tempo, porém qualquer arroubo não passa de autoengano, de uma fantasia que mais a frente se esfarela para revelar o quão medíocre são.
Vide “Roteiro da solidão”, no qual uma senhora põe o anúncio de venda da sua casa somente para “ter alguém batendo à sua porta, convidar para entrar, tomar um café e entabular negociações em que ela não estaria nem um pouco interessada”. O plano, de fato, atrai interessados pelo imóvel e um visitante assíduo, no entanto a trégua da solidão é uma espécie de aditivo para um vazio vindouro ainda maior.
O mesmo ocorre em “Professor Locarno”, que narra a festa de aniversário de um octogenário travado numa cadeira de rodas, a todo momento desejando que a cerimônia fosse por outro propósito. “O professor Locarno não queria festa nenhuma e até torcia para morrer ali mesmo, diante daquela alegria dos filhos que vieram de todos os cantos do Brasil”. Num fluxo contrário, está “Amarelo Klimt”, sobre um artista plástico que abriga um conhecido em sua casa, um bon vivant de meia-idade metido a garotão, cujo entusiasmo pela vida, recorrendo a uma alusão à pintura, é a camada superficial que disfarça uma tela sombria, revelada quando tudo faz sentido ou já não faz sentido algum.
Nos contos protagonizados por mulheres, ou melhor, senhoras, a exemplo de “Dona Katucha”, “Madame Viola faz escova progressiva” e “Florais”, o conflito está na negação da idade, em tentar burlar o efeito do tempo sobre o corpo, convivendo com mentiras, com possibilidades infundadas que apenas comprovam que o envelhecimento é um naufrágio incontornável. “Estamos muito derrubados”, conclui, a certa altura, uma das personagens.
Tais narrativas também evidenciam outra característica latente do autor: o uso de elipses; do não-dito, do insinuado. Na prosa enxuta, precisa, a mesma contundência causada pela crueldade é a ocasionada pela sutileza. “(…) fizera com Alan Delon o que jamais havia feito com o marido. Se tivesse feito tudo aquilo com o finado, a felicidade dos dois teria sido bem maior (…) Mas ele nunca pediu, nem mesmo chegou a insinuar, era homem respeitoso além da conta”. Nada pode ser mais explícito, ainda que subentendido.
No céu de diamantes
Nascido num lugar “onde era só mato”, como afirmou numa entrevista, é comum Viana usar essa geografia da memória para situar seus personagens. Os retratos da infância se confundem com a ambientação dos contos, principalmente nas coletâneas O meio do mundo e Brincar de manja.
Jeito de matar lagartas carrega outros passaportes, respira ares cosmopolitas e se entende com tecnologias, aplicativos sociais. “Cozinha benguele”, sobre um casal unido restritamente pelo sexo, passa-se na França, país onde o autor fez doutorado. Paris é citada ainda em outros textos, da mesma forma que o Egito, em “As margens férteis do Nilo”. Mais para o fim, uma senhora usa o Skype; antes, o rosto de uma falecida no santinho é melhorado no Photoshop.
Já “Lucy in the sky”, menção direta à canção dos Beatles, tem um sabor especial para o resenhista. Uma mulher que se recupera de transtornos compulsivos (opa!) leva um mendigo para casa com propósitos sexuais (opa!, opa!). Mas, entenda: não há aqui qualquer interesse em se iniciar uma discussão sobre maçãs e laranjas. Fica só o contentamento do autor de se afinar a uma mesma frequência que a de um autor melhor e admirado.
De fato, uma discussão que vale a pena trazer à baila é a de como escrever um conto. O próprio Viana é autor de “Guia de redação: escreva melhor”, mas não é necessário correr para este livro. Basta se debruçar sobre qualquer narrativa de Jeito de matar lagartas e prestar atenção ao manejo do espaço, da linguagem, à dinâmica criativa e à construção de personagens. Está tudo ali. Só é preciso saber olhar.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
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