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O Paraná manchado de sangue

por André Egg (02/05/2015)

O modo paranaense de solucionar crises políticas

Espelho d'água e bandeira do estado tingidas pelos manifestantes no dia seguinte ao massacre. (foto: André Egg)

Espelho d’água e bandeira do estado tingidas pelos manifestantes no dia seguinte ao massacre. (foto: André Egg)

Todo mundo viu as notícias do massacre perpetrado pela Polícia Militar no Centro Cívico de Curitiba no último dia 29 de abril. O número de mais de 200 feridos superou em múltiplos de dezenas o caso anterior – em 1988, quando Alvaro Dias era governador e a PM marchou com os cavalos sobre os professores em greve com saldo de 10 feridos.

Na verdade, o caso é apenas mais um numa espiral de violência que vem sendo semeada irresponsavelmente por setores conservadores da política do Estado. Sempre que os políticos da linhagem de Beto Richa estiveram no poder a PM se prestou a este tipo de ação. Na gestão de Alvaro Dias (governador pelo PMDB entre 1987 e 1990) ocorreu o pisoteamento dos professores em greve. Na gestão de Jaime Lerner (governador pelo PFL por dois mandatos, entre 1995 e 2002), foram diversos casos de violência da PM contra os Sem-Terra, que chegaram a ficar longo tempo acampados na praça, e inspiraram seu cercamento pelo governador.

Os métodos de ação de Alvaro Dias, Jaime Lerner e Beto Richa não são uma mera semelhança por coincidência. O uso da Polícia Militar como último elemento na dissuasão de reivindicações políticas é uma marca do grupo político forjado no autoritarismo, num estado que o tem o mando centralizado em grupos políticos que ocupam os cargos relevantes no executivo, legislativo e judiciário, com ligações umbilicais com as grandes propriedades rurais, as grandes empresas e o domínio dos órgãos de imprensa (escrita, radiofônica e televisiva).

Esta máquina azeitada de mando político foi vista em ação este mês, tanta truculência provavelmente podendo ser interpretada como os últimos estertores de um modo de fazer política que não serve para um país democrático no século XXI. O governador, após um recuo tático com seu “pacotaço” derrotado pelos movimentos de fevereiro, voltou aparentando disposição para a negociação. Enquanto isso, urdia sua trama sórdida para novamente atropelar as reivindicações legítimas do funcionalismo que não aceitava o comprometimento das finanças públicas perpetrado pelo governador e se recusava autorizá-lo a usar os fundos de aposentadoria para pagar despesas correntes.

O governador foi alegremente apoiado por grande grupo de deputados que não sabem fazer política senão vendendo seu voto nas questões legislativas em troca de migalhas do Executivo em emendas, obras, nomeações ou outros tipos de afagos políticos. Teve a seu favor também a liminar do desembargador que impediu que a população acompanhasse as votações dentro da ALEP, por considerar que se podia assistir da TV.

Mas o pior de tudo, foi o esquema armado em conjunto pelo governador e seu Secretário de Segurança Pública, Fernando Francischini (SD): foi montado, com antecedência, um cerco policial a todo o Centro Cívico, cuja intenção clara era provocar um episódio de confronto, contando com a possibilidade de jogar a culpa em “arruaceiros”, black blocks, e em última instância no PT. Sendo o Paraná um dos estados onde o anti-petismo é mais forte e mais violento, a tática parecia de sucesso garantido, embora o governador e o secretário não tenham condições intelectuais de medir os riscos de sua atitude.

O jornalista Fábio Piperno já apontou a diferença entre a prática de Beto Richa e a atuação de seu pai, José Richa, primeiro governador eleito após o Regime Militar. E Francischini representa muito bem o que um cientista político chamou de “nova/velha direita”. Esse discurso da violência e da aniquilação do oponente político, da maneira como vem sendo empregado por este grupo, acaba justificando todo tipo de truculência. Quando pessoas com esta motivação têm a polícia nas mãos, o resultado é o que vimos. A agressão policial foi preparada com antecedência, pois os policiais já estavam instruídos que seriam atacados por manifestantes, “arruaceiros”, e black blocks. A atuação do governador, do secretário e dos policiais deve ser inserida assim num contexto mais amplo de repressão, que se agigantou nos protestos de junho de 2013, e também nos protestos anti-copa em 2014. Políticos que nunca andaram no meio do povo, que foram criados em apartamentos, “pisando só em tapete”, demonstram-se extremamente temerosos das aglomerações populares e das manifestações públicas. Não conseguem enxergar a normalidade democrática das manifestações populares, pois pra eles política se faz em acordos de gabinete. A escalada de brutalidade policial já é preocupação da Anistia Internacional, que produziu a interessante cartilha “Eles usam a tática do medo”.

Assim, o governador e o secretário – com a conivência do judiciário, organizaram um aparato policial desmesurado. O que o jornalista Rogério Galindo chamou com sagacidade de “UPS do Centro Cívico”, foi a mobilização do triplo do efetivo policial normal da capital para impedir o povo de participar de uma decisão que lhe afeta. O bloqueio do Centro Cívico armado pelo governador chegou a impedir mais de 1000 funcionários da prefeitura (e o próprio prefeito) de chegarem normalmente para o trabalho na segunda-feira cedo.

As votações iam transcorrendo dentro da ALEP, em processo acelerado de várias seções por dia, adentrando a noite para votar tudo antes que os ônibus dos sindicatos chegassem do interior para aumentar a pressão sobre os deputados. No momento fatídico da votação final, cerca de 20 mil manifestantes se aglomeravam nos pontos não impedidos pela polícia. Segundo alguns relatos, um grupo tentou derrubar uma grade de proteção, o que desencadeou o ataque da tropa de choque. O que se viu então foi o que sabemos, um massacre absurdo, com uso abusivo de armamento não letal,  em proporções provavelmente ainda não vistas no Brasil. Policiais atiraram balas de borracha spray de gás e bombas de efeito moral a esmo na multidão. Muitos tiros foram aplicados sistematicamente nas mesmas pessoas, como demonstram várias reportagens e relatos. Como exemplo, essa reportagem da Gazeta do Povo sobre o abuso das balas de borracha. Ou este depoimento colhido pelo jornalismo da Carta Capital de um professor que foi atingido propositalmente no olho.

O repúdio ao massacre vem sendo amplo e forte em certos setores sociais. Em outros ainda há a tentativa de defender a ação da polícia. Por exemplo, a Anistia Internacional divulgou nota veemente, exigindo investigação e responsabilização do governo. O Ministério Público do Paraná foi célere em instaurar processo de apuração, ainda aberto. O PSOL entrou com representação na Procuradoria Geral da República. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação emitiu nota de repúdio, associada à mobilização e greve geral que já estava programada para o dia 30 de abril. A Rede Sustentabilidade (partido de Marina Silva, em processo de criação) também foi taxativa. Já o senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB de São Paulo, tentou defender a ação de Richa (não é pra menos, a polícia de São Paulo, controlada pelo PSDB, também não foge ao padrão violento, como ironizou The Piauí Herald).

Na Assembléia Legislativa, duas posturas opostas foram simbolizadas pela atuação de dois deputados: Ademar Traiano (PSDB), presidente da casa, e líder da “tropa de choque” do governo entre os deputados, sabendo do início do confronto e instado a suspender a sessão afirmou: “as bombas não são aqui dentro: vamos votar”. No lado oposto, Tadeu Veneri (PT), líder da oposição na ALEP e presidente da Comissão de Direitos Humanos da casa, protocolou representações contra o governo em várias instâncias.

Agora inês é morta. O governo aprovou o projeto de seu interesse, que foi sancionado imediatamente pelo governador. O rescaldo foi o escancaramento do modo de operação política de Beto Richa e de Francischini. Tratam as finanças do Estado, os deputados da ALEP e a polícia como propriedades particulares a serviço de seus interesses políticos. O que levanta novamente o assunto da urgência de desmilitarização das polícias, com o adendo de que está demonstrado que o comando da tropa não pode ficar a cargo dos governadores. É um “brinquedo” muito perigoso, e quando fica na mão de crianças mimadas vemos o resultado.

No fim, a reportagem do jornal Gazeta do Povo pegou na veia ao entrevistar o Secretário da Fazenda, patrocinador de todas as novidades de 2015 (tarifaço, pacotaço, reforma do fundo previdenciário, etc.): se a lei aprovou mudanças retroativas que valem para janeiro de 2015, porque a pressa em aprovar as medidas na ALEP e sustar a discussão com a representação dos servidores?

Todos nós que estivemos envolvidos neste dia fatídico, tomaremos nas mãos a responsabilidade de provocar profundas mudanças políticas e institucionais, para que isso nunca mais aconteça. Se não formos capazes de fazer isso, a democracia não sobreviverá. Afinal, poucos dias atrás os manifestantes do “fora Dilma” andavam tirando selfie com PM e pedindo a volta da Ditadura. Foi muito sábio quem comparou as duas coisas, e resumiu a situação toda numa frase de tuíter:

Quem pede intervenção militar é tratado com educação. Quem pede educação é tratado com intervenção militar.

André Egg

Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).

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