A coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica literária.
Pedem-me, muitas vezes, que comente sobre o espaço, cada vez menor, concedido à crítica literária em jornais e revistas. Contra o senso comum, repito que a crítica tem o espaço que merece.
Se o espaço diminui cada vez mais — e se o número de publicações dedicadas à literatura escasseia —, isso se deve não só a certa políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também aos próprios críticos, que afastam os leitores ao incorporar a linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros.
Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer chegar ao ponto final do texto sem saber o que, exatamente, o articulista pensa. Quer e precisa de uma crítica que se disponha à tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Portanto, se a crítica deseja recuperar seu espaço, deve, antes de tudo, reaprender a respeitar o leitor.
Forma de hipocrisia
Em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo, Karl Erik Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, questionado pelo jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa afinidade, essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”.
Quando li essas palavras, fiquei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião sob os jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso hermético, ficam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Papel da crítica
Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua auto-satisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que deve existir entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e precisa ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o depauperamento da cultura, da própria civilização.
Um subterfúgio verbal
Tornou-se comum o julgamento estereotipado da crítica, de que ela trabalha apenas com “critérios estabelecidos” e, assim, não lê a obra “dentro daquilo a que o autor se propõe”. Agindo dessa forma, os críticos dificultariam a renovação e a inovação na literatura.
Ora, a expressão “critérios estabelecidos” é um subterfúgio verbal, pois não explica nada. Poderíamos dizer, da mesma forma, que as estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo “critérios estabelecidos”.
A questão, na verdade, é outra
Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham dentro do sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária, seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças, para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade, evitando adulações e ideias preconcebidas. E ambos devem agir, principalmente, com independência.
Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica, certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e escritores cumprirem suas funções.
“Verniz onírico”
A crítica precisa reencontrar o caminho que pode salvá-la do discurso hermético, do medo de julgar e do relativismo cultural. Ela precisa se libertar também do formalismo emburrecedor e da visão monista da obra literária e da própria realidade.
É inacreditável que grande parte da crítica e da produção acadêmica continue de joelhos diante do estruturalismo. O mesmo estruturalismo que Todorov superou há trinta anos, em 1984, quando publica Critique de la critique.
Mas nossos professores de Letras forçam seus alunos a estudarem o Todorov de Poétique de la prose, que foi publicado em 1971… Assim funciona parcela significativa da academia: estabelece-se um modelo — e a maioria só consegue papagueá-lo.
À parte essas teorias — que não passam de “verniz onírico”, como bem definiu Thomas Pavel em A miragem linguística, infelizmente pouco estudado no Brasil —, nossos estudiosos pretendem desvincular a literatura da vida real, como se a obra literária fosse uma espécie de geração espontânea. Perdoem-me por repetir o nome de Todorov, mas sua lição, no delicioso A literatura em perigo, é atualíssima: “Assassinamos a literatura quando fazemos das obras simples ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou solipsista”.
Dupla desorientação
O problema, entretanto, começa muito antes da universidade.
Os futuros críticos estão, neste exato momento, recebendo as mesmas velhas e ultrapassadas lições nas escolas. Continuam ensinando aos jovens que, por exemplo, Canaã, de Graça Aranha, ou Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, são ótimos romances, o que é um disparate.
Ao mesmo tempo, a literatura contemporânea brasileira tem entrado com força nas escolas, por meio das compras de paradidáticos feitas pelos governos estaduais e federal, o que cria o segundo problema: 95% dessa literatura irá para o lixo dentro de uma ou três décadas, ou até mesmo antes. É o processo de depuração natural do sistema literário. Mas esses livros são lidos hoje na escola como se fossem paradigmas a serem seguidos, exemplos de boa literatura.
Temos, portanto, dupla desorientação: nossos jovens leem péssimos autores antigos como se fossem gênios — e péssimos autores contemporâneos como se fossem o que há de melhor na literatura.
Enquanto isso, os clássicos são esquecidos. Não entendo por que um jovem de 15 ou 16 anos não lê, por exemplo, Homero na escola. Há ótimas traduções, modernas, extremamente bem realizadas; as histórias são fantásticas, empolgantes; o texto é claro; além disso, Homero está longe de ser um chato sentimentaloide como José de Alencar…
Mas é a escola que temos: claudicante como todas as instituições deste país.
Império dos filisteus
No Brasil, é preciso, a cada dia, redescobrir a coragem de viver e de pensar. Não leio jornais há anos — exatamente para me proteger da ideia de que a realidade do país é irreversível.
Mas a “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset completou seu trabalho de contaminação nas últimas três décadas. A pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para ficar.
O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império dos filisteus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio filisteísmo”.
Por isso mesmo não podemos ficar em silêncio ou agir como vaquinhas de presépio.
Uma só resposta
Vivemos num tempo em que o simplismo e o raciocínio esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que, demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo e, prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu próprio eu — e só então expressa suas ideias, seus sentimentos.
É a época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser não só uma reflexão, mas de apontar caminhos, soluções, regras, quando não verdades.
Tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para as flores das margens, numera as linhas — e fecha a página do caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O esquematismo refulge a cada linha.
Assim, a coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica literária.
Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem branca, apressados e superficiais.
Tempo triste, desolador — não só para a literatura —, no qual os homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: “— Sim”.
De quem o medíocre gosta?
O relativismo, que hoje impera em todos nichos da cultura, chama de intolerante a quem possui certezas. Os fracos, temendo ser julgados, agem como preconizou Ernest Hello: acrescentam a cada frase uma perífrase açucarada: “parece que”, “ousaria dizer que”, “se é permitido expressar-se assim”.
Hello, hoje desgraçadamente esquecido, está certo: “Ao medíocre agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre nenhum tema, que nada afirmam e que tratam com respeito todas as opiniões contraditórias. Toda afirmação lhe parece insolente, pois exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento das transições e dos matizes”.
Competição de coxos
Certa vez, respondendo ao e-mail de um amigo, no qual ele fazia comentários sobre minhas críticas, escrevi que esse era um trabalho nem sempre agradável. E por uma simples razão: muitas vezes, a honestidade me obrigava a fazer comentários desfavoráveis.
À parte o fato de meus juízos estarem ou não corretos, o que apenas o tempo poderá dizer, quando, depois de ler certa obra, vejo-me obrigado a mostrar incongruências e desatinos, ajo assim sem nenhum prazer. Na verdade, sou tomado de certo mal-estar, pois, se há uma pulsão que move meu trabalho, é a de apontar acertos. Ao contrário do que muitos pensam, duvido que algum crítico seja movido por uma pulsão sádica.
E se o autor brasileiro pensa assim, é apenas por um motivo: ele não está acostumado a receber críticas. Do que leio na mídia, percebo que a crítica desfavorável é, muitas vezes, escrita de forma velada, protegida sob uma terminologia praticamente hermética, como se, ao dissimular seu julgamento, o crítico pretendesse não se comprometer ou não fazer inimigos.
Outra prática comum entre nós é a de considerar bom o que é apenas razoável ou medíocre. Alguns escritores, certamente, ficam satisfeitos — e o suposto crítico ganha amigos e fama. Esse tipo de celebridade, contudo, mostra apenas o quanto a perversão atingiu a literatura, a vida intelectual.
De minha parte, se considero um livro ruim, afirmo claramente o que penso. Por que haveria de fazer concessões? Por que haveria de tratar como gênio quem é somente mediano? Gotthold Lessing tinha um pensamento apropriado sobre o assunto: “Em uma competição de coxos, o primeiro que chega ao final continua sendo coxo, apesar de tudo”.
Os dançarinos
Para o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki, os críticos atuam como porteiros de um baile, devendo introduzir um pouco de ordem na festa e, sobretudo, rechaçar, logo na entrada, os charlatães e os incapazes, a fim de deixar mais espaço no salão para os bons dançarinos.
Penso da mesma forma, mas faço uma ressalva: em um país subdesenvolvido como o Brasil, onde a leitura não é um hábito, as edições raras vezes superam os dois mil exemplares e grande parte da população não ultrapassa a linha do analfabetismo funcional, o papel do crítico não pode ser apenas o de porteiro do baile. Porque, neste país, o salão está quase vazio e a orquestra toca, sem entusiasmo, para poucos dançarinos.
Quem faz crítica literária aqui deveria trocar ideias, de maneira didática e sincera, com a minoria iluminada que se interessa pelo assunto, tentando formar consciências para uma verdade simples: em literatura, exatamente como acontece nos demais espaços da vida, há o ótimo, o bom, o medíocre e o ruim.
O baile, portanto, está aberto a todos. Mas não há nada de errado em se aproximar de um dançarino e dizer: “Meu caro, você precisa treinar mais” ou “Meu amigo, você é um desastre”.
Polidez
O crítico literário deve buscar a justiça que está inscrita na própria obra. Essa deve ser a predisposição, sempre: deixar que a obra fale.
É necessário ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer. Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis limites. E devo responder a duas questões básicas: a) Como esta obra representa o possível?; e b) O resultado está à altura do que essa representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser uma estrutura coerente?
Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o interlocutor, deixar a conversa fluir sem a prévia preocupação de provar este ou aquele ponto de vista.
Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos já falaram.
Então, por polidez, escuto até o fim seus argumentos. Mas o autor, ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas ideias e da forma como as expôs, já julgou a si próprio.
O chavão da vanguarda
O ficcionista precisa se vacinar contra a doença que chamo de narratofobia. Precisa abandonar o pavor de narrar histórias. E deve abandonar o clichê, o lugar-comum.
Quando digo clichê, não me refiro a “noites estreladas em que a lua derrama sua luz sobre os namorados”. Há esse lugar-comum, claro. Mas hoje temos clichês vanguardistas. Um jovem de 20 anos que escreve algo parecido com “beba coca-cola / babe cola / beba coca” acredita estar em condições de igualdade com a melhor vanguarda. E há críticos e professores que dirão isso a ele… Mas, na verdade, esse jovem apenas repete um lugar-comum, não tão velho como o exemplo das estrelas e da lua, mas, na forma e no conteúdo, tremendo chavão.
Patologias
Mas há outros problemas na nossa ficção.
Destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática (muitos escritores, inclusive, justificam seu desconhecimento e sua negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. São as patologias atuais.
Crítica e patrulhamento
Há alguns anos, George Steiner provocou polêmica na Europa ao afirmar que “é muito fácil sentar-se aqui, nesta casa, e dizer: ‘– O racismo é horrível!’. Mas pergunte-me o mesmo se uma família de jamaicanos se mudar para a casa ao lado com seis filhos que escutam reggae e rock and roll o dia inteiro […]”.
O ensaísta terminava a afirmação salientando o fato de que, caso tal família se tornasse sua vizinha, seu próprio imóvel perderia, com certeza, grande parte do valor.
Vivendo sob o império do politicamente correto, Steiner foi acusado, é claro, de racismo. Os intelectuais de esquerda ficariam felizes se ele tivesse dito que, no caso de um dia ter vizinhos desse tipo, se submeteria de bom grado à barulheira, recusando o direito de desfrutar do silêncio em nome de viver uma inusitada experiência multicultural; e que, quando fosse avisado sobre a deterioração do valor de seu imóvel, o transformaria, com prazer, num abrigo para imigrantes desempregados.
A polêmica mostra como vivemos em tempos inseguros. Hoje, os ideólogos que se tornaram funcionários públicos querem nos ensinar que devemos nos sentir felizes quando temos o bem-estar e o silêncio violentados — ou quando a propriedade que adquirimos com imensos sacrifícios é desvalorizada da noite para o dia.
David Hume não sofria esse tipo de patrulhamento. Em seu ensaio “Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”, afirmou, sem receio, que “os gracejos de um aguadeiro, as observações de um camponês e a linguagem confusa de um carregador ou de um cocheiro de praça são coisas naturais e desagradáveis, simultaneamente”.
O exemplo não é gratuito. Hume o utiliza para defender uma tese simples: a literatura que apenas reproduz a realidade, que é uma cópia fiel do real, é, no mínimo, insípida.
Ele também critica o oposto: os escritores que recorrem a ornamentos estilísticos quando o assunto de que tratam não comporta tais maneirismos.
Buscando um “meio termo justo entre os excessos de requinte e de simplicidade”, ele afirma, no entanto, “ser difícil, senão impossível, explicar por palavras” como chegar a tal equilíbrio. Mas salienta que o “exagero do requinte, além de ser o extremo menos ‘belo’, é o mais ‘perigoso’”.
Hume enfrentaria sérios problemas se vivesse no Brasil atual. Imagino-o suplicando, inutilmente, aos escritores para que parassem de escrever como aguadeiros, camponeses, carregadores e cocheiros. Ou talvez repetisse, sem sucesso, a lição de Joseph Addison: “Escrevam com sentimentos naturais, mas que não sejam óbvios”.
No atoleiro moral
Um amigo, infelizmente já falecido, publicou certa vez, no Facebook, uma curiosa frase da escritora Anne Rice. Para ela, “é triste que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a maldade”.
A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo, mostra-se melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal.
Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar interesse?
O problema da reflexão de Anne Rice e que ela só exprime o senso comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais interessante que a maldade.
A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados — do noticiário à literatura — por todas as formas de mal, dia após dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos apresentar o mal como regra de todos os homens — e exatamente por esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do que a maldade.
Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a figura do egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na ficção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia, também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do século XX elevou à categoria de deus.
Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não desorientado, pois a bondade — neste mundo que aparentemente cultua o mal — inquieta, perturba, estimula.
Precisamos, portanto, abandonar o senso comum dos nossos intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido e virar no avesso a frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a bondade — e por uma só razão: ele é amplamente difundido, propagandeado.
A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no atoleiro moral — e não querem que ele saia daí.
Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente interessante — e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que pretendem aprisioná-lo.
Fracasso, vileza e perversidade
Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos contemporâneos usando uma pinça.
Utilizando-a de modo cirúrgico, posso dizer que às vezes tenho a impressão de que começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno vanguardismo.
Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer aos departamentos de Letras das universidades e aos críticos que só valorizam acrobacias linguísticas.
Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à qual dei o nome de narratofobia.
Mas começam a surgir escritores dispostos a contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. E outros já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.