O enredo de "Os Invernos da Ilha" possibilita várias camadas interpretativas, do romance de aventura ao romance alegórico.
1.
Um dos acontecimentos máximos da literatura ocidental foi o encontro de Hölderlin e Goethe. Quando Schiller apresentou-lhe os versos do jovem poeta, Goethe sugeriu algo como a simples contemplação da natureza como contenção dos voos do espírito. Alguns chegaram a criticar essa recomendação como desdém de um homem autocentrado. No entanto, em Poesia e Verdade (1811-1833), curiosamente, Goethe revela que essa fora a mesma recomendação feita por seu pai, em relação a seus desenhos. Ut Pictura Poesis, diria o poeta latino Horácio. A despeito das infindáveis discussões, a poesia é como a pintura ao menos de umas formas: primeira, como contemplação da experiência profunda; segunda, com clareza e lapidação de estilo.
Além de contemplação e clareza, Os invernos da ilha tem uma qualidade que se perdera, quer por incapacidade, quer por incompetência dos escritores: a narratividade. Ao contrário dos solilóquios lamuriosos contemporâneos, Rodrigo Duarte sabe contar histórias.
Jorge Luis Borges, exímio mestre, via nas Mil e um noites a matriz da narratividade. E mesmo os supracitados Goethe e Schiller, no clássico epistolário, os mecanismos da narrativa homérica de “avançar” e “retroceder”. O impressionante poder narrativo de Os invernos da ilha está exatamente nesses aspectos. Mas não se trata de virtuosismo gratuito e ostensivo; assim como Borges, ao transformar a narrativa detetivesca numa alegoria sapiencial, o enredo possibilita várias camadas interpretativas, do romance de aventura ao romance alegórico, ampliando o público-leitor, do adolescente ao erudito.
Trata-se de um relato das memórias de Florian Links, na hibernal Ilha de Sant’Ann de La Afuera. Fugindo do passado e do inerente sentimento de culpa – sentimento este que os ideólogos de nosso tempo tentam esconder –, Florian chega à ilha para ser monge, mas necessita passar pela ascese. Esta característica aproxima o texto de romances de formação (“Bildungsroman”), como o denso A montanha mágica, de Thomas Mann (1924).
Se por um lado a ilha, a águas e o inverno representam um grau de maturação espiritual e moral para o protagonista, por outro o reencontro com seu amigo de infância, então monge, D. Fernando, seu envolvimento com Cecília von Lockenhaus e com o pedante professor Philippe Rousseau, e também com os irmãos Viviana e Jorge Rulfo, marcam a trama. Essas relações conectam Links ao romance dentro do romance: o relato das memórias do corsário holandês Olivier van Noort, que levariam a um tesouro.
Além de nomes mais conhecidos no gênero, como Stevenson, Verne, Melville e Conrad, convém destacar o romance em versos O Corsário, de Lord Byron, onde o poeta, desprezando a imposição crítica romântica que exigia o nacionalismo como fundamento das narrativas épicas, aprofunda os conflitos históricos, míticos e místicos entre Oriente e Ocidente. Garcia desenvolve isso magistralmente, sobretudo por meio do protagonista e narrador Florian Links, e do antagonista, o pedante – só um pedante afirmaria traduzir decassílabos latinos (?) – professor Philippe Rousseau. Uma cena bem representativa disso é o duelo entre ambos, recordando dois momentos literários, embora sui generis: o já citado A montanha mágica, de Mann, e Uma noite na taverna, de Álvares de Azevedo.
História de amor, aventura, investigação científica e cultura simbólica são méritos desse romance. A narrativa de Van Noort, como as histórias de Sherazade, espelham a narrativa de Florian Links.
Há certa economia na delineação das personagens, sem prejuízo para a caracterização. Rousseau é pedante, e seu cinismo é reforçado ao mostrar os caninos quando sorri; Cecília faz um gracejo mostrando a ponta da língua; Viviana é toda cabelo e olhos; Jorge é todo ingenuidade e curiosidade; as piscadelas de D. Fernando, embora apareçam fortemente traçadas somente a partir do capítulo XXXVI, são um tique memorável etc. É um recurso importante para a ação, o avanço e retroceder dos quadros, algo da mestria de um Flaubert.
Outro aspecto importante é cromatismo verbal (Ut Pictura Poesis):
As escamas marrom-clareadas, dos lados, e azuis com pequenas costuras brancas, no meio, davam a impressão de que um pneu de bicicleta a atropelara por toda a sua extensão. […] Baixei os olhos de novo à cobra e confesso que nem vi quando a flecha cruzou a caverna e se enterrou, inteira, na sua cabeça. O bicho tombou morto, Viviana gritou, eu gritei também e viramos juntos para a abertura da entrada. (p. 339)
Esta cena nos faz recordar, embora sem a mesma tragicidade, a belíssima descrição de “A morte de Lindoia”, do Uraguai, de Basílio da Gama:
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores.
Tinha a face na mãe e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto,
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e apresse, no fugir, a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco e quis três vezes
Soltar o tiro e vacilou três vezes,
Entre a ira e o temor. Enfim, sacode
O arco e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia e fere
A serpente na testa, e a boca, e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo co’a ligeira cauda
O irado monstro, e, em tortuosos giros,
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva no braço a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que, ao despertá-la
Conhece, com que dor!, no frio rosto
Os sinais do veneno e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
2.
Convém destacar os símbolos como aporte de interpretações alegóricas. Além do símbolo da Ilha como lugar ideal (como Cipango, El Dorado), lugar-nenhum (como a Utopia, de Morus), poder-se-lhe-ia relacionar a própria literatura.
Outro símbolo importante seria o inverno. A primeira referência ao inverno como estágio do conhecimento aparece sutilmente no coração da narrativa, num momento de conflito interior de Florian Links, quando, ao caminhar por aquela terra desolada, uma mulher (“une passante”) interpela-o, relacionando sua tristeza com o inverno da ilha, encorajando-o que o inverno é promessa da próxima estação.
Neste sentido, o segundo elemento importante de iniciação é a água, sobejamente confirmado pela poética fenomenológica de Gaston Bachelard, em As águas e os sonhos (1942). Florian Links precisa enfrentar três desafios numa espécie de ascese da coragem. O primeiro, no resgate frustrado de Viviana Rulfo; o segundo, no mergulho com Cecília, igualmente falho; e o terceiro, no salvamento de Jorge Rulfo, este bem-sucedido.
Era o terceiro incidente “aquático” naqueles últimos meses e vieram-me – em flashs – as cenas do “resgate” de Viviana na praia do porto e o mergulho desastroso no naufrágio de Spilbergen [com Cecília]. (p. 351)
É como se o destino, ou como prefere o narrador, a Engrenagem, testasse-o repetidamente, até que ele adquirisse coragem. Ao enfrentar o mal, a personagem amadurece. Nas palavras do próprio Florian Links interpretando o episódio de Jonas e o clássico Moby Dick:
o oceano sempre foi um símbolo do desconhecido, da desordem, o lugar que esconde mistérios e feras, entre tormentas e ciclones. O mar, classicamente, representa o Mal. […] No fim, Moby Dick é a paisagem de inverno feita apenas de abismos, os abismos que assombram os nossos sonhos, sussurrando versos de morte (p. 51).
E não por acaso o elemento aquático é reincidente. Quando os quatro, Links, Cecília, Rousseau, Viviana e Jorge, encontram o cemitério nativo, diz o Professor: “Os nativos acreditam que as almas são carregadas por baleias a uma espécie de Hades do alto-mar.” (p. 237)
É neste sentido que a obra adquire certo diálogo entre o tempo da narrativa de Van Noort, com um incrível tratamento de linguagem – Garcia emula belamente a linguagem algo barroca, embora se trate (hélas!) de uma tradução da personagem Philippe Rousseau – e o tempo narrado pelo protagonista Florian Links, sobretudo em relação à simbólica cristã.
Os invernos da ilha é altamente recomendado. Rodrigo Duarte Garcia não se apresenta como estreante, mas como uma grande promessa. Como já dissemos, a narrativa é envolvente e, sobretudo, prazerosa. Valemo-nos do testemunho metaliterário de Jorge Rulfo, no coração do livro:
É, que a gente pode morar nessa ilha pequena, trabalhar de pescador, do que for, mas tem todo um outro mundo, enorme. E que dá para imaginar esse mundo, as paisagens que ninguém nunca viu, a gente com quem ninguém nunca falou. Fazer tudo isso um pouco nosso, também. E abrir um monte de possibilidades diferentes […] Essas coisas fazem a gente se sentir menos sozinho. (p. 336)
Wagner Schadeck
Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.
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