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Os antigos sabiam melhor

por Daniel Lopes (29/05/2016)

O vigor do Ocidente, pensava Leo Strauss, é indissociável de suas bases clássica e judaico-cristã.

“Uma introdução à filosofia política: dez ensaios”, de Leo Strauss (É Realizações, 2016, 400 páginas)

1.

O impulso do pensamento de Leo Strauss (1899-1973) é a sensação de crise da modernidade. Escrevendo e palestrando pouco depois do Holocausto e da Segunda Guerra, o filósofo acreditava que estávamos vivendo o ápice dessa crise – antes de mais nada, desde o seu ponto de vista judaico. Uma das grandes esperanças de parte dos ativistas judeus, a parte assimilacionista, era que o progresso do Ocidente encerraria o sofrimento de seu povo, na medida em que automaticamente faria com que o ódio antijudaico diminuísse. “Mas os resultados foram um tanto decepcionantes”, conclui Strauss no ensaio “Progresso ou Retorno?”. Até porque “a assimilação provou requerer a servidão interior como preço da liberdade exterior”.

Essa ideia de progresso é apenas uma parte do todo do que se convencionou chamar modernidade. O Ocidente tem duas raízes: a Bíblia e a filosofia grega. Em seu início, a modernidade preservou a moralidade bíblica, apesar de negar a teologia do livro; em sua maturidade, com Nietzsche, ela finalmente decidiu que a moral bíblica é um bebê que deve ser jogado fora junto com a água do banho que é sua teologia.

Paralelo ao contínuo ataque à moralidade judaico-cristã, o Ocidente assistiu, desde o século 19, à “emergência da Ciência com ‘C’ maiúsculo”, como diz Strauss. “E então a grande distinção entre filosofia e ciência, com a qual todos estamos familiarizados, se produziu. A ciência é a parte bem-sucedida da filosofia ou ciência moderna, e a filosofia é a sua parte mal-sucedida – o restolho”.

Ora, o advento da ciência política moderna, da ciência política positivista, é uma consequência dessa emergência da “Ciência”. E a crise da modernidade, escreve Strauus no seu texto sobre “As Três Ondas da Modernidade”, é, “primariamente, a crise da filosofia política moderna”.

A filosofia clássica tinha como objetivo fundamental entender a natureza humana, e a filosofia política clássica – iniciada com Sócrates e que percorre um longo caminho, até os escolásticos – tinha como preocupação entender a natureza da sociedade humana. Os clássicos colocavam no primeiro plano de importância para o ser humano qualidades como bondade, moderação e sabedoria – mesmas características que deveriam nortear a ordem social. A filosofia política desses pensadores, escreve Strauss,

é abrangente; ela é, ao mesmo tempo, teoria política e habilidade política. Ela está tão aberta aos aspectos legais e institucionais da vida política quanto àqueles que transcendem o legal e o institucional; ela é igualmente livre da estreiteza do advogado, da brutalidade do técnico, dos devaneios do visionário e da baixeza do oportunista. Ela reproduz, e eleva à sua perfeição, a flexibilidade magnânima do verdadeiro homem de Estado, que esmaga o insolente e poupa o vencido. Ela é livre de todo fanatismo porque sabe que o mal não pode ser erradicado e, portanto, que as expectativas em relação à política devem ser moderadas. O espírito que a anima deve ser descrito como de serenidade ou sobriedade sublime. [“O Que é Filosofia Política?”, p. 45-6]

A primeira grande onda do pensamento político moderno iniciou-se com Maquiavel (1469-1527), que empreendeu o primeiro forte ataque a esse legado. Para ele, não é o bem comum que deve ser guiado pela virtude, mas a virtude que deve ser definida a partir do que é bom para uma determinada sociedade.

A conclusão de que Maquiavel apresentou à humanidade aspectos da realidade humana que os clássicos, em sua ingenuidade e ignorância da verdade factual, desconsideraram, é um erro, alerta Strauss. Pelo contrário, o que há em Maquiavel é “uma espantosa contração do horizonte [que] se apresenta como uma espantosa ampliação do horizonte”.

A segunda onda da modernidade brotou a partir de Rousseau (1712-1778), um aparente retorno ao pré-moderno, mas que na verdade levou à forma mais radical de modernidade – basicamente porque Rousseau foi até a cidade clássica, sim, mas a interpretou a partir do esquema de Hobbes, e acabou chegando ao conceito de vontade geral da sociedade, um confronto certo com o direito natural. O conceito seria radicalizado pelo idealismo alemão.

Por fim, o já citado Nietzsche (1844-1900) fechou as ondas da modernidade, removendo do pedestal o homem sonhador de Rousseau e colocando em seu lugar o homem criador que segue sua própria lei e que inspiraria outros homens criadores a fundarem uma nobreza pronta para pôr rédeas na humanidade. Nesta terceira onda, a natureza foi completamente dessacralizada, e a experiência humana passou a ser vista como uma tragédia que tem que ser encarada de frente. Strauss compreende que há enormes diferenças entre Nietzsche e Marx; ainda assim, chama a atenção para o fato de que, para ambos, o estágio final da humanidade será atingido quando o homem for senhor do seu próprio destino.

É que o período que vai de Rousseau a Nietzsche marca a descoberta do sentido histórico. O ensaio straussiano “O Direito Natural e a Abordagem Histórica”, apesar de ter apenas vinte e poucas páginas, é uma das investidas mais demolidoras que já se fez contra o historicismo. (Para os padrões do meu ainda parco acúmulo de leitura, é o ataque mais consistente depois do clássico de Popper.)

Se Rousseau se preparou para passar por cima do direito natural, o historicismo pretendeu enterrá-lo de vez. Não é possível que exista tal coisa como direito natural, decretaram os historicistas, porque não existe uma única ideia que não seja histórica, contextual, e portanto jamais extrapolável para todos os tempos. Embora tenha surgido como um corpus conservador para criticar as ideias universalistas que levaram à Revolução Francesa, o historicismo acabou criando seu próprio dogma secular – “uma forma muito mais extrema da mundanidade moderna do que havia sido o radicalismo francês do século XVIII”, diz Strauss.

Assim, a história foi concebida como o único meio de obter conhecimento empírico e, portanto, sólido do que é verdadeiramente humano, do homem enquanto homem, da sua grandeza e miséria. Uma vez que todas as atividades humanas partem do e voltam para o homem, o estudo empírico da humanidade parecia justificado ao reivindicar uma dignidade mais alta que todos os outros estudos da realidade. A história – a história divorciada de todas as suposições duvidosas ou metafísicas – tornou-se a autoridade maior. [p. 115-6]

“Mas a histórica provou-se radicalmente incapaz de cumprir o que foi prometido pela escola histórica”, ironiza o autor. Não se pôde honestamente inferir normas a partir da história, e o único resultado filosófico objetivo do historicismo é que acabamos por ficar sem qualquer norma objetiva; nenhuma norma que tornasse possível distinguir o bom do mau. Sentencia Strauss: “o historicismo culminou em niilismo”. Não é de espantar que a valorização historicista do local e do temporal (das “almas coletivas” étnicas) contra o universal, somada à cegueira moral, tenha levado a flagelos já sobejamente conhecidos.

Ao invés de comprar a tese de que a modernidade conseguiu enterrar as questões fundamentais estudadas pela filosofia clássica, é preciso reconhecer que essas questões permanecem atuais e nos voltarmos para elas. Afinal de contas, são angústias que acompanharam a humanidade em todas as épocas, por mais que se queira escondê-las ou deformá-las. Aristóteles refletiu, por exemplo, sobre se os avanços técnicos deveriam estar sujeitos a rigorosos controles morais e políticos. O que faltou a quem considerou essa e outras questões clássicas superadas foi simplesmente capacidade para identificar os temas verdadeiramente fundamentais para a humanidade.

2.

O que guia a filosofia política clássica é a questão do melhor regime – um arranjo social virtuoso liderado por homens idem.

Para os gregos, filosofia e ciência eram a mesma coisa, e não as esferas separadas que seriam em nossa era. Isso significa que o que podemos chamar de “ciência política” em Aristóteles, e em outros, é a mesma coisa de filosofia política. Ou seja: a análise de um regime político era inseparável do julgamento moral do mesmo regime, a partir do quanto ele se aproximava ou se distanciava do ideal de justiça, moderação etc.

Como Strauss observa, os clássicos tinham plena noção de que esse regime ideal não poderia servir para todos os locais em todos tempos. No entanto, todo e qualquer regime político existente deveria ser julgado a partir de uma comparação com o regime ideal. Muito diferente da ideia de Hegel de que não cabe à filosofia dizer qual deve ser a natureza de um Estado, devendo ela, pelo contrário, compreender o Estado em seu tempo como uma construção racional e suficiente.

Então era bastante claro para Leo Strauss que a crise, política e mais ampla, da civilização ocidental teria que ser superada por um retorno aos clássicos gregos. Mas não apenas aos gregos. Porque, conforme já aludimos, a outra fonte moral do Ocidente é a Bíblia.

A moral grega e a moral judaico-cristã têm muitos pontos em comum. Strauss aponta no ensaio “Progresso ou Retorno?” que o tratamento dispensado por Platão, nas Leis, à pederastia quase parece saído do próprio Moisés. O mesmo ocorre com o tratamento dado por Aristóteles ao adultério, assassinato e roubo. Ambas as morais sustentam que a família patriarcal, monogâmica, é a base da moralidade, formando células que proporcionam predominância aos homens, especialmente aos homens mais velhos. Tanto a Bíblia quanto os clássicos recusam a idolatria de qualquer ser humano, e defendem que seguir a lei divina é a maneira certa de uma sociedade se comportar.

Mas neste último ponto nos deparamos com um problema. A lei divina, para os gregos, era essencial, mas como ponto de partida do percurso filosófico de busca pelas coisas primeiras, sendo abandonada depois e dando lugar a uma lei natural. Strauss resume a encruzilhada de maneira brilhante: o que é necessário para os gregos é “vida do entendimento autônomo”; para a Bíblia, a “vida de amor obediente”. “O poder da exigência moral é diminuído na filosofia grega porque na filosofia grega essa exigência não está apoiada em promessas divinas. (…) o princípio de sua sabedoria não é, como na Bíblia, o temor de Deus, mas o sentimento de admiração (ou maravilhamento) (…)”.

Por que, então, essa importante divergência entre as morais grega e bíblica não as impossibilita de ser conjuntamente tanto a base do Ocidente quanto a saída para a atual crise da civilização? Porque, para citar uma frase de Strauss, “esse próprio desacordo pressupõe um acordo” – um acordo, nada menos, em se opor a disposições que seriam chave para a modernidade. Bíblia e gregos têm discordâncias sobre o tempero que deve ser adicionado à moralidade, mas concordam sobre o que é moralidade, seu conteúdo e sua importância.

E mais importante:

(…) o cerne, o fulcro da história intelectual do Ocidente, da história espiritual do Ocidente, quase se poderia dizer, é o conflito entre as noções bíblica e filosófica de vida boa.

(…) A vida mesma da civilização ocidental é a vida entre dois códigos, uma tensão fundamental. Não há, portanto, nenhuma razão inerente na civilização ocidental, na sua constituição fundamental, que justifique ela desistir da vida. Mas esse pensamento reconfortante se justifica apenas se vivermos essa vida, isto é, se vivermos esse conflito. Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, ou ainda um terceiro que esteja além do conflito entre filosofia e teologia, ou uma síntese dos dois. Mas cada um de nós pode e deve ser um ou outro, isto é, ou o filósofo aberto ao questionamento proposto pela teologia ou o teólogo aberto ao questionamento proposto pela filosofia. [p. 276]

Isso é mais que um desafio; é um chamado, com implicações práticas para o mundo contemporâneo, implicações que são o objeto de  Strauss nos dois últimos textos da Introdução… – “O Que é Educação Liberal?” e “Educação Liberal e Responsabilidade”.

Strauss é um elitista. Antes que alguém se escandalize com isso, basta lembrar que a sobrevivência de todo e qualquer regime depende da força de sua elite, seja a Nomenklatura nos países que aboliram o capitalismo de mercado, seja o clero de uma teocracia, seja os barões de uma oligarquia.

Na democracia liberal, a elite econômica não pode ser a única a ditar regras, caso contrário não se trata mais de uma democracia liberal. Este regime, escreve Strauss em outro livro, citado por Hilail Gildin na introdução deste volume, “chega mais perto daquilo que os clássicos exigiam do que qualquer outra alternativa que seja viável na nossa época”. Mas seu vigor depende de uma elite intelectual que faça frente tanto aos riscos da cultura de massa quanto aos (citando Weber) “especialistas sem visão e sem espírito e voluptuários sem coração”.

“A educação liberal é o esforço necessário para fundar uma aristocracia no interior da sociedade democrática de massa”, escreve Strauss sem meias palavras. “Ela leva aqueles membros da democracia de massa que têm ouvidos para ouvir a recordar-se da grandeza humana”. Aqui está a elite straussiana. Sua classe econômica não é determinante, como não o são suas preferências religiosas. Desde que você tenha disposição para superar “o barulho, a correria, a desatenção e a vulgaridade da Feira das Vaidades dos intelectuais e seus inimigos”; coragem para encarar as opiniões da moda como possivelmente pertencentes à lixeira; e humildade para se permitir o ensinamento dos textos clássicos e bíblicos – então estará a um passo de pertencer àquela indispensável aristocracia.

De fato, a democracia liberal, embora deva sua base política às primeiras duas grandes ondas da modernidade (de Maquiavel e Rousseau), possui uma moral que repousa no mundo pré-moderno. Não causa espanto que, como lembra Strauss, os fundadores dos Estados Unidos reunidos no Federalist tenham assinando seus textos como “Publius”, remetendo à república romana e também à herança grega. Os Pais Fundadores na América do Norte, muito antes de nós, já perdiam o sono com a delicada questão de se era possível uma sociedade de grandes proporções ser livre – boa, moderada, sábia. Eles sabiam que os valores clássicos deveriam ser o ponto de referência de sua sociedade, e que se fossem negligenciados, a própria liberdade estaria com os dias contados.

Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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