Os filmes de Antonioni têm uma face voltada para a realidade externa, e outra para a realidade interna.
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Antonioni e a atriz Maria Schneider (1975)
“Não seria terrível ser cego?”, indaga a personagem de Maria Schneider em seu último diálogo com David Locke (Jack Nicholson) no filme O Passageiro – Profissão Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni. Ele conta, então, a história de um conhecido seu, cego, que fizera uma cirurgia aos quarenta anos para recuperar a visão. Apesar de no início fascinar-se com as cores e paisagens, o mundo acabou se revelando a ele mais pobre e feio do que o imaginara, levando-o a viver na escuridão, até suicidar-se.
A este diálogo se segue o célebre plano-sequência de quase sete minutos no qual o diretor enquadra a janela por dentro do quarto de hotel onde está o protagonista, revelando fatos corriqueiros no pátio e aproximando-se deles enquanto, atrás de nós, Locke morre. Alguns críticos reconhecem, não sem razão, a intenção de Antonioni de mostrar-nos, aqui, a impotência do cinema em nos revelar o real, pois, apesar de enquadrá-lo, perde elementos essenciais. Contudo, não estaria Antonioni, ao nos apresentar um dos planos mais maravilhosos de sua cinematografia logo depois deste diálogo, identificando no cinema – assim como na arte e na poesia – a solução para a escuridão e feiura do mundo?
Este diálogo revela, ainda, outro elemento essencial para mergulharmos nos filmes de Antonioni: o fato de estarmos destinados à cegueira. Assim como a câmera, nosso olhar é incapaz de enxergar a realidade por completo, e este pode ser o motivo de tanta dificuldade de comunicação entre as pessoas, da solidão e dos desconfortos da existência.
Durante o mês de maio, São Paulo recebeu uma retrospectiva da filmografia de Antonioni, financiada pelo Ministério da Cultura e o Banco do Brasil, denominada Aventura Antonioni. O público paulistano teve a oportunidade de assistir a todos os filmes exibidos em 35mm. Certamente, uma aventura, pois o espectador de Michelangelo Antonioni deve estar disposto a oscilar entre o fascínio pela sua linguagem e o incômodo de submeter-se a um processo de autoconsciência frente à realidade exposta por ele.
Esta realidade, entretanto, não é a mesma daquela apresentada pelos diretores do neorrealismo italiano, como Roberto Rossellini e Vittorio de Sicca. Antonioni flertou com esta escola cinematográfica em seus primeiros curtas documentais. Em Gente do Pó (1947), por exemplo, acompanha uma família de pescadores do Rio Pó, todos sem nome, em seu dia a dia. Durante o fascismo, era proibido dedicar-se, em criações artísticas, aos mais pobres. O fim do regime gerou uma grande necessidade de um olhar mais detido sobre as circunstâncias imediatas e levou muitos diretores a filmar a realidade social e econômica de uma Itália saída de um regime autoritário e da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, desde seu primeiro longa-metragem, Crimes da Alma (1950), os filmes de Antonioni passam a ter duas faces, uma voltada para a realidade externa, e outra para a realidade interna. Ele confessou não se interessar muito em analisar a relação indivíduo-sociedade, mas em ver o que havia sobrado dentro desses personagens saídos de uma guerra e de um pós-guerra tão violentos, e como eles haviam apreendido essas experiências.
Segundo o crítico Alberto Moravia, Antonioni é como um pássaro solitário que só canta “uma única, mas profunda nota: a aridez das relações, a brutalidade da vida moderna, a desolação do destino humano”. Dois temas permeiam toda sua obra e nos ajudam a compreender melhor esta – talvez não tão única – nota, a saber, a prisão de si mesmo e a incomunicabilidade.
A prisão de si mesmo é o tema principal de O Grito (1957). Aldo (Steve Cochran) é abandonado por sua amante, Irma (Alida Valli) e parte em uma perambulação por diferentes cidades da Itália, vivenciando trabalhos e romances efêmeros. Apesar de sua incessante tentativa de encontrar um ponto de encontro com outras pessoas e com um lugar, seus esforços são em vão, pois Aldo está isolado em sua angústia e solidão. Independente de onde ele vá, carrega consigo seus tormentos, e estes o guiam para o único lugar possível: de volta à cidade onde vivia com Irma. Ali, ele a vê cuidando de seu novo filho e, movido pelo sofrimento, dirige-se à torre da fábrica onde trabalhava, mas Irma o segue. Quando ele chega ao topo, olha para baixo, vê sua amada, balança um pouco e, enfim, cai. Este final revela a irrelevância em explicitar se foi um suicídio ou um acidente e chama a atenção ao grito de Irma durante a queda, que exterioriza o grito contido dentro do personagem durante toda sua jornada a esmo.
Quase vinte anos depois, em O Passageiro – Profissão Repórter, um Antonioni menos vinculado a elementos narrativos nos apresenta David Locke, repórter frustrado com a impossibilidade de conhecer o real. Ele decide, então, forjar sua morte e assumir a identidade de David Robertson (Charles Mulvehill), um traficante de armas que morrera subitamente no mesmo hotel onde Locke estava hospedado, em uma vila no meio do inóspito deserto do Saara. Diferentemente de Aldo, os motivos por que Locke opta por uma perambulação para fugir do tédio de si mesmo são apenas sugeridos: um casamento fracassado e a tentativa inútil de decifrar a guerra que estava cobrindo. Apenas assumir a personalidade de um outro, porém, não é o suficiente para afastar-se de si mesmo, da solidão e das hostilidades do mundo. A única solução para isso é a morte, e é o inevitável final ao qual David – assim como todos nós – está destinado.
Os filmes A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962) compõem a chamada trilogia da incomunicabilidade, embora Antonioni não gostasse dessa designação. O ano de 1960 teve dois marcos que alterariam a história do cinema: em Psicose, Alfred Hitchcock assassina sua protagonista no primeiro terço do filme; em A Aventura, a protagonista desaparece no início e, apesar de ser procurada por Claudia (Monica Vitti), sua melhor amiga, e Sandro (Gabrielle Ferzetti), seu amante, os dois embarcam em um romance e passam a desejar não mais encontrá-la. O desaparecimento se torna um elemento secundário frente à dificuldade de Claudia e Sandro em se comunicarem, ainda que tentem. O elemento comum desses marcos – encontrado na filmografia de Antonioni dali em diante – é a quebra de expectativa dos fatos narrativos e dos “valores”. No fim, o mistério do desaparecimento não é desvendado e perde sua relevância, pois a conotação do filme – assim como dos outros dois da trilogia – é o nosso espanto diante dos acontecimentos do mundo sobre os quais não temos controle e com os quais precisamos, sozinhos, lidar.
No ensaio A Vigilância do Desejo (1980), Roland Barthes retoma a distinção de Nietzsche entre sacerdotes e artistas, para enquadrar Antonioni entre estes: “Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião, mas e artistas? […] O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade. Quantos crimes a humanidade já cometeu em nome da Verdade!”. Talvez a atualidade da filmografia de Antonioni, dez anos depois de sua morte, se justifique justamente por ele tratar de sentimentos, em detrimento de repetições ideológicas ou críticas sociais pesadas.
Um argumento como o de Zabriskie Point (1970) poderia ser facilmente reduzido a uma crítica à violência policial e ao American way of life – ou ao discurso maniqueísta dos militantes de esquerda, já que, nas palavras da protagonista, “há milhares de lados para tudo, não apenas heróis e vilões”. Antonioni, porém, transcende ao fazer um filme sobre dois indivíduos e sua relação com os Estados Unidos dos anos 60, expondo os valores e o funcionamento de uma sociedade através do modo como as pessoas se relacionam com ela. Como o próprio diretor afirma, Zabriskie Point é apenas revolucionário no âmbito de uma dialética espiritual. Os traços do diretor neorrealista, todavia, estão presentes: os protagonistas Dania e Mark levam os nomes de seus atores, que originalmente eram uma dançarina e um carpinteiro.
Os filmes são, então, sobre os personagens e os sentimentos que os motivam em seus caminhos. Em entrevistas, Antonioni dizia não saber previamente o tema de suas produções e qual seria o resultado final, pois durante as filmagens surgem novos elementos, assim como a revelação da película expõe coisas antes despercebidas. Uma vez que o material bruto estava em suas mãos, ele iniciava o processo de montagem – para ele tão importante quanto o de filmagem –, no qual o filme começava a tomar forma.
Esse método remete-nos a Thomas (David Hemmings) de Blow-Up (1966). Ao analisar fotos tiradas de um casal em um parque, novos elementos se revelam lentamente ao fotógrafo: primeiro, um homem com uma arma apontada para o casal o leva a acreditar que ele prevenira um assassinato de ocorrer; depois, com um olhar mais atento, ele enxerga também um corpo. À noite, vai ao parque, vê o cadáver. No dia seguinte, o corpo não está mais lá. Observamos aqui como o personagem – cujo compromisso com a realidade era a essência de sua profissão – vai se desvinculando dos fatos, pois ele aceita o caráter indecifrável do real e desiste de investigar o crime. Isso culmina na cena final, na qual o protagonista assiste a um jogo de tênis imaginário, sem raquetes e sem bolinhas, de um grupo de estudantes fantasiados e com os rostos pintados de branco. Ao isolarem a bolinha, olham para Thomas na esperança que ele a busque, e, como se em um salto do plano real para o plano poético, ele o faz.
Antonioni afirma: “Para mim, a história é importante, claro; mas o que mais importa são as imagens.”
Carolina Starzynski
Formada em Cinema pela FAAP (SP).
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