Existem muitas tentativas de definir a natureza do poético, nenhuma delas conclusiva.
Quem me conhece sabe que sou uma pessoa de ideias fixas. Uma delas é a controversa relação entre letra de música e poesia, sobre a qual já escrevi algumas vezes. No ano passado, o assunto voltou à tona devido ao Prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan. Aproveito o espaço para retornar à discussão.
Acredito, sim, que letra de música é uma forma de poesia. Primeiro, por uma razão histórica: dizem os especialistas — tanto pelos registros históricos quanto pelo estudo antropológico das comunidades tradicionais — que o discurso poético surge primeiro como palavra cantada, separando-se da música numa etapa posterior. Uma boa referência a respeito é o livro Na madrugada das formas poéticas, de Segismundo Spina. Se excluirmos da definição de poesia todas as obras inicialmente concebidas para o canto, teríamos de retirar de nossos compêndios a épica de Homero, assim como a lírica grega do período clássico, de autores como Safo, Píndaro e Anacreonte; excluiríamos, também, os Salmos do Velho Testamento, certamente os textos de maior intensidade poética da Bíblia; por fim, para não me alongar, seriam excluídas as canções dos trovadores, como Arnaut Daniel, descrito por Dante Alighieri como “il miglior fabbro del parlare materno”.
Quando estabelecemos o conceito poesia, esperamos, com ele, abarcar todo o universo de fenômenos que dizem respeito à experiência estética do homem com a linguagem verbal e, ao mesmo tempo, dar conta daquilo o que a tradição define como tal. Ao suprimirmos a palavra cantada do âmbito poético, descartamos parte dos fenômenos que esperávamos descrever a princípio. Ou seja: quando um leitor contemporâneo depara com versos de Safo e se comove com eles (mesmo que sua música tenha se perdido para sempre), intuitivamente sabe estar diante de um verdadeiro poema — que é o termo, aliás, pelo qual tais versos são reconhecidos há mais de dois milênios. Se, entretanto, determinamos que qualquer texto de natureza estética concebido em unidade indissociável com a música não é poesia, criamos uma categoria que exclui parte daquilo o que deveria explicar, como os versos de Safo.
Outra questão a ser considerada é que, nessa discussão do estatuto poético da letra de música, parece haver um juízo de valor embutido no conceito poesia. Quando se diz que o texto de uma canção não é um poema, está-se, na verdade, afirmando que existe uma superioridade estética deste último sobre aquele. O problema é que, assim como acontece com arte, a categoria poesia não engloba apenas obras de elevada qualidade estética. Um mau poema ainda é um poema, isto é, um exemplo particular da categoria geral poesia. Mesmo que fosse uma verdade evidente e indiscutível que todo poema, necessariamente, possui qualidades estéticas superiores a qualquer letra de música, ainda assim não bastaria para retirar a palavra cantada do âmbito do poético. E mais: acaso seria muito descabido imaginar que as canções mais sofisticadas de Chico Buarque são poeticamente superiores aos poemas mais circunstanciais de Camões? Ou será que os poemas circunstanciais de Camões também não mereceriam ser chamados de poesia?
Existem muitas tentativas de definir a natureza do poético, nenhuma delas conclusiva. Para colocar a questão em termos mais precisos, adotarei a sintética fórmula de Ezra Pound, encontrada em ABC da literatura: “Literatura é linguagem carregada de significado”; assim como: “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Por sua vez, poesia “é a mais condensada forma de expressão verbal”, tanto que em alemão o verbo dichten, do qual deriva dichtung (“poesia”), possui “concentrar” como uma de suas acepções. Podemos entender o que Pound quer dizer com “carregada de sentido” e “condensada forma de expressão verbal” remetendo tais definições ao conceito de polissemia, que se refere à possibilidade de um mesmo termo receber diferentes significados conforme o contexto de sua enunciação. A polissemia é inerente à linguagem verbal, contudo, na maioria das ocasiões, limitamos seu uso para evitar ambiguidade. Na literatura, por outro lado, pode-se explorar ao máximo as virtualidades semânticas das palavras.
A definição de Pound, portanto, relaciona a qualidade estética de um texto literário diretamente à sua carga polissêmica, isto é, à sua capacidade de assumir vários significados, ensejando diversas leituras. Uma boa obra literária é aquela sobre a qual é sempre possível dizer algo novo, pois sua riqueza parece inesgotável. É isso o que distinguiria a “grande literatura” (no que pese o elitismo da expressão) de outras manifestações literárias não tão elevadas. Se a poesia “é a mais condensada forma de expressão verbal”, então deduzimos ser ela que, com maior frequência, atinge aquela “grandeza” exigida por Pound.
Para mim, o problema que suscitou este ensaio não é se letra de música pode ou não ser definida como poesia, mas se tais letras, consideradas em sua dimensão poética, chegam a ser grande literatura. Obviamente, a maioria dos poemas escritos não chegam a sê-lo. Mesmo autores talentosos possuirão muita coisa que não se enquadra em tal nível de exigência, mas que, diluída no conjunto da obra, recebe alguma dignidade estética. Parece-me fora de questão que diversos textos escritos tendo em vista a execução musical já atingiram esse nível; basta revisitar os nomes citados no segundo parágrafo deste ensaio para constatá-lo. Contudo, não é exatamente esse o problema que se tem em mente quando se discute a poeticidade das letras de música. O verdadeiro problema é o seguinte: podem as letras do cancioneiro popular — seja o brasileiro, seja o internacional — ser consideradas grande literatura? Eis a questão afinal, geralmente ocultada por uma discussão teórica que faz tábula rasa do contexto no qual ela se apresenta e dos casos concretos que a fomentam.
A resposta a esse problema não me parece difícil. O que se verifica na grande maioria das letras das canções populares é a manifestação ingênua de sentimentos, sem grande elaboração poética (geralmente lançando mão de lugares-comuns há muito tempo estabelecidos pela tradição), manifestando uma forte dependência quanto aos aspectos propriamente musicais, assim como a determinadas formas de sociabilidade, sobretudo naqueles estilos que se prestam à dança. Em suma, tais letras, desligadas de sua melodia e deslocadas do contexto ao qual se destinam, soam como precários poemas, um tanto pueris, com enorme dificuldade de se manterem de pé numa leitura silenciosa.
Contudo, é inegável que, em quase todos os aspectos, houve uma evolução da canção popular ao longo do século XX: da sofisticação musical do jazz ao enriquecimento poético na música folk contemporânea. No Brasil, o ponto de inflexão parece ter sido — em ambas as direções — a bossa nova, mas, desde antes disso, letristas de alta qualidade já vinham expandindo os limites da expressão poética, como Noel Rosa, Adoniran Barbosa, Dorival Caymmi, entre outros. Tal avanço no domínio poético deu-se em quatro frentes: no desenvolvimento das potencialidades inerentes à canção, ligadas às especificidades do canto; à autoconsciência que, a partir de determinado ponto, a cultura popular atinge, permitindo o aproveitamento crítico de seus lugares-comuns; no intercâmbio com a cultura livresca, cujo fiador, no Brasil, foi Vinícius de Moraes; na constituição — pelos motivos anteriormente elencados — de uma tradição de letras cada vez mais elaboradas, que passa a servir de referência às gerações posteriores.
Tal conjunção de fatores parece ter ocorrido na segundo metade da década de 1960 no Brasil, favorecendo a geração de herdeiros da bossa nova, os compositores da moderna música popular brasileira, conhecida como MPB. Na década seguinte, alguns desses compositores atingiram a maturidade poética, legando-nos letras memoráveis, o que continuaria a acontecer nas próximas décadas. Chico Buarque é o primeiro a vir à mente quando se trata de nossos “poetas da MPB”: além do construtivismo de “Construção”, canções que merecem destaque é a épica “Geni e o zepelim”, “Cotidiano” (de conteúdo simples, mas um primor de equilíbrio entre paralelismo e variabilidade, entre estrutura e dinâmica) e, uma de minhas preferidas, “Bom conselho”, subvertendo provérbios e ditos populares. De sua parceria com Edu Lobo, temos também ótimas letras como “A história de Lilly Braun” e “Ciranda da bailarina” (ambas do espetáculo musical baseado no poema “O grande circo místico”, de Jorge de Lima), além de “Ode aos ratos”.
Outro nome sempre lembrado é o de Caetano Veloso. Uma de suas letras mais aclamadas é “O quereres” (que já analisei aqui), com seu caleidoscópio barroco de figuras de linguagem. Eu destacaria, ainda, “Trem das cores”, “Força estranha, “Reconvexo” e, numa escolha bastante pessoal, “Giulietta Masina”, com seu impressionante último verso: “Aquela cara é o coração de Jesus”, que vale um poema inteiro. Contudo, neste ensaio, pretendo utilizar os versos de Gilberto Gil para embasar meus argumentos, artista cujas letras costumam ser — injustamente — preteridas diante das de seus colegas citados, com os quais forma a “trinca de ouro” dos compositores da MPB.
Começo falando de alguns de meus versos favoritos de Gil. Não sou um cara religioso e não tenho qualquer propensão ao metafísico. Mesmo que, entre meus poetas de cabeceira, estejam nomes como T. S. Eliot, Murilo Mendes e Jorge de Lima — que se enveredaram pela seara da poesia cristã —, os versos que melhor me sugeriram a ideia da contrição da alma diante do absoluto que seria a divindade encontram-se em “Se eu quiser falar com Deus”. Em dado momento, o eu lírico diz:
Se eu quiser falar com Deus,
(…)
Tenho que virar um cão,
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos dos meus sonhos;
A imagem é poderosa e sugere o peso da transcendência que impõe ao indivíduo uma humildade irrestrita, um total apagamento de qualquer vestígio de soberba, ambição e egotismo. Temos aqui um belo exemplo do que T. S. Eliot, num ensaio sobre Hamlet (“Hamlet and his problems”), chama de “correlato objetivo” da emoção, definido como “um conjunto de objetos, uma situação, uma cadeia de acontecimentos que serão a fórmula de uma emoção particular”, de modo que, “quando os fatos externos, que devem convergir para a experiência sensorial, são oferecidos, a emoção é imediatamente evocada”. É tal correlato que dá à poesia seu poder de sugestão, fazendo com que um descrente como eu possa desfrutar de versos de teor místico. Algo semelhante, mas relacionado ao culto profano da mulher amada, pode-se encontrar na letra de outra canção, de Jacques Brel, a famosíssima “Ne me quitte pas”: “Laisse-moi devenir/ L’ombre de ton ombre,/ L’ombre de ta main,/ L’ombre de ton chien” (“Deixa-me vir a ser/ A sombra de tua sombra,/ A sombra de tua mão,/ A sombra de teu cão”).
Há algo mais para ser observado na passagem da canção de Gil. Entre o terceiro e o quarto versos citados, há um enjambement ou cavalgamento, ou seja: a interrupção de uma unidade sintática ao final de um verso e sua continuidade no seguinte: “Tenho que lamber o chão/ Dos palácios…”. Quando se ouve a música sendo cantada, sobretudo na interpretação de Elis Regina, percebe-se que a cesura final instaura uma pausa dramática, que vem acompanhada de uma subida do tom emocional, aumentando a tensão. Tudo isso possibilitado por um recurso poético, raramente utilizado nas canções populares. Neste caso, não é a melodia que empresta expressividade ao verso, mas o verso, com sua construção sintática, que determina a intencionalidade do canto.
Além do mais, Gilberto Gil é um virtuose no uso da função poética da linguagem, que consiste na ênfase dada aos elementos constitutivos de uma mensagem, na maneira como esta foi construída. Vejamos os primeiros versos de “Refazenda”:
Abacateiro, acataremos teu ato,
Nós também somos do mato,
Como o pato e o leão.
Entre “abacateiro” e “acataremos”, há a repetição de três consoantes, c, t e r, o que chamamos de aliteração. A aliteração do t se estende ainda para as palavras seguintes: “(…) acataremos teu ato” (eu poderia destacar que tanto c quanto t são consoantes oclusivas, mas talvez seja melhor não entrar em tal nível de tecnicidade). Perceba-se, também, a reincidência da vogal a, com destaque para o início das palavras: “Abacateiro, acataremos teu ato”, o que caracteriza um caso de assonância (repetição de vogal). Contudo, essa não é a única assonância verificada, pois é possível observar que, das quatro palavras do verso, três delas têm a sílaba tônica composta pela vogal e: “Abacateiro, acataremos teu ato”. Trata-se de um verso magnético, que praticamente dita a cadência da canção inteira. Não é por acaso que, conforme o testemunho do próprio Gil, a letra veio antes da melodia e foi com base nela que o ritmo da canção foi construído.
Caso sigamos adiante, encontraremos ainda as rimas em -ato (“ato”, “mato” e “pato”), o desdobramento da assonância com a vogal e na sílaba tônica de “também”, assim como uma assonância em o: “Nós também somos do mato/ Como o pato e o leão”, e o paralelismo de “somos”/“como”. Nem mesmo a famigerada paronomásia, que passa por índice maior de poeticidade em determinadas vertentes da poesia contemporânea, estão ausentes na canção. Na segunda estrofe, achamos:
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate,
Amanhã será tomate
E anoitecerá mamão.
Em que “anoitecerá mamão” soa de maneira idêntica a “a noite será mamão”. Aliás, quando se trata de paronomásias, difícil superar a última estrofe de “Metáfora”:
Deixe a meta do poeta, não discuta;
Deixe a sua meta fora da disputa;
Meta dentro e fora, lata absoluta;
Deixe-a simplesmente metáfora.
As paronomásias aqui são as seguintes: “discuta”/“disputa”, “meta” (substantivo)/“meta” (verbo) e “meta fora”/“metáfora”. A propósito, a canção “Metáfora” é de natureza metalinguística e apresenta um elevado grau de consciência poética, tanto que costumo utilizá-la para explicar polissemia para meus alunos.
Outros exemplos das virtudes poéticas das letras de Gilberto Gil poderiam ser dados. Inclusive, acho que valeria a pena realizar uma análise estrutural de “Oriente” para demonstrar o caso de uma letra que se sustenta numa leitura silenciosa, sem a melodia. Contudo, este ensaio já se mostra maior do que o razoável para um texto de internet e é chegada a hora da conclusão. Talvez volte ao assunto mais uma vez, abusando da boa vontade dos leitores.
A pergunta que ficou no ar foi: as letras do cancioneiro popular podem ser consideradas grande literatura? Não sei. Muitas, mesmo dentre as melhores, contam apenas com alguns versos de significativa intensidade poética e com uma ou duas estrofes mais interessantes. Porém, a verdade é que, em relação a muitos poemas (incluindo os de autores consagrados), não se pode esperar muito mais do que isso. A “grande literatura”, segundo a definição de Pound, exige um nível de excelência que não se atinge ordinariamente. Embora o poema escrito leve alguma vantagem sobre o poema a ser cantado, visto que os elementos poéticos deste muitas vezes — mas não necessariamente — aparecem subordinados aos elementos musicais, não tenho dúvidas de que algumas letras de nosso cancioneiro popular podem, sim, ser tomadas ao menos como “boa literatura”, caso seja preciso estabelecer algum juízo de valor.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
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