Se a população concorda com os pontos gerais das reformas previdenciária e trabalhista, como pode se posicionar contrária a elas?
Confesso que me surpreendi ao abrir os números da mais recente pesquisa Datafolha avaliando o apoio da população à reforma da previdência. Não pelo baixo apoio às mudanças propostas pelo governo, mas sim pelos 23% de apoio. Considero o número alto, dado o volume incomensurável de informações equivocadas – quando não mentiras bem colocadas – que vêm sendo difundidas pelas redes sociais e meios de comunicação dos mais diversos, incluindo fontes jornalísticas supostamente críveis.
Como costumeiro entre nossa opinião pública, tomamos eventos ocorrendo em países desenvolvidos como pertencentes a fenômenos que também nos atinge. Embora isso seja, em geral, exagerado, as alegações de que a pós-verdade – termo popularizado com a ascensão do populismo na Europa e EUA – também é realidade em terras brasileiras me parece apropriado. Ainda assim, a meu ver, nós convivemos com nossas fake news há muito mais tempo.
Tomemos como exemplo o Ministério Público, as Polícias Federal e Civil, e os Tribunais Superiores do Trabalho (TST), cujos edifícios ao redor do país estão cobertos por faixas anunciando a rejeição destes grupos às reformas trabalhista e previdenciária. Faz todo o sentido. Juízes e policiais estão hoje entre os principais beneficiados pelas regras atuais de aposentadoria, que permitem paridade no salário de servidores públicos após tempo mínimo de contribuição – o que significa proventos superiores a R$ 30 mil em diversos casos, aposentando ao redor dos 50 anos. Além disso, as regras atuais permitem acumulo de recebimentos, o que faz com que o estado brasileiro tenha de arcar com gastos individuais superiores a R$ 100 mil ao mês, de acordo com pesquisa dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo.
No tocante à reforma trabalhista, os defensores de causas ligadas ao trabalho, pensando em seus bolsos, deveriam mesmo entrar em pânico. A previsão de se priorizar acordos coletivos ou individuais, em contraposição à atual judicialização de tudo relacionado ao trabalho – uma indústria que lucra, anualmente, mais de R$ 10 bilhões e gera mais de 3 milhões de processos – com certeza vai diminuir o mercado dos que ganham em cima de disputas, da incerteza jurídica e do excessivo patriarcalismo nas relações do trabalho no Brasil, cujas regras datam da década de 40.
A aposentadoria de professores é outro caso. Abarcados por sindicatos com alto poder de mobilização, e cujas paralisações trazem dano imediato para as faixas de renda inferiores – onde deixar os filhos?, como ir para o trabalho? – estes vêm se aproveitando de seu poder de fogo para se estabelecerem como um dos grupelhos mais protegidos pelo estado brasileiro. Com regras de aposentadoria hoje extremamente generosas – a média entre professores se aproxima dos 50 anos – nossos mestres as justificam pelo enorme desgaste e estresse que a labuta em sala de aula impõe.
Argumento válido, mas que também se encaixa em quase qualquer outro trabalho: e os garis? E os motoristas de ônibus e caminhoneiros? E os funcionários do comércio, num país com o índice de roubos e assaltos a mão armada do Brasil?
Categorias como as do MP, PF e TST, como os últimos meses tão bem atestam, têm, através de seus sindicatos, um potencial imenso de confundir e influenciar a população. Ainda que tenham seus privilégios custeados pela população em seu total, de forma altamente injusta e regressiva do ponto de vista distributivo (ou seja, pobres subsidiando diretamente salários de ricos), a áurea de autoridade e legitimidade técnica conferida institucionalmente a juízes, inspetores, policiais e investigadores acabam dando credibilidade a suas acusações contra as reforma trabalhista e da previdência, aos olhos do cidadão não privilegiado.
Nada mais mentiroso, considerando que o principal ponto da reforma previdenciária, em sua proposta original, é corrigir distorções e unificar regimes. Mesmo nas diversas alterações feitas nos últimos dias pelo relator na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, as mudanças ainda preservam esta ideia inicial, de convergir regimes – já seria um ganho imenso passar da situação atual, com mais de 90 regimes diferentes, para uma idade mínima única para a maior parte dos setores, com regimes diferenciados apenas para rurais, professores e policiais.
Em suma, os regimes atuais que regem o trabalho e a previdência pública do Brasil são extremamente injustos, penalizando os mais pobres, por meio da transferência forçada de recursos, maior desemprego e menor geração de oportunidades para mobilidade social e empreendedorismo.
Não me causa espanto, também, a maciça adesão da esquerda organizada aos movimentos corporativistas de defesa de privilégios; nossos partidos de esquerda são tradicionalmente ligados ao sindicalismo e às correntes trabalhistas, onde o estado deve operar em conluio com grupelhos. A visão é um desenvolvimento da luta de classes, numa vertente mais acomodatícia, institucionalizada via criação de diversos órgãos, estatais e um cipoal de leis e “benefícios trabalhistas”, após a ditadura de Getúlio Vargas.
Nisto se insere a criação do imposto sindical, da unicidade forçada na filiação e na supressão à liberdade de acordos individuais na seara do trabalho. A previdência social, ainda que criada sob justificativa de garantir subsistência para o trabalhador e aumentar a taxa de poupança e sustentar o crescimento do país, se tornaria uma desculpa para grupos organizados desviarem recursos públicos para si, de forma organizada e legítima – daí o tanto de regimes especiais.
A penetração do corporativismo nas instâncias tomadoras de decisão e, por extensão, na opinião pública do país é impressionante. Desde grupos de WhatsApp até sites feitos sob medida para a transmissão de informações falsas, o debate de políticas públicas no país está extremamente contaminado, com a população confundida por falsas alegações, em interesses pessoais travestidos de defesa de pobres e oprimidos. E o pior: num momento crítico, onde escolhas tomadas agora terão profundo impacto no futuro do país, podendo nos condenar mais uma vez a uma década (ou mais) perdida.
Vamos para um exemplo prático: antes do grosso das mobilizações contra a reforma da previdência – meticulosamente planejadas e conduzidas pelas centrais sindicais e associações ligadas a juízes e policiais, como a Ajufe – a CNI soltou uma pesquisa do Ibope mensurando o apoio da população à reforma, em suas medidas principais. O gráfico abaixo expõe os resultados principais detectados.
Estes números são ainda superiores quando observados por outra ótica. Quando perguntados se preferiam o aumento de impostos ou mudança nas regras de aposentadoria, 75% dos brasileiros prefeririam mudanças, o Ibope constatou, em maio de 2016 – antes de qualquer movimentação contra as alterações, já que as corporações sabiam que o governo Dilma Rousseff não iria levar a cabo as medidas (mesmo que a equipe econômica de Levy-Barbosa colocasse os itens como indispensáveis para o equilíbrio das contas públicas).
Mesmo na pesquisa mais recente do Datafolha, uma maioria consolidada da população apoia, em linhas gerais, os pontos principais da reforma – a igualdade de condições de aposentadoria, com o fim dos regimes especiais para polícias, professores e militares. O apoio potencial às medidas, portanto, é muito superior ao que o instituto de pesquisa verificou. Isto pode ser possivelmente resultado de um viés de seleção não aleatório, já que as perguntas feitas pelos pesquisadores foram diferentes.
Infelizmente, o Datafolha não mensurou o apoio à equiparação de regras entre servidores públicos e trabalhadores do setor privado, ou ao fim do regime especial para políticos, ou, ainda, ao fim da paridade de aposentadoria para servidores públicos – pontos importantes da reforma, e pouco divulgados ou conhecidos pelo público.
Tampouco fez perguntas sobre sustentabilidade ou aumento de impostos relacionados ao regime de previdência, algo especialmente sensível num país (jovem) que já gasta 57% do seu orçamento federal com aposentados. Se os entrevistados preferem que o país se torne um enorme Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul, por exemplo, que até hoje têm atrasado a folha de pagamentos de seus inativos, e possuem diversos serviços públicos interrompidos ou operando sem itens básicos ou profissionais suficientes.
O mesmo vale para a reforma trabalhista. Em pesquisa de janeiro deste ano, a CNI/Ibope verificou constatou que um mínimo de 60%, até 81%, dos entrevistados ao redor do país apoiavam as medidas previstas na reforma, item a item.
De qualquer maneira, o instituto expõe que as reformas são vistas pela população como perda de direitos, mesmo que os entrevistados concordem, em linhas gerais, com muitas das mudanças previstas – ou prefiram as consequências das alterações ao desastre de não realizá-las.
Isso não é estranho. É o resultado da propagação sem limites de mentiras e da produção de fatos inverídicos que assolam os meios de comunicação, em especial os instantâneos. É resultado direto das corporações atuando, e prova de quão perniciosas e maléficas estas são para um debate equilibrado e honesto sobre os problemas e necessidades do país.
Como alguns meses antes da discussão da reforma havia enorme grau de desconhecimento do assunto, a “informação” sobre as mudanças se deram num curto período de tempo, sobretudo com informações equivocadas, as pesquisas sugerem. Se a população sinaliza concordar com os pontos gerais das reformas previdenciária e trabalhista, como pode se posicionar contrária a elas?
Simples. Como todo populista sabe, frases chamativas, gritos de guerra e manchetes são muito mais aderentes à memória humana que fatos, números ou evidências.
Num país extremamente desigual, onde o estado historicamente age primeiramente para proteger grupos parasitários e garantir subsídios e proteções para grupos específicos, a ação organizada destes contra as reformas sugere que estamos indo no caminho certo – e que as mudanças, se efetivada, pode ensejar um caminho de maior justiça, liberdade e prosperidade para uma nação dilapidada.
Luiz Eduardo Peixoto
Graduando em economia na FEA-USP.