O documentário sobre Olavo de Carvalho apresenta a convergência de filosofia e vida numa consciência individual.
Um dos servos do Sumo Sacerdote, parente daquele a quem Pedro decepara a orelha, disse: “Não te vi no jardim com ele?”
João 18:26
1.
A análise mais superficial da simbologia que as grandes tradições filosóficas e religiosas desenvolveram em torno da imagem do jardim revela a riqueza de abordagens possíveis a quem se utiliza dela como égide de seu projeto.
Começando numa ordem pautada mais no fator teológico do que no cronológico dos relatos, temos o Jardim do Éden, o jardim fechado da intimidade matrimonial em Cantares, e os jardins murados dos Aquemênidas, cuja própria designação em persa antigo (pairidaēza) remete ao paraíso. Porém, paralelamente, temos também o jardim do Getsêmani, o local onde Cristo suou sangue pouco antes de sua agonia na cruz, e, por fim, o jardim de Epicuro, para onde indivíduos enfastiados se dirigiam em evasão ao mundo.
Em O jardim das aflições, filme de estreia do diretor pernambucano Josias Teófilo, todos esses matizes são de certo modo explorados com precisão e sem rupturas. Classificado como um documentário, trata-se de périplo pelas principais ideias presentes na obra homônima do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, publicada pela primeira vez em 1995, a partir de uma experiência malfadada – conforme relatada no livro – com uma palestra de José Américo Motta Pessanha, no MASP, que se revelou uma apologia, no sentido mais primário, do sistema materialista de Epicuro como o grande messias da restauração ética do Brasil e, subsequentemente, do Ocidente.
De maneira extremamente sucinta, o livro demonstra como o Império, sendo não uma teoria mas uma realidade, subjaz a todas as transformações e conflitos, mesmo aqueles mais renhidos e antitéticos entre si. Nas palavras do autor:
Tão forte é o magnetismo da ideia de Império, que as outras orbitam em torno dela como satélites, cuja oposição aparente mascara apenas o fato de girarem em torno de um mesmo eixo, de servirem a um mesmo propósito e senhor. Teocracia e monarquia, república e democracia, nacionalismo e internacionalismo, revolução e reação, capitalismo e socialismo, e todas aquelas outras bandeiras em nome das quais os homens matam e morrem, quando vistas já não desde o ponto de vista das motivações subjetivas que movem os seus mártires, mas desde a perspectiva dos resultados reais a que servem na escala dos séculos, já não são mais que os estandartes das divisões, batalhões e esquadrões em que se escande o descomunal exército empenhado num só objetivo: a formação do Império. Os pensadores políticos e religiosos do Ocidente não criaram uma só ideia que, mais dia menos dia, não servisse a incentivar ou a legitimar a luta por essa finalidade. Em toda a variedade de processos e mutações que constitui a história do Ocidente, essa é a única constante.
A partir dessa constante, pois, Olavo de Carvalho traça um amplo panorama sobre como elementos metafísicos, esotéricos, filosóficos e religiosos configuram-se como forças e dinâmicas que são eventualmente subsumidas ao Império: desde César, passando pelas tensões da autoridade eclesiástica e os rebentos dos bárbaros (em especial a cepa de Pepino de Herstal), culminando na “aristocracia e sacerdócio do Império americano”[1].
Por conseguinte, no filme de Josias, há uma linha axial que perpassa esses vários aspectos abordados no pensamento do filósofo, nomeadamente, a força da individualidade, ou mais precisamente da personalidade, e os aglomerados e multidões desumanizantes, encarnados principalmente no Leviatã (as forças políticas hostis à profundidade do espírito humano).
Se, como dizia Goethe, “o maior bem dos filhos desta terra é a personalidade”, então a obra do diretor e do filósofo convergem ambas, paradoxalmente, na ode e demonstração de suas respectivas singularidades.
2.
Uma das confusões mais estéreis no tocante ao repúdio público ao filme de Josias Teófilo – acerca do qual muito já se falou – é a confusão entre representação e endosso, como se estivéssemos simplesmente perante um simples transplante de um suporte midiático para o outro, no caso, entre as aulas e conferências de Olavo de Carvalho e a película do diretor. A questão, conforme sinalizada acima, é que, ao longo de toda a obra, Teófilo imprime sua marca, por vezes de maneira bastante sutil, ao mesmo tempo que se esforça em ressaltar a união entre vida e obra de Olavo de Carvalho.
As primeiras cenas do filme abrem-se com o apuro da Sinfonia 1º, de Jan Sibelius, que será retomada em vários outros momentos, mantendo o equilíbrio e ritmo do documentário, e emoldurando a paisagem e cotidiano de Colonial Heights, cidade do interior da Virgínia onde o filme foi produzido – equilíbrio que é reforçado pela fotografia apolínea de Daniel Aragão.
De fato, contrariando as expectativas oriundas da controvérsia em torno do filme, as reflexões de Olavo de Carvalho, os diálogos, as cenas do cotidiano, os panoramas filmados por drones (alguns um tanto longos) e as partes alinhavadas pelo voice-over demonstram um grande comedimento, afeita antes à serenidade do pensamento dialético do que à erística ou à polêmica (no sentido filosófico do termo).
O filme divide-se em três partes: Contra a tirania do coletivo; Como tornar-se o que se é; e As ideias dos náufragos, respectivamente. Todas estas seções do filme são pontuadas ora por leituras, ora por cenas de filmes que remetem a algum tema, símbolo ou ao ideário exposto pelo filósofo.
Na parte I, somos apresentados a uma breve explanação do pensamento político de Olavo de Carvalho. Desse modo, tece-se uma linha desde o Jardim das delícias, o Éden, até o Estado moderno totalitário, continuidade esta que se dá mediante o processo civilizacional que isola, controla e administra numa imitação grosseira do Criador.
O outro Jardim, consequência direta da transgressão cometida no primeiro, é o das Oliveiras, onde o eixo vertical entre a alma individual e Deus torna-se manifesto:
A religião do Império, condensação de cultos gregos, romanos e bárbaros, resumia-se, em última instância, no diálogo entre a comunidade humana e o cosmos. De um lado, o pensamento comum dos homens reunidos na ágora ou no foro; de outro, as forças cósmicas, ora propícias, ora adversas, que pesam sobre o destino humano e entre cujas exigências a comunidade deve abrir seu caminho. O cristianismo rompe esse mundo bidimensional, inaugurando a dimensão vertical da profundidade e da altura, inacessível quer à imaginação comunitária, quer às representações sensíveis das divindades cósmicas: de um lado, a profundidade interior da consciência individual, o recinto secreto da intimidade do homem consigo mesmo; de outro, a infinitude, a eternidade, para além do tempo e do cosmos.
Nesse sentido, no entendimento de Carvalho, o cristianismo rompe com a ordem da divinização do Estado, na medida em que estabelece um novo modelo de referência do homem no cosmos, aliás, da relação da singularidade pessoal com um Deus supracósmico – e daí temos no Cristo o modelo perfeito da alma individual que porta a verdade absoluta contra a tirania do coletivo.
E, neste ponto, o objeto mais recorrente do filme, mais simbólico do que decorativo, entra em cena: livros e mais livros da biblioteca de Olavo. Na primeira parte da produção, as obras de imaginação e literatura ganham a primazia da câmera: Carpeaux, D.H. Lawrence e C.S. Lewis, provavelmente uma analogia do método filosófico de Olavo que enfatiza a formação do imaginário como passo inicial da filosofia. Essas obras de ficção constituem um fundo contrastante à temática abordada, nomeadamente, a política moderna, “o destino concreto do homem ”, nas palavras de Napoleão.
Versando sobre os meios de restrição da liberdade – paradoxalmente recrudescidos pelo clamor por mais e maiores direitos –, e também acerca do crescimento inevitável do poder (como postulado por Bertrand de Jouvenal, em O poder), a câmara, por meio de drones, enquadra os cenários de Brasília.
Ora, as imagens e as escolhas de Josias não são gratuitas, antes revelam a fusão de suas peculiaridades cinematográficas com a unidade filosófica do documentário. Brasília, nesse contexto, assoma como o maquinário derradeiro para efetivação do poder, o aspecto puramente funcional e burocrático do Estado, e também o aparato da religião civil. Chesterton, num seu romance, imaginou, nos confins ocidentais, uma torre cuja arquitetura, por si só, é malvada – aparentemente uma antevisão de Brasília, que os lances da câmara de Josias, por meio de panorâmicas, exploram como uma sonda.
Retomemos, portanto, à religião civil. Ora, seguindo a linha de interpretação de um Nelson Leheman da Silva, Eric Voegelin, Herman Dooyeweerd e Rousas J. Rushdoony, o Estado é visto, no entendimento de Olavo, como a nova religião, forjada como um novo Moloque nas revoluções francesa e americana.
Novamente, as imagens aqui são personalizadas. Paralela à afirmação do filósofo de que “o Estado moderno fecha a porta dos céus e também do inferno, de modo que não há mais Deus nem Diabo”, tornando-se, em detrimento das antigas religiões, o guia espiritual da nova humanidade, o diretor foca a câmera na Catedral de Brasília, monumento teratológico que demarca justamente a prevalência do projeto político (no caso, os princípios comunistas e, portanto, puramente funcionais de Oscar Niemeyer) sobre a substância espiritual.
3.
Tendo visto, na primeira parte do filme, que o percurso moderno de revolta espiritual e salvacionismo político pode se resumir concisamente no fato de que “todo poder emana do povo e será contra ele exercido”, a sequência do filme nos conduz a uma segunda faceta da filosofia de Olavo de Carvalho: Como tornar-se o que se é.
Se anteriormente as cenas panorâmicas de Brasília revelavam um instrumental científico e burocrático com o fim exclusivo de aumento e preservação do poder, Josias agora alterna seu foco para a intimidade do lar e relações pessoas e familiares do filósofo.
Fazendo alusão ao ideal do jardim, cenas das matas circundantes da cidade interiorana servem de cenário para o projeto filosófico. Há, nisto, uma ironia implícita, assim como uma negação do imaginário de Epicuro, para quem o jardim era o escape último da vida real, uma irrealidade dentro da realidade. Por outras palavras, essas cenas de Josias demonstram que a natureza – aquilo que é dado – é a realidade fundamental, sobre a qual a cultura – o que é construído – erige seus símbolos e escalas convencionais.
O jardim, a natureza, não são o escape ou local de reclusão, mas a realidade mesma donde parte o projeto filosófico retratado. Contrariamente a Epicuro, o jardim ao redor de Olavo é, segundo a perspectiva de Josias, o local de êxodo, de partida para as demais instâncias do real.
Neste momento, conforme dito, os livros novamente ocupam sua simbólica dentro da obra. Curiosamente, enquanto a primeira parte do filme, que discutia ciência política, era emoldurada por obras de literatura e imaginação, esta segunda parte, que versa sobre a constituição da personalidade, foca em obras políticas, mais especificamente de fundo marxista: as coleções completas de livros de Stálin, Trótski e Lênin.
Tomando como ponto de partida a anamnese de Voegelin, isto é, o rastreamento biográfico das ideias na formação de nossas consciências, a busca individual do fundamento na experiência concreta que embasa nossos conceitos, Olavo de Carvalho expõe algumas de suas ideias no tocante à formação da personalidade.
As ideias do psicanalista Lipot Szondi, a “análise do destino”, são invocadas não somente para um exame da formação individual, mas também para um diagnóstico da crise ou doença da alma brasileira, nosso nosos. Para Szondi, nossos ancestrais, juntamente com seus destinos, habitam o que ele chamava de “inconsciente familiar”, de modo que tentam “ressuscitar”, isto é, coagir-nos a repetir seu destino. O ego pontifex, portanto, é quem medeia a herança familiar, as circunstâncias culturais e sociais e a liberdade individual. É simbólico que esta discussão sobre a família seja pontuada com as cenas corriqueiras e por vezes espontâneas das relações familiares de Olavo.
A bem da verdade, temos uma discussão que transita entre três instâncias – família, cultura e Estado –, com ênfase, porém, na vitalidade e força da primeira delas. Se o Estado moderno tornou-se o novo messias, é certo, todavia, que a família ainda permanece sendo o foco de rebeldia e resistência aos ditames estatais – algo que, conforme as analogias do filme nos lembram, é ilustrado na antiga máfia, exemplo de uma fidelidade familiar superior à obediência cívica.
Cosendo as diversas reflexões no seu plano estético, Josias insere algumas cenas do filme Ivan, o terrível (1944), de Sergei Eisenstein. Neste ponto, mais uma vez o diretor tece suas analogias sutis: após a cena do coroamento de Ivan, quando se derrama sobre sua cabeça moedas de ouro, Josias desliza a câmera sobre um livro isolado, especificamente Os dois corpos do rei, de Ernst Kantorowicz, o grande tratado de teologia política medieval. Essas analogias, aparentemente dispersas, constituem a unidade filosófica que o filme procura expressar.
Além destas, há outras alusões veladas. Por exemplo, assegurando que a unificação do conhecimento se dá somente na consciência do indivíduo, e discursando sobre a ruptura na continuidade da história e identidade do espírito brasileiro, Olavo de Carvalho cita um dito inglês, que sintetiza a perda e esboroamento de nossa herança familiar, segundo o qual “no Brasil ninguém conhece seu próprio avô”. O que remete ao livro do próprio Josias Teófilo, Cinema sonhado (2014), no qual o autor, descendo às suas profundezas genealógicas, reconstrói a figura de seu avô, no esforço de trazer à tona a continuidade de imaginário e alma que existe no interior de cada individualidade.
Algumas cenas de No tempo das diligências (1939), de John Ford, também dão azo para reflexões sobre a conquista do Oeste americano, tanto na sua busca pela ordem na sociedade quanto no afã do Império[2]. E novamente a intimidade familiar é marcada por cenas de Aurora (1927), de F.W. Murnau, em que o marido, após tentativa de assassinato de sua esposa e moído pelo remorso, oferece-lhe uma cesta de pães no restaurante, na tentativa de reaproximação.
Há um nítido e deliberado contraste entre as cenas de ambos os filmes, pois ao passo que as primeiras implicam no expansionismo, no êxodo ou saída de um ponto de origem, o filme de Murnau, todavia, é uma celebração à oikofilia (o amor ao lar), tendo como desenlace o retorno ao solo e ambiente natal, à intimidade familiar[3]. Como ressaltado num discurso do filme de Josias, é mediante as contradições e tensões, que o objeto, em toda sua concretude, assoma perante nosso olhar.
4.
A última parte do filme, As ideias dos náufragos, parte da ideia de Ortega y Gasset, presente na Rebelião das massas, de que as únicas ideias verdadeiras, ou pertinentes, são as ideias dos náufragos. Abrindo as reflexões, são lidas as palavras do filósofo espanhol, presentes no capítulo “Quem manda no mundo?”:
O homem de mente clara é o que se liberta dessas “ideias fantasmagóricas e olha de frente para a vida, e se conscientiza de que tudo nela é problemático, e sente-se perdido. Como isso é a verdade pura – ou seja, que viver é sentir-se perdido –, aquele que o aceita já começou a se encontrar, já começou a descobrir sua realidade autêntica, já está em terra firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo a que se agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente verdadeiro porque se trata da salvação, o fará ordenar o caos de sua vida. Estas são as únicas ideias verdadeiras: as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, farsa íntima. Quem não se sente verdadeiramente perdido perde-se inexoravelmente; isto é, não se encontra jamais, não se encontra nunca com a própria realidade.
Diferenciando-se da primeira e segunda partes, focadas no ambiente, nas cidades e na família de Olavo de Carvalho, a terceira parte, fechando-se concentricamente por assim dizer, se detém na imagem do filósofo repousando num sofá.
O diretor, colorindo analogicamente sua obra, pontua esse segmento com imagens, sons e referências à água, naufrágio e dilúvio. Há o barulho de chuva emoldurando a cena; além disso, Josias insere (e, na verdade, inicia esta parte com) cenas do filme Limite (1931), de Mário Peixoto, no qual um homem e duas mulheres, isolados num barco à deriva, encontram-se absolutamente fatigados e no limite de suas existências[4].
A ideia de confrontação com a morte, a pergunta que realmente importa aos náufragos e àqueles que estão soçobrando, torna o terceiro segmento talvez o mais denso de todos, já que o fluxo do filme – todas as reflexões e apontamentos filosóficos – conduzem certeiramente à definição platônica da filosofia: filosofar é preparar-se para a morte.
Ademais, é talvez neste momento que se revela, finalmente, a integralidade das personalidades (do diretor e do filósofo). Estamos perante uma consciência que se apresenta, como numa confissão. O documentário é de fato isto: a lógica interna de uma vida, a convergência de filosofia e vida numa consciência individual. E também um projeto cinematográfico que, embora compostos de elementos vários e com foco numa personalidade (a de Olavo), constitui-se, no entanto, como o testemunho de uma autoria (a de Josias), com suas marcas sutis e pontuais.
É, portanto, um filme de extrema serenidade, em última instância, que valendo-se unicamente dos recursos pessoas e individuais, demonstra que a alma humana, com seus movimentos sutis e por vezes imperceptíveis, permanece sendo o primeiro e último refúgio contra a tirania das multidões.
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NOTAS
[1] A tese, entretanto, abarca vários outros elementos e pontos muito mais complexos do que os que aqui apresentados, que escapam ao escopo deste breve ensaio.
[2] “A vocação imperial norte-americana não nasceu junto com os Estados Unidos: nasceu antes. Um povo não se expande por todo um continente, ao longo de três séculos, entre perigos e esforços sobre-humanos, para, uma vez chegado às fronteiras naturais ou legais do território, se dar por satisfeito e instalar-se de uma vez para sempre na moldura desses limites, disposto a daí por diante só crescer para dentro. Ao contrário: tão logo se sente senhor de seu território, o impulso colonizador se transforma quase que naturalmente em impulso imperialista” (Olavo de Carvalho, O jardim das aflições, 2015, 3.ed. p. 297-298).
[3] Ademais, Olavo de Carvalho, num ensaio sobre Aurora, sinaliza o processo do desmoronamento e reconstrução da identidade vivenciada pelo personagem de George O’Brien: “Ele precisa adquirir certeza absoluta de sua identidade recuperada. No instante em que aceitou matar, ele jogou fora toda a sua vida, ele agiu como se fosse um outro. Um outro que teria uma outra vida, num outro lugar, com outra mulher. Na cena em que a amante fala da vida na cidade e ele se vê dançando nas boates, ele imagina para si uma outra biografia, que começaria miraculosamente do nada. Após ter construído toda uma vida como homem do campo, ele repentinamente se vê em outra cena, e para vivê-la realmente ele precisaria ter tido toda uma outra vida, precisaria trabalhar em outra coisa, ter nascido em outro lugar. O apelo dessa vida imaginária o entorpece de tal maneira que ele perde sua identidade: ele não está mais conectado nem com a esposa, nem com a profissão, nem com o ambiente material, com nada. Ele está desligado do sentido da vida, e por isto esta vida lhe parece vazia e tediosa — é a vaidade psicológica, que projeta na vida em torno a miséria interior do homem incapaz de assumir seu dever vital”.
[4] No filme de Murnau, mencionado anteriormente, a tempestade que ocasiona o naufrágio da mulher e o afundamento do pequeno barco é precisamente o elemento que força o marido a reavaliar-se moralmente e reconstruir sua identidade enquanto marido, pai e trabalhador do campo.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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