Do estranhamento do olhar ao deslumbramento poético e filosófico, há uma distância pequena quando se tem atenção.
“A atenção é a forma mais pura e mais rara da generosidade”.
Simone Weil
Em Paterson, o novo filme de Jim Jarmusch, em cartaz no Brasil desde 20/04, somos apresentados ao cotidiano de um motorista de ônibus, com uma rotina simples e repetitiva, porém repleta de pequenas intuições poéticas, que ganham forma em versos escritos num caderno de poemas.
O primeiro impacto no espectador surge das questões mais evidentes: como alguém com um trabalho tão repetitivo, mal remunerado e cansativo consegue manter-se tão tranquilo e inspirado? Como um trabalhador tão simples pode ser um leitor tão fiel e dedicado de poesia (William Carlos Williams é seu grande favorito)? Como alguém com uma rotina tão cansativa consegue ter tempo, energia e inspiração para criar versos significativos?
Sem perder de vista que estamos diante de uma obra ficcional, sugiro que adotemos um olhar contemplativo sobre o personagem e sua vida, de modo a revelar alguns de seus segredos, que, se não respondem ostensivamente às questões mais evidentes, transcendem-nas. Para tanto, importa menos a sua psicologia do que as tradições filosóficas que nos inspiram há muitas gerações.
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O judeu helenizado Fílon de Alexandria (c. 20 a.C. – 50 d.C.) arrolou as seguintes práticas interiores para caracterizar uma terapêutica de inspiração estoico-platônica: a pesquisa, o exame aprofundado, a leitura, a audição, a atenção, o domínio de si, a indiferença às coisas indiferentes, a meditação, a terapia das paixões, a lembrança do que é bom, a realização dos deveres.
Analisando as escolas filosóficas da Antiguidade, Pierre Hadot considera que o princípio fundamental da postura filosófica é a atenção (prosochè) – “uma vigilância e uma presença de espírito contínuas, uma consciência de si sempre desperta, uma tensão constante do espírito. Graças a ela, o filósofo sabe e quer plenamente o que faz a cada instante. (…) Pode-se ainda definir essa vigilância como a concentração sobre o momento presente. (…) Essa atenção ao momento presente é, de algum modo, o segredo dos exercícios espirituais. Ela liberta da paixão que o passado ou o futuro, que não dependem de nós, sempre provocam; ela facilita a vigilância, concentrando-a sobre o minúsculo momento presente, sempre dominável, sempre suportável, em sua exiguidade; ela abre, enfim, nossa consciência à consciência cósmica tornando-nos atentos ao valor infinito de cada instante, fazendo-nos aceitar cada momento da existência na perspectiva da lei universal do cosmos.” (Exercícios espirituais e filosofia antiga, pág. 25-26).
Tendo em vista esta abertura da consciência prescrita pelas escolas filosóficas da Antiguidade, retornemos à epígrafe, frase de Simone Weil, filósofa do século XX: “A atenção é a forma mais pura e mais rara da generosidade”.
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Em Paterson, a câmera nos convida a um olhar atento, seja nos planos fixos dos interiores, seja na fluidez do trajeto do ônibus pelas ruas da cidade, nas formas cambiantes das sombras refletidas no asfalto, no vento que agita a copa das árvores, na luz oblíqua dos fins de tarde. Se a simplicidade da vida rotineira de Paterson ganha complexidade e inspiração a partir de suas intuições poéticas, em termos cinematográficos ocorre processo análogo: a simplicidade do roteiro e de suas situações banais é enriquecida com um clima de certo estranhamento, construído por recursos que vão desde os sonhos narrados pela companheira de Paterson até o olhar da câmera sobre detalhes inusuais, como os pés dos personagens, passando pela aparição recorrente de irmãos gêmeos pelos caminhos. Do estranhamento do olhar ao deslumbramento poético e filosófico, há uma distância pequena quando se tem atenção.
A atenção silenciosa. A atenção da contemplação. Esta atenção que se cultiva no deserto interior – em Paterson simbolizado por sua escolha em manter-se alheio aos noticiários, ao telefone celular, à internet (e aqui temos indicações significativas de respostas às questões mais evidentes, que abriram este texto).
A opção por recusar o mundo caracterizado pelo binômio diversão & informação, que nos chega através das mídias, parece quase olímpica; mas é evidente que se tornaria inviável praticar a atenção (prosochè) sem adotar tal postura. Não se trata de simples indiferença. Muito pelo contrário: trata-se de não se deixar afetar pelo alarmante senso de urgência que insiste em invadir o espaço da contemplação – é por isso que Paterson dispensa inclusive a necessidade de um alarme para acordar. Trata-se de manter a atenção disponível para as coisas que merecem atenção, por seu potencial contemplativo – é por isso que o rótulo de uma simples caixinha de fósforos pode ser a fagulha de uma inspiração que irá revelar mais do que o dia prometia. Trata-se de manter o domínio de si.
À medida que Paterson vai despoluindo nossas expectativas ansiosas de espectadores do mundo moderno, à medida que vamos adotando aquele ponto de vista levemente superior do motorista, flutuando logo acima do chão, observando a variedade que o mundo apresenta mesmo em suas rotinas banais, à medida, enfim, que vamos compreendendo no que consiste a generosidade cósmica com que a atenção contempla a existência, vamos compreendendo, também, o valor da poesia.
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A poesia, em Paterson, é mais do que riqueza de expressão, mais do que senso de fruição, mais do que gozo estético. Tampouco se limita a uma proposição moral ou valor ético. A poesia é vocação contemplativa, deslumbramento diante do real, comunicação substancial, revelação do ser, desvelamento da essência, vislumbre do atemporal através do efêmero.
Mas, sem amor, qual a razão disso tudo, qual a razão para qualquer coisa? – pergunta um dos versos que Paterson compõe. Será o caso de descobrir que aquela generosidade a que se refere Simone Weil é uma forma de amor? Será a atenção ao “valor infinito de cada instante”, como coloca Pierre Hadot, que nos faz “aceitar cada momento da existência na perspectiva da lei universal do cosmos”, um ato de amor?
Se a generosidade é amor, se a atenção é a forma mais pura de generosidade, se a postura fundamental de um espírito desperto e consciente é a atenção, então é necessário conquistar a sua própria liberdade interior para amar – para amar na perspectiva da lei universal do cosmos.
Em Paterson, a poesia é o exercício fundamental de conquista da liberdade interior.
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Na perspectiva de Paterson, os objetos, os acontecimentos e os sentimentos parecem assumir aquele caráter cósmico que foi tão bem expressado pelo célebre imperador-filósofo, o romano Marco Aurélio (121-180 d.C), notadamente em suas Meditações. Nesse encadeamento de perspectivas em direção à lei universal dos cosmos, parece desenhar-se aquilo a que geralmente chamamos Destino, como se cada instante expressasse uma Vontade soberana.
Não conhecemos o passado de Paterson, mas considerando o modo como exercita a sua liberdade interior mesmo diante dos percalços do destino, somos levados a crer que o personagem encarna uma jornada de descoberta de si e despertar para o mundo, como ilustra Hadot, fazendo referência a Marco Aurélio: “Há pouco, tudo parecia banal, fastidioso, até repugnante, por causa da eterna repetição das coisas humanas, a duração era homogênea; cada instante continha todo o possível. Mas agora o que era tedioso ou amedrontador adquire um novo aspecto. Tudo torna-se familiar para o homem que identifica sua visão àquela da Natureza: ele não é mais um estrangeiro no universo. Nada o surpreende porque ele está em sua casa, ‘na cara cidade de Zeus’. Ele aceita, ama cada acontecimento, isto é, cada instante presente, com benevolência, com gratidão, com piedade”. (p. 146)
Os silêncios que pontuam o filme sugerem, no entanto, que o processo de harmonização com o Destino (ou Vontade, Natureza, Ordem, Razão, Cosmos, Zeus, Deus, Tao) deve preservar o seu caráter essencialmente apofático. Se a objetividade da ordem do cosmos torna-se muito evidente e perde sua dimensão de mistério, arrisca tornar-se um fardo ou uma banalidade. O ato de fé, seja no que for, deve manter-se intrépido, venturoso, imaginativo, socrático – profundamente espiritual, em suma.
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Em recente entrevista, o diretor e roteirista Jim Jarmusch demonstrou estar cansado da ironia, algo que o atraía em sua juventude, como atestam seus filmes consagrados. De fato, em Paterson vigora uma espécie de retidão moral que empresta ao personagem uma aura de serenidade e impassibilidade quase monásticas, o que esvazia o potencial de ironia da sua postura perante os outros.
Entretanto (e aqui evitaremos spoilers), a situação que coloca Paterson diante de uma crise realmente ameaçadora – e não apenas potencialmente grave, como os incidentes no ônibus e no bar – não deixa de ser marcada pela ironia. Afinal, se imaginarmos que a sua resistência a ceder aos apelos da companheira, no sentido de reproduzir cópias dos poemas para divulgá-los, se devesse a uma preservação da sua liberdade (será possível escrever tão livremente tendo a responsabilidade de ser lido? será possível manter-se sereno e contemplativo tendo sua obra divulgada?), como encarar o duro golpe do destino senão como uma oportunidade para libertar-se ainda mais completamente, como quem se depara com uma página em branco pela primeira vez na vida? Ironia do destino, caracterizada muito apropriadamente pelo tom do “A-há” que será ouvido no momento mais difícil.
E o que faz ressaltar a liberdade interior do personagem diante até mesmo de tamanha ironia das circunstâncias é a sua capacidade de recusar-se a ser vítima – visto que a cultura contemporânea privilegia este mecanismo como regulador de todas as relações sociais, ou seja, “apresentar a vítima como ‘o herói do nosso tempo’”, em que “’ser uma vítima’ é a única maneira de conquistar a fama, de adquirir algum poder e de viver protegido, abusando da boa vontade dos outros” (para compreender a extensão do processo de vitimização na alma de um indivíduo e de uma cultura, ler o artigo que estou citando, “A abolição da vergonha”, de Martim Vasques da Cunha). Paterson parece estar afinado com Epiteto: “Não busques que os acontecimentos sejam como queres, mas queira que os acontecimentos sejam como são e tu serás sereno”. (Manual, §8)
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Como um Dom Quixote num mundo em que a desatenção, a impaciência e o esquecimento do ser ameaçam destroçar a liberdade interior, Paterson atualiza Fílon de Alexandria, nos deixando conscientes do valor atemporal dos exercícios espirituais: a pesquisa, o exame aprofundado, a leitura, a audição, a atenção, o domínio de si, a indiferença às coisas indiferentes, a meditação, a terapia das paixões, a lembrança do que é bom, a realização dos deveres.
E a poesia.
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“Nós passamos nossa vida a ‘ler’, mas não sabemos mais ler, isto é, parar, libertarmo-nos de nossas preocupações, voltar a nós mesmos, deixar de lado nossas buscas por sutilezas e originalidade, meditar calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nós. É um exercício espiritual, um dos mais difíceis: ‘As pessoas’, diz Goethe, ‘não sabem quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Precisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso’.” (Pierre Hadot, Exercícios espirituais e filosofia antiga, p. 66)
Lucas Petry Bender
Servidor público, nascido em 1985, vive em Porto Alegre. Escreve sobre cinema em personacinema.com.br e no estadodaarte.estadao.com.br.
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