André Singer não entendeu nada

por Paulo Roberto Silva (14/05/2018)

Não há conflito entre mercado e Estado, como afirma Singer. O lulismo foi só mais um pacto de enriquecimento dos compadres.

“Essa burguesia depende do Estado para se alavancar e alcançar os países desenvolvidos, mas ao mesmo tempo ela teme que o fortalecimento do Estado leve as camadas populares a uma situação de tal hegemonia que prejudique a dominação burguesa. Então, nessa hora ela se desloca para deter esse processo.”

A fala acima foi cometida por André Singer em entrevista à Folha de S. Paulo, como parte de sua análise sobre a decadência do lulismo. Ele está para lançar um livro sobre isso. De minha parte, depois de ler esta entrevista, fiquei ansioso para que a Amálgama encaminhe a missão de resenhá-lo para outra pessoa.

Este artigo não é sobre a entrevista toda, apenas sobre o parágrafo acima. A entrevista toda não vale uma nota carimbada com pedido de libertação do Lula. Mas esse trecho é sintomático de uma visão equivocada de como as coisas funcionam na economia.

Leia com atenção. Releia. Saboreie – ou não, é indigesto. É incrível como tão poucas palavras reúnem tanta bobagem junta. Vejamos.

Uma burguesia que dependa do Estado tem nome: capitalismo de compadrio

Sim, é isso mesmo. Curioso que a primeira denúncia de capitalismo de compadrio no governo Lula foi feita por Ian Bremmer, em seu livro The end of the free market, em 2009. O autor, que é fundador da consultoria política Eurásia, identificou nas grandes empresas brasileiras vários mecanismos de capitalismo de Estado por meio da colaboração, inclusive societária, entre governo e setor privado.

A forma como as grandes empresas e o governo se relacionam no Brasil é tão problemática que é tema de várias operações da Polícia Federal, entre elas a Lava Jato. Mas a corrupção é a face mais extrema desta promiscuidade. Considera-se normal, no Brasil, que uma empresa obtenha do do presidente da República uma Medida Provisória que a favoreça – concedendo, por exemplo, incentivos fiscais – desde que não haja propina envolvida. Ou que o presidente da República interfira na montagem de consórcios para disputarem concessões públicas ou privatizações.

Não! Isso é puro compadrio. Quando o Estado precisa interferir, por exemplo, para achar compradores para a usina de Belo Monte, é sinal que o negócio é inviável. Seria mais interessante criar condições institucionais para que a geração de energia se tornasse mais interessante para qualquer investidor, criando um mercado de energias limpas, por exemplo. Condições institucionais, não incentivos fiscais ou subsídios. O que se faz por aqui, contudo, é acionar os amigos do rei para viabilizar o inviável. O custo disso costuma ser pago na forma de ineficiências e perda de competitividade.

Quando André Singer acha natural que “a burguesia dependa do Estado”, ele está naturalizando as relações oligárquicas que aprofundam as desigualdades sociais brasileiras. Aliás, nada contribuiu mais para aprofundar o fosso social por aqui que as políticas industriais conduzidas por governos. Quaisquer governos – Vargas, Juscelino, Geisel, Dilma…

O Estado pesado brasileiro não empodera ninguém

Toda vez que alguém disser que o Estado forte empodera os pobres, visite um cartório, um posto de saúde ou uma escola pública. Fique lá por trinta minutos. Depois avalie se aquilo empodera quem quer que seja.

O Estado pesado brasileiro não é fator de inclusão social, mas de concentração de renda. Ele dificulta o acesso dos pobres às oportunidades, não facilita. O que deveria facilitar, como a educação pública, não funciona. E o que funciona, como a Receita Federal, é complexo demais para facilitar a vida do mais pobre que quer empreender, por exemplo.

Acreditar que o empresário é contra o Estado forte porque isso significa mais poder para os mais pobres é uma dupla mentira. Primeiro, o empresário se ressente da ineficiência do setor público, cuja burocracia é pesada e cujos processos são morosos. Segundo, este Estado pesado não traz mais acesso ao poder para os mais pobres. Enxugar a máquina do governo brasileiro é uma necessidade para ricos e pobres.

O ajuste fiscal é uma pauta a favor da sociedade

Piketti afirma que um Estado pode optar por se financiar de suas formas: por empréstimos ou por impostos. A primeira valoriza o rent-seeking, a segunda pode ter impacto distribuidor de renda se a estrutura tributária for progressiva. No Brasil, temos um elevado endividamento público e uma carga fiscal fortemente regressiva, ambos para alimentar um Estado pesado. De duas formas diferentes nossa política fiscal é concentradora de renda.

Medidas como teto de gastos, fim do subsídio ao crédito do BNDES, reforma da previdência e reestruturação do governo são fundamentais para aliviarmos a pressão fiscal que se abate sobre a sociedade. Em seu estudo recente, Por que o Brasil cresce pouco, o economista Marcos Mendes avalia que o grande problema do Brasil é que a redemocratização não desmontou os grupos de interesses que se aproveitam do Estado. Com isso, temos uma expansão fiscal para dar conta das necessidades sociais sem prejudicar os grupos de interesses que exercem poder de veto sobre o Estado, como várias categorias de servidores públicos e os grandes empresários que se beneficiam do compadrio.

O que precisamos fazer urgentemente no Brasil é enfraquecer os grupos de pressão, aliviar a pressão fiscal e com isso reduzir a carga tributária e o endividamento, de forma a manter ou até melhorar os serviços sociais. Só isso permitiria ter crescimento econômico com redução da desigualdade. Não é uma bomba relógio simples de ser desarmada. Piketti afirma que grandes reduções da desigualdade só aconteceram em situações de guerra. Mas alguém precisará encará-la.

É evidente que a pauta de redução fiscal, quando apresentada por grupos de pressão como a Fiesp, vem com um viés pró-empresa. Mas quando o André Singer a coloca como uma pauta contrária aos interesses dos mais pobres, temos uma cortina de fumaça. Porque o problema fiscal é real, e ameaça a capacidade do Estado em manter serviços públicos de qualidade. Basta ver o que acontece no Rio de Janeiro.

Não há conflito entre empresários e Estado, como diz o André Singer. Há sim, conflito entre os compadres do governo e a sociedade – incluindo os empresários que não dependem do Estado – sobre onde alocar os recursos. A maioria dos empresários, especialmente os pequenos e médios, sequer quer ajuda do governo, só pede que ele não o atrapalhe de empreender.

Não, André Singer, o que está em questão aqui não é a manutenção da dominação burguesa. Ela esteve intocada nos quatorze anos de governos petistas. O que foi colocado em questão em junho de 2013, no processo do impeachment e em toda a derrocada do lulismo, é até quando os governos no Brasil vão fingir atender aos pobres para usar o Estado e transferir recursos da sociedade aos ricos.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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