O jogo dos 47 erros de Ciro Gomes

por Lucas Baqueiro (31/05/2018)

A metralhadora de inverdades de Ciro Gomes, em economia, segurança pública, geopolítica...

Ciro Gomes, pré-candidato à presidência da República, esteve no Roda Viva no último dia 28. Resenhar sua entrevista foi um imenso desafio, ao contrário de outros presidenciáveis como Guilherme Boulos e João Dionísio Amoedo: ao longo de 1 hora e 19 de minutos de fala, Ciro disparou mais de cinquenta dados e opiniões contundentes – em sua grande maioria, dados exagerados ou falsos, e opiniões fundamentadas nesses mesmos dados – entre arroubos explosivos e ofensas dirigidas a algumas personalidades da política.

A bancada foi extremamente morna e condescendente com o candidato, salvo em poucos momentos em que afirmações muito afastadas da realidade foram trazidas à baila por Ciro Gomes. Os únicos momentos em que o candidato foi colocado contra a parede foram proporcionados por Bernardo Mello Franco, d’O Globo, e Brad Hynes, da Reuters. Estiveram presentes também José Roberto de Toledo, da revista Piauí; Débora Freitas, da CBN; e André Perfeito, economista-chefe da corretora de valores Spinelli — e que recentemente se demitiu da Gradual Investimentos, depois da prisão de seu presidente e poucos dias antes desta ser posta em liquidação extrajudicial.

O presidenciável mostrou-se muito afiado em sua retórica nacional-desenvolvimentista, lembrando inclusive o desempenho de Leonel Brizola. Às vezes, parecia estar lendo um manifesto bolivariano, não tendo se furtado, inclusive, de defender a ditadura de Nicolás Maduro. Todavia, fugiu de responder muitas perguntas e visivelmente lançou mão de números inexistentes e hipóteses não-verificáveis, porém pouco prováveis, buscando sair pela tangente nas poucas perguntas onde foi encurralado.

1. Eixo econômico

O eixo econômico dominou o primeiro bloco do Roda Viva, muito em razão da greve dos caminhoneiros, que já chegou à segunda semana e tem imposto substancial paralisação das atividades a nível nacional. Tratou-se a priori da Petrobras, sua política de preços, a gestão de Pedro Parente, e o modal logístico do Brasil.

Logo nos primeiros momentos, veio a primeira afirmação improvável:

O governo brasileiro impôs ao povo brasileiro, através da Petrobras, uma política de preços absolutamente fraudulenta. Esta política desconsidera o custo do barril de petróleo do Brasil e passa a cobrar como se o barril de petróleo brasileiro, que custa ao redor de 17 dólares, como se tivesse o custo do barril de petróleo negociado no mercado especulativo do estrangeiro, que hoje está perto de 90 dólares.

Ciro Gomes estaria parcialmente correto ao afirmar que a política de custos da Petrobras desconsidera o valor do custo do barril de petróleo extraído no país, que segundo ele gira em torno de US$17 por barril. O presidente da Petrobras estabelece como custo de extração do petróleo no pré-sal algo em torno de US$8. Somado aos demais custos para a produção após a extração, alcançaria a razão de US$33 por barril – duas vezes mais, portanto, do que o estabelecido por Ciro como parâmetro.

Desconsidera o presidenciável, porém, que o petróleo brasileiro é inviável financeiramente para o refino e transformação em gasolina, posto que é muito denso, precisando ser misturado a petróleo leve, indisponível em território nacional e importado de outros lugares, como a Arábia Saudita, responsável por 35,3% do petróleo importado pelo Brasil, e a Nigéria, responsável por 34,2% desse total. Por isso, inclusive, o petróleo brasileiro não é inteiramente consumido na produção de combustíveis e de derivados em território nacional, sendo exportado em grande volume para a China. Isso elevaria substancialmente o preço do combustível, haja vista de importamos petróleo para o refino em combustível, como a gasolina e o óleo diesel.

Ademais, devido às dimensões continentais do país e ao alto custo logístico de transportar o petróleo e seus derivados desde as refinarias mais centrais até os pontos mais extremos do território nacional, o Brasil importa diretamente petróleo, gasolina e óleo diesel. É mais barato, por exemplo, importar petróleo e combustíveis já refinados, desde o Golfo do México, para a região Norte do Brasil, do que transportá-lo. Essa é uma das razões pelas quais o Maranhão é o estado que tem a gasolina mais barata do Brasil.

Portanto, não se pode levar em consideração exclusivamente o valor do barril de petróleo bruto extraído em solo ou águas territoriais brasileiras para fixar o preço da gasolina, posto que não é inteiramente dele que se produz o combustível.

À sequência, Ciro afirmou:

O que serve a uma empresa como a Petrobras é praticar uma matriz de custos absolutamente transparente. Ou seja: quanto custa produzir um litro de gasolina? De quanto é o custo de produção? Mais, a remuneração do investimento? Mais, a depreciação? Mais, (pôr) o lucro em linha com os competidores equivalentes do estrangeiro.

Está o candidato Ciro Gomes equivocado ao deixar subentendido que a Petrobras não é transparente em sua matriz de custos. Aliás, ela deixa clara a resposta às questões de Ciro, em sua própria página institucional. De acordo com empresa, com relação à gasolina, o custo da realização do produto é de 34% do seu valor no posto de gasolina, correspondendo o restante a 16% em impostos federais, 29% em impostos estaduais, 12% no custo do etanol obrigatoriamente adicionado à composição por força de lei, e 9% na distribuição e revenda. Não há, com relação ao seu processo de produção – pelo menos desde o início da gestão de Pedro Parente à frente da empresa – falta de transparência com relação à matriz de custos.

Cumpre lembrar, todavia, que não é tão simples pôr o lucro estabelecido da Petrobras em linha com seus competidores equivalentes estrangeiros, em solo nacional. A empresa, aquando da posse definitiva de Michel Temer à frente da presidência da República, tinha uma dívida líquida de US$100,3 bilhões (aproximadamente R$ 374 bilhões). Era a empresa mais endividada do mundo quando Pedro Parente assumiu sua gestão, vencendo em débitos até a falimentar PDVSA, símbolo da incompetência administrativa do regime venezuelano. Previa a empresa, antes do canetaço imposto pelo presidente Temer sobre o valor do óleo diesel, reduzir a sua dívida líquida a US$77 bilhões (aproximadamente R$ 287 bilhões) até o fim do ano.

A empresa deve tanto por conta de três fatores: primeiro, e mais chocante, graças à corrupção na estatal praticada durante os governos Lula e Dilma, estimada em R$42 bilhões; segundo, pela má-gestão, que fez a estatal dispender imensos volumes em investimentos inviáveis, como o da refinaria de Pasadena, ativo recentemente posto à venda; terceiro, pela política imposta à Petrobras de 2008 a 2016, que impedia o repasse do custo da aquisição e produção do combustível ao consumidor, para controlar a inflação do país. Essa última política, aliás, representou a maior parte da grande dívida que hoje tem a petrolífera estatal, e é justamente o que o candidato do PDT defende que o Brasil retome.

Logo adiante, Ciro disse que “(praticar essa estrutura de custos) significaria que o óleo diesel poderia estar hoje a, no máximo, uns R$3,00, R$2,80, e essa é a fraude”. Mas, a qual custo se reduziria o valor do óleo diesel para esse patamar? Foi justamente essa política, de populismo fiscal represando o custo dos combustíveis, que representa hoje a razão da maior fatia da dívida líquida que a petrolífera tem. E é essa política, como fica subentendido, que o candidato do PDT defende que o Governo Federal retome.

Não obstante seu prejuízo, a Petrobras, que é uma empresa de capital misto, precisa recuperar a confiança do investidor. É o dinheiro do investidor que vai possibilitar à empresa – sem gerar ônus para o tesouro e, portanto, para o cidadão – investir em tecnologia e infraestrutura. O investimento em infraestrutura, mais à frente, permitirá à empresa extrair petróleo por custo ainda menor, otimizar o custo do refino e oferecer um preço menor do combustível. Reduzir lucros significaria minar a capacidade de investimento da empresa, reduzir seu valor de mercado e, pouco a pouco, sucateá-la.

Disparou Ciro, em continuação:

O que o senhor Pedro Parente faz, para servir aos interesses estrangeiros, ele deixa um terço da capacidade de produção de gasolina e óleo diesel e de lubrificantes do Brasil ociosos e passa a abrir espaço para que grandes importadores brasileiros comprem gasolina lá fora, aproveitando a peculiaridade da Petrobras que é deter o monopólio. (…) Portanto, um importador de gasolina pode empurrar esse preço absurdo, criminoso, sem contestação do verdadeiro mercado concorrencial. E nós não podemos cair nesse mercado concorrencial porque nós temos uma companhia estatal que tem padrões de custo e eficiência importantes, em comparação com o mundo, e pode e deve transferir essa eficiência para o interesse público brasileiro.

O que Ciro não parece capaz de perceber é que essa política adotada por Pedro Parente foi uma das responsáveis pela revalorização das ações da Petrobras, com efeitos substanciais na capacidade da empresa conseguir reduzir a sua dívida e recuperar fôlego. Ademais, a abertura da Petrobras à concorrência nacional permitiu que importadoras brasileiras, como a Raízen, a Ipiranga e a BR Distribuidora – aliás, pertencente à Petrobras – adquirissem imensos lotes de combustível pronto para uso no exterior, reduzindo substancialmente o preço para o consumidor final, e a valores diferentes, para baixo em números absolutos, do praticado aquando do regime em que a Petrobras era a única importadora de derivados de petróleo do país.

Ainda com relação à política de preços, Ciro desconsidera a inflação ao classificar tal política de criminosa. Corrigida, o preço é menor do que o praticado 17 anos atrás, que nominalmente custava R$1,50, o que em valores atualizados representaria R$5,19; o valor atual médio da gasolina está em R$4,43. Portanto, ou é insustentável que o preço é absurdo e criminoso, com relação ao que tem sido praticado ao longo de 17 anos, ou o presidenciável considera a política de preços da Petrobras criminosa desde sempre.

Cumpre, inclusive, apontar: o preço da gasolina durante a gestão de Ciro Gomes no ministério da Fazenda, entre 1º de setembro de 1994 e 1º de janeiro de 1995, é rigorosamente equivalente ao preço de hoje. Dúvidas? Basta usar uma calculadora de correção monetária, disponível em qualquer canto da internet, e aplicar o índice IGP-M da Fundação Getúlio Vargas sobre o preço médio da gasolina na data (em torno de R$0,60) e corrigi-lo para hoje. Seria Ciro, portanto, cúmplice do crime e da fraude que imputa a Pedro Parente? Ou estaria apenas bravateando?

Em um ponto, Ciro concorda com o senso comum: a de que o modal quase que exclusivamente rodoviário para a logística nacional não se sustenta. Todavia, hiperbolizou, dizendo:

Nos últimos 20 anos o Brasil destruiu sua marinha mercante, e o Brasil destruiu sua estratégia de ferrovias mais recentemente, e já foi agora com o governo golpista do Temer. Eu, por exemplo, estava afastado da política e dirigindo, em nome da CSN, a Transnordestina, construindo mais de um quilômetro por dia, ali numa área de grande potencialidade produtiva, (…) essa obra tinha cinco mil pessoas trabalhando, o Temer assumiu e parou; assim a Leste-Oeste na Bahia parou; assim a ideia de uma Transoceânica, em parceria estratégica com os chineses, parou; assim a construção da Norte-Sul parou, apesar de estar praticamente pronta.

O presidenciável começa a fala sobre o modal com uma mentira: a de que nos últimos 20 anos o Brasil destruiu sua marinha mercante. A marinha mercante brasileira, em 1998, possuía 188 navios, de acordo com o The World Factbook 1998, da CIA (Central Intelligence Agency), órgão de inteligência americano. Em 2018, em contrapartida ampliou-se para 766 navios, quatro vezes mais do que há 20 anos.

Mente também Ciro Gomes ao dizer que, durante a sua gestão na presidência da Ferrovia Transnordestina, as obras avançaram um quilômetro por dia. No momento de sua posse, em fevereiro de 2015, a ferrovia possuía 423 quilômetros de extensão. Quando de sua saída, em junho de 2016, um ano e quatro meses depois, a Transnordestina possuía pouco mais de 600 quilômetros. Portanto, é matematicamente impossível que, durante sua gestão, tenha se construído mais de um quilômetro por dia.

É falsa também a afirmativa de que o Brasil destruiu sua estratégia de ferrovias sob o governo Temer. Em verdade, depois da Companhia Siderúrgica Nacional ter parado a construção da Transnordestina, o Governo Federal passou a buscar um investidor estrangeiro para continuá-la, assim como continuar as outras obras inacabadas.

Ciro culpou a falta de concessão de crédito da União pela paralisação das obras da Transnordestina. Pressionado por Brad Hynes a responder se o dinheiro deveria sempre vir do Estado, respondeu:

Nenhum país do mundo constrói sua infraestrutura com dinheiro do capital próprio de empresas privadas, stricto sensu. (…) Agora, infraestrutura no mundo inteiro se lança com ferramentas de financiamento, como na Europa, nos Estados Unidos; ninguém faz ferrovia com dinheiro do caixa de empresa nenhuma, isso não existe nenhum precedente no planeta Terra. Vamos deixar claro isso.

Erro grosseiro e desconhecimento da própria história do Brasil. A primeira ferrovia brasileira, a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, foi construída com o dinheiro do Visconde de Mauá.  A Great Western Railway Company também construiu mais de 1.600 quilômetros de malha ferroviária em território brasileiro – parte dela, passando pelo próprio traçado da Transnordestina – com dinheiro exclusivamente da iniciativa privada.

Precedentes de ferrovias financiadas com dinheiro privado superabundam, não só no Brasil. Nos Estados Unidos, mais recentemente, uma ferrovia de alta velocidade – o que se convencionaria chamar de trem-bala -, a Florida East Coast Railway, foi inaugurada com financiamento privado. Aliás, parte considerável da malha ferroviária do país também foi financiada de forma privada, assim como em outros países.

À sequência de lançar mão do falso expediente de dizer que não existe financiamento privado do modal ferroviário em lugar nenhum do mundo, Ciro Gomes optou por mentir sobre um tema novo: gasto público.

Ciro disse que

(O teto de gastos) não tem precedente em lugar nenhum do mundo. (…) Não há esse precedente. (…) O que existe como precedente, sem status constitucional, é uma norma norte-americana que determina um congelamento, um limite para todos os gastos, inclusive dívida.

A verdade: existem inúmeros precedentes pelo mundo. Um relatório do Fundo Monetário Internacional é bastante esclarecedor ao estabelecer que inúmeros países, como a Dinamarca, os Países Baixos e Singapura, fixaram tetos de gasto, como o Brasil fez. A Dinamarca possui o teto de gastos fixado em sua carta magna.

Em segundos, o pedetista disparou outra afirmação questionável:

Qual é o país do mundo que tabela por 20 anos os seus gastos com saúde, educação, desconsiderando que dois milhões de bebês brasileiros nascem todo ano? Se eu congelo por 20 anos os gastos com saúde, quem vai cuidar dessas crianças? (…) hoje o Brasil está proibido de expandir o gasto com saúde, com educação e com segurança.

A afirmação é inteiramente mentirosa, o que podemos perceber ao analisar a própria Emenda Constitucional nº 95, que fixa o teto de gastos por 20 anos. Ela não tabelou os gastos com saúde, educação e segurança. Na verdade, ela proibiu que todas as despesas primárias do governo fossem maiores do que as do exercício anterior, considerando devidamente o montante corrigido pela inflação do período. Isso não impediu que o governo aumentasse seus gastos com saúde, segurança e educação: o governo pode remanejar de outras áreas, como, hipoteticamente, a pesca ou agricultura, para elevar a despesa com as áreas onde supostamente seria defensável expandir gastos.

No ano sequencial à aprovação do teto de gastos, o gasto orçamentário com a saúde e a educação se ampliou, o que faz cair por terra completamente a cantilena repetida à exaustão por Ciro Gomes durante sua participação no Roda Viva.

O desconhecimento do presidenciável a respeito das contas públicas, tal como a prontidão com que sub ou superestima, exagera ou inventa números, ficou demonstrada muito claramente. Para quem se propôs a checar e corrigir os dados lançados ao vento por Ciro Gomes, o trabalho foi sofrível, dado o imenso volume de besteiras proferido.

Aqui vai outra mentira:

O déficit da previdência é real, mas ele não é de R$180 bilhões. Ele é de R$25,3 bilhões.

De fato, o déficit da previdência estimado pelo Governo Federal não é de R$180 bilhões — é de R$268,8 bilhões. R$182 bilhões é o rombo previsto apenas para o ano de 2018, desconsiderando a previdência dos servidores públicos e dos servidores militares, que somam à conta, chegando aos R$268,8 bilhões mencionados. O número de R$25,3 bilhões foi uma invenção do ex-governador do Ceará, sem base em qualquer fonte fiável.

Tentou o presidenciável minimizar ainda mais o déficit da previdência:

Não é tão relevante (o déficit da previdência). Basta dizer que o Temer acabou de entregar R$14 bilhões para as transportadoras.

Mas, ao tentar associar uma questão com a outra, Ciro Gomes mente outra vez. Primeiro, mente ao afirmar que o subsídio sobre o óleo diesel – isso, sim, criminoso, e até muito a par com as demandas levantadas pelo candidato no primeiro bloco, a respeito dos preços dos derivados de petróleo – geraria uma conta de R$14 bilhões, quando se avalia o prejuízo em R$9,5 bilhões. Em segundo lugar, mente ao imputar que o dinheiro será entregue às transportadoras, quando, em verdade, essas se beneficiarão indiretamente do subsídio, na condição de consumidores diretos do produto.

Disparou ainda:

Metade do que se arrecada no Brasil é (gasto com) despesa financeira, (pagamento de) juro e rolagem de dívida.

O balanço geral da União mostra o tamanho dessa mentira. A despesa financeira com base no quanto é arrecadado está fixada, para este exercício, em 40% (R$986,1 bilhões). É mais uma informação falsa, disparada na tentativa de gerar a falsa sensação de que, basicamente, a maior parte do dinheiro do orçamento é gasto no pagamento da dívida pública.

Ainda a respeito da dívida:

R$5,5 trilhões. Em números brutos, essa é a dívida brasileira. Por que o tesouro só reconhece R$3,5 trilhões? Porque tem quase R$1,2 trilhão clandestinos que o Banco Central emite como operação compromissada.

Depois:

Em 1º de janeiro, a dívida já terá alcançado R$5 trilhões.

Os números são absolutamente aleatórios e contraditórios, com exceção do montante da dívida pública reconhecido pelo Governo Federal, que é realmente de R$3,5 trilhões. Ciro, num primeiro momento, estabelece a dívida pública brasileira em R$5,5 trilhões, somando o montante reconhecido à operação compromissada emitida pelo Banco Central, de R$1,2 trilhão; só que essa soma, por si só, está errada, dando uma razão de 4,7, jamais 5,5. A seguir, em outro bloco – esquecendo-se que disparou um número certamente tirado da própria cabeça -, diz Ciro que, no início do ano que vem, a dívida ainda vai alcançar R$5 trilhões, 500 bilhões abaixo do que ele afirmou como a dívida alcançada hoje pelo Brasil. Confuso, no mínimo.

2. Eixo político

Não foi só nas estatísticas econômicas que Ciro Gomes errou, inventou ou exagerou. Mentiu ao falar sobre a política de drogas; inventou dados sobre a política prisional brasileira; e até fez acusações muito sérias – que ele mesmo reconheceu como acusações sem prova – a respeito da política de segurança pública do estado de São Paulo, deixando, como cereja do bolo, o número mais absurdo criado por ele mesmo em todo o debate.

Com muita segurança, Ciro afirmou que o número de mulheres aprisionadas no Brasil havia se ampliado em 500% nos últimos três anos. Nos últimos três anos, na verdade, o número de mulheres aprisionadas cresceu cerca de 30%.

Também afirmou que o número de pessoas aprisionadas no Brasil é de 760 mil pessoas. De acordo com os dados das inspeções nos estabelecimentos penais, no sítio do Conselho Nacional de Justiça, são 682.645 prisioneiros e 3.175 internos cumprindo medida de segurança. Um dado inflado, portanto.

Sobre drogas:

Não há um precedente internacional que diga que (a descriminalização das drogas) deu profundamente certo.

Uma vez posto contra a parede, e tendo ouvido que existe esse precedente, Portugal, rebateu:

Não, Portugal fez um atalho hábil. Portugal não descriminalizou. (…)

Na sequência, depois de afirmar que Portugal não descriminalizou as drogas, afirmou em sequência que a política de descriminalização das drogas em Portugal não está madura, porque é recente. E apontou, ainda, que a política do Uruguai, de descriminalização das drogas, tem mais ou menos a mesma data e, em suas palavras, não está funcionando. Afirmou, inclusive, que esteve em Portugal em duas ocasiões para estudar a política de drogas do país.

Se o presidenciável esteve em Portugal realmente com o fito de conhecer o modo como o país decidiu lidar com as drogas, certamente não se aplicou. Tampouco conhece a realidade uruguaia, que diz não ter dado certo, sobretudo ao datá-la da mesma época da iniciativa portuguesa. Portugal descriminalizou o consumo e posse de todas as drogas em 2001. Por sua vez, o Uruguai apenas descriminalizou a maconha, e isso foi feito mais de uma década depois. A discrepância entre a verdade e a afirmação levantada por Ciro Gomes demonstra que ele não estudou a questão, como afirma ter feito, ao considerá-la muito recente para avaliar seus frutos: passou-se uma geração desde o início da experiência portuguesa com sua nova política de drogas até aqui.

No Uruguai, a maconha legalizada é mais competitiva, em termos de custo-benefício, do que a ilegal, tendo substancialmente retirado uma fonte de renda do tráfico de drogas uruguaio. Noves-fora os obstáculos à implementação total da lei da maconha no Uruguai, que são externos, por conta das normas financeiras federais dos Estados Unidos – país do qual a economia uruguaia é muito dependente – os próprios uruguaios a consideram um sucesso.

Ciro Gomes se apresenta como advogado, professor de direito tributário e de direito constitucional. Um dos principais tópicos que um professor de direito constitucional dá aos seus alunos é a classificação das constituições por rigidez, algo basilar no conhecimento jurídico. Inclusive, Ciro arroga para si um grande conhecimento da Constituição dos Estados Unidos. Para o espanto de quem entende do riscado, o presidenciável afirmou que nos Estados Unidos não existe uma Constituição rígida, que exige maioria de três quintos para sua reforma; e que os tópicos importantes eram tratados pelo direito consuetudinário.

Foi um erro, com o perdão pela contundência, extremamente grosseiro, aberrante. A Constituição dos Estados Unidos não só é superrígida, como uma das mais difíceis de se emendar no mundo. Para uma emenda constitucional entrar em vigor, se requer o voto de dois terços (superior aos nossos três quintos) dos membros do Congresso, e, depois de sua aprovação no parlamento, a ratificação de três quartos (trinta e oito) das legislaturas estaduais. Não obstante, embora muitos tópicos sejam decididos por jurisprudência da Suprema Corte americana, a grande parte do ordenamento jurídico nacional é codificado. Inclusive, a nível estadual, parte dos estados do Sul dos Estados Unidos têm seu direito inteiramente codificado, em parte graças à herança do Code Napoléon, resquício da colonização francesa.

Apesar da falsidade acima, Ciro Gomes acertou ao dizer que a carta maior americana é sintética, em relação à nossa, extensa e analítica.

Ao se aproximar o fim da discussão, o presidenciável começou a atacar as políticas do Estado de São Paulo, com o óbvio fito de fazer resvalar críticas a Geraldo Alckmin, um dos seus competidores com maiores chances nessa eleição presidencial. Entre as afirmações, estava a de que

Em São Paulo as autoridades estabeleceram um entendimento com o PCC. Eu não posso provar, mas é flagrante que o PCC fez um acordo com as autoridades.

Questionado por Bernardo Mello Franco sobre a natureza do acordo, Ciro Gomes afirmou: “(Acordo) de cessação de homicídios, por exemplo, para poder fazer o tráfico de drogas impunemente.”

Felizmente, Ciro já atestou a improbabilidade (e a irresponsabilidade) de sua afirmação, ao dizer que não a pode provar. Houve, em verdade, um entendimento com o Primeiro Comando da Capital em 2006, quando a facção criminosa resolveu promover ataques em todo o estado de São Paulo contra as forças do Estado, assassinando policiais e agentes penitenciários, atacando delegacias e batalhões, e promovendo sequestros e um ambiente de terror que durou dias. Nada comprova que existiu algo além desse entendimento feito em 2006, com o objetivo único de acabar com a semana de terror, chamada pelos criminosos de “salve geral”.

Tentando apontar inocuidade nas investigações policiais do Brasil, Ciro afirmou que somente 8 em cada 100 homicídios são investigados no Brasil. Aos Fatos, uma agência de fact-checking, buscou essa informação e descobriu que o dado é falso: a cifra negra brasileira está em 19 homicídios investigados e denunciados para cada centena.

Retomando seu ataque à política de segurança pública paulista, Ciro trouxe a baila o dado mais inverossímil de todos, entre os muitos de sua entrevista:

São Paulo subnotifica os homicídios. Se olhar o número de homicídios qualificados como morte suspeita, vai passar de 100 mil.

O número de homicídios no Estado de São Paulo, em 2017, foi de 3.503 casos, de acordo com o levantamento do DataSUS. Aliás, o número de homicídios no Brasil inteiro, durante o ano de 2017, é quase duas vezes menor do que a taxa de homicídios que Ciro Gomes circunscreve apenas ao estado de São Paulo: foram cerca de 59 mil naquele ano. Os dados de mortes suspeitas no Estado, como causa violenta indeterminada, apontam que a subnotificação poderia representar 2.212 homicídios na região – 5.715 homicídios, se inferirmos que todas as mortes suspeitas foram homicídios subnotificados, algo extremamente distante do número apresentado pelo candidato. É a cereja no bolo dos números falsos disparados à razão de um por minuto.

Sendo generoso e concedendo que a intenção do candidato era apresentar a subnotificação de homicídios como algo global, a nível de Brasil, apresentando a possibilidade de que o número de mortes suspeitas somado à taxa de homicídios de todo o país aumentaria a sua razão para mais de 100 mil casos, ainda assim, Ciro Gomes erra ou mente. Se a taxa paulista de subnotificações é de 40,8%, conforme apontado por pesquisa, e ela representaria a taxa-média nacional, o número de homicídios no Brasil se elevaria em mais 24.114 vítimas, perfazendo o total de 83.217. Não “passa de 100 mil”, como apontou o candidato, sem responsabilidade com números ou fatos.

3. Eixo da política externa

Ao falar da política externa brasileira, Ciro Gomes abandonou a lucidez que se espera de um futuro chefe de Estado. Por um minuto, foi difícil distinguir um dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas eleitorais de um dançarino desengonçado do Levante Popular da Juventude, organização deplorável que apoia a tirania de Maduro na Venezuela.

Ciro, o democrata, qualificou a oposição da Venezuela como “fascista, neonazista, entreguista, vendilhã da pátria”.

Sabemos que isso tudo é mero arroubo retórico da pior espécie. Mas é especialmente preocupante saber que um indivíduo que se propõe governar democraticamente um país, qualifica a oposição a uma ditadura assassina, que tortura opositores, os prende ilegalmente, assassina pessoas em protestos, dissolve parlamento ao arrepio da Constituição vigente à altura e realiza eleições fraudulentas sem possibilidade de contestação interna, como fascista.

Chamar a oposição venezuelana como neonazista, aliás, é sequência de seu delírio. O neonazismo, como seu próprio nome infere, é uma doutrina política que promove ódio às minorias étnicas, sociais e religiosas de um país. Fazendo uma rápida pesquisa usando uma plataforma cujo domínio é quase universal entre todo brasileiro esclarecido, mas que aparentemente foge das competências do senhor Gomes – o Google – não encontrei nenhuma referência fiável, salvo em sítios financiados pelo governo e sua coalizão de partidos, versão do nosso necrogovernismo.

Quanto às acusações de entreguismo, de vender a pátria, compreendemos que ali o dom Quixote do nacional-desenvolvimentismo brasileiro montou o seu esquálido cavalo Rocinante, para combater os moinhos de vento do neoliberalismo perverso. Na realidade, até os principais nomes da oposição – tal como Henrique Capriles – se declaram socialistas, meramente discordando da tirania chavista.

Não há como deixar de ser contundente, como ser morno, diante de tantas colocações aberrantes. Ciro Gomes diz que “o isolamento econômico (da Venezuela) é especialmente imposto pelos norteamericanos e que provoca um desabastecimento muito grave”, imputando a culpa do desabastecimento do país à interferência estrangeira.

É um completo absurdo.

Os Estados Unidos continuam importando petróleo e seus derivados produzidos pela Venezuela, única produção relevante exportada pela nação caribenha. As exportações da Venezuela têm continuamente caído, não por bloqueio econômico, mas por perda exponencial de sua capacidade produtiva.

O desabastecimento no país é fruto da hiperinflação, da crise de violência que tomou conta do país, da fuga de capitais, das desapropriações sequenciais promovidas pela ditadura chavista desde o seu início, da insegurança jurídica, do exílio de parte considerável da população e dos controles de preços, que os colocam, inclusive, muito abaixo dos custos de produção. O desabastecimento, em suma, foi produzido pela própria incompetência do regime de Nicolás Maduro e do seu antecessor, Hugo Chávez.

Mas, para Ciro, a culpa mesmo é dos “interesses imperialistas norteamericanos, que simplesmente querem praticar um golpe na Venezuela, que não por acaso é um lugar onde tem petróleo”. Principalmente diante de uma era em que combustíveis fósseis têm dado lugar cada vez mais à energia limpa; e, mais importante, com a consistente alta dos preços do barril de petróleo, a produção de petróleo de xisto – combustível cuja maior reserva está em território dos Estados Unidos! – se torna cada vez mais viável e rentável. Os Estados Unidos não precisam, portanto, do petróleo venezuelano para sobreviver.

Ciro Gomes diz que “é criminosa a posição do governo brasileiro de tomar parte na questão venezuelana como se nós fôssemos meros gendarmes dos interesses imperialistas norteamericanos”.

Mas, afinal, o Brasil foi instado a defender algum interesse de outra potência, senão os nossos próprios?

O interesse majoritário do Brasil é salvaguardar a democracia na América do Sul, abalada substancialmente com a escalada ditatorial promovida na região por regimes como os de Maduro, na Venezuela, e de Evo Morales, na Bolívia. Ainda mais, é fundamental a revitalização democrática e econômica de nosso vizinho caribenho, haja vista o volume da dívida externa deles para conosco: recentemente, tomamos um calote bilionário da Venezuela, que foi pago pelo Tesouro Nacional, às custas do povo brasileiro. Lidamos, hoje, com uma crise de refugiados venezuelanos, que já representam parcela substancial da população do estado de Roraima. O fiasco da ditadura bolivariana é, sim, um problema que nos diz respeito.

Se é permitido adjetivar com vacuidade, vale dizer: criminosa é a posição de Ciro Gomes, que ignora as aspirações democráticas de um povo que abandona as suas casas e atravessa fronteiras rumo a um país desconhecido, em busca de segurança alimentar e liberdade. Criminosa é a omissão do presidenciável diante de um regime que viola, da forma mais covarde possível, os direitos humanos.

Se ele qualifica a oposição venezuelana como fascista e neonazista, o que podemos esperar de sua política externa? Iremos nos associar, mais uma vez, aos piores regimes do mundo?

4. Conclusão

O trabalho de checagem sobre as afirmações de Ciro Gomes foi intenso. Nem todas as afirmações e mentiras do candidato foram checadas, uma vez que ele interveio com dados e frases de efeito com fundo em números – majoritariamente, inventados por ele mesmo – mais de sessenta vezes durante a entrevista. Um artigo minucioso sobre todos os pontos levantados pelo candidato, apenas na entrevista, desmistificando-os ou apontando-os como verdadeiros, falsos ou improváveis, não seria de modo algum sucinto, mas cansativo para o leitor. Optei, portanto, em recolher as afirmações mais discrepantes com relação à verdade, esperando outras oportunidades para apontar incongruências do pedetista.

Sou obrigado a conceder que o desempenho do candidato será muito melhor, em termos de qualidade do debate, do que nas suas últimas candidaturas. Em 1998 e em 2002, Ciro Gomes protagonizou episódios de intenso desequilíbrio emocional, ofendendo, xingando adversários, caluniando-os e mentindo — não por acaso, responde a mais de 70 processos por crimes contra a honra, uma prova incontestável de seu cariz boquirroto, irascível, e de sua falta de apego à civilidade. Em 2018, resolveu adicionar ao escopo de suas habilidades políticas, além da agressão, a mentira deslavada.

Particularmente, desde uma análise mais liberal, a política econômica preconizada por Ciro Gomes ao opôr-se ao equilíbrio fiscal, à sanidade das contas públicas, à reforma da previdência, e mesmo a um apego verdadeiro aos números, é muito preocupante em caso de vitória. Suas constantes afirmações de que elevará impostos, taxará doações e grandes fortunas, e mesmo criará mais impostos, como um novo imposto sobre transações financeiras e sobre dividendos, como afirmado mais de uma vez durante sua participação no Roda Viva, levam a crer que ampliar-se-á a evasão fiscal e a fuga de investimentos do Brasil.

É um grande mistério, também, como o candidato comprará a dívida pública do Brasil, conforme pontuou durante a entrevista, sem fazer qualquer renegociação. Sobretudo considerando que manterá subsídios sobre o combustível, recomeçará um processo de estatização da Petrobrás, e praticará intenso populismo fiscal, como demonstrou durante suas falas.

Ciro Gomes colocou o atual cenário cearense como um grande símbolo do que são as suas gestões eficientes. “O Ceará é o estado mais sólido do Brasil”, afirmou. Então por qual motivo o Ceará não possui os melhores indicadores sociais do Brasil? Por qual razão a miséria, o analfabetismo, a competitividade e a economia do Ceará, que não tem sequer os melhores indicadores gerais econômicos do Nordeste – atrás, por exemplo, da Bahia e de Pernambuco – continuam como são? Fosse a realidade como o quadro pintado por Ciro Gomes, o Ceará estaria hoje mais próximo da Noruega (0,949 de IDH) do que do Vietnam (0,683 de IDH) – que tem exatamente o mesmo indicador geral de desenvolvimento humano do estado que o presidenciável governou, e cuja família comanda.

A qualquer brasileiro que privilegie a sensatez e o bom-senso como boas ferramentas para resolver a crise de legitimidade e de autoridade do poder político nacional, um populista como Ciro Gomes é sinônimo de perigo. Que sua intenção de votos não cresça à razão em que dispara mentiras e exageros, ou entraremos em 2019 no sexto ano da crise política, sob nova direção.

Lucas Baqueiro

Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.

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