O cadáver que não larga o osso

por Emmanuel Santiago (14/05/2018)

Considerações sobre a escravidão em "Memórias póstumas de Brás Cubas".

Quando falamos da prosa realista-naturalista no Brasil, dois nomes costumam vir à mente: Machado de Assis e Aluísio Azevedo — o primeiro, geralmente relacionado a um realismo “puro” (ou “psicológico”), sem traços de naturalismo, já o segundo, considerado um autor tipicamente naturalista. A meio caminho entre um e outro, poderíamos citar, como referência maior da literatura em língua portuguesa do realismo-naturalismo, Eça de Queirós. Tal diagrama, porém, tem muito de enganoso.

O naturalismo é um desdobramento da prosa realista, da maneira como esta se configura a partir de Gustave Flaubert (herdeiro, por sua vez, de Balzac e Stendhal), compartilhando com ela uma série de traços estilísticos, como o descritivismo, a objetividade do foco narrativo e a impessoalidade do narrador, mas adaptados a uma cosmovisão formada pelas correntes cientificistas da época. Portanto, é fácil enxergar uma linha de continuidade que leva de Flaubert, Zola e Eça de Queirós até Aluísio Azevedo. Contudo, Machado de Assis encontra-se deslocado aí. Mesmo se tratando de um “realista puro”, como pretendem alguns, o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas não parece estilisticamente mais próximo de Flaubert do que Eça ou Azevedo, e isso acontece porque, embora seja possível observar influências de Balzac na escrita de Machado, ele se filia a uma tradição narrativa não de origem francesa, mas inglesa, vinculada ao romance pré-romântico inglês (ou romance humorístico inglês), como a propósito se lê no prólogo de Memórias póstumas…:

Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.

“Obra difusa” e “estilo livre” são expressões que remetem à narração digressiva de Tristram Shandy (1759), romance de Laurence Sterne, incorporada por autores como Denis de Diderot, Xavier de Maistre e, na literatura portuguesa, o Almeida Garret de Viagem na minha terra. Em Riso e melancolia, Sergio Paulo Rouanet procura demonstrar como Memórias póstumas… se insere na linhagem da “forma shandiana”, caracterizada pelos seguintes aspectos: “(1) pela presença constante e caprichosa do autor, ilustrada enfaticamente pelo pronome em primeira pessoa (‘eu, Brás Cubas’); (2) pela digressividade e pela fragmentação (obra difusa, não-linear); (3) pelo tratamento especial, fortemente subjetivo, dado ao tempo (os paradoxos da cronologia) e ao espaço (as viagens); e (4) pela interpenetração do riso e da melancolia”. Tais aspectos constituem um modelo diverso do que se verifica na escola realista-naturalista, principalmente no que se refere ao papel central concedido à subjetividade do narrador na apreensão e na condução do enredo.

Para demonstrar a diferença entre a obra machadiana e a matriz romanesca do realismo-naturalismo, proponho a comparação entre Memórias póstumas de Brás Cubas (1880) e O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, no tratamento do tema da escravidão. Azevedo foi um intelectual publicamente comprometido com a causa abolicionista. Já em seu segundo livro, O mulato (1881), o escritor denuncia a brutalidade do regime escravista e o racismo da sociedade brasileira. N’O cortiço, a crítica à escravidão fica por conta da personagem Bertoleza, escrava de ganho lograda por João Romão, de quem ela se torna amásia, e que, quando o português pretende se casar com Zulmira, é entregue à família de seu senhor, induzindo-a ao suicídio. Nos parágrafos finais do romance:

(…) Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras, no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.

Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.

Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.

— É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a segui-los. — Prendam-na! É escrava minha!

A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.

Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.

E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.

João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.

Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.

Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

Bertoleza, diante da iminência de perder a liberdade que imaginava ter conquistado, prefere tirar a própria vida. Sua liberdade, no entanto, era duplamente ilusória: não só porque sua carta de alforria havia sido forjada por João Romão, como também porque, na prática, vivia como escrava ao lado do português, que a explorou avidamente até que ela se tornasse um empecilho a seu projeto de ascensão social. Além disso, há uma ironia dos fatos: enquanto o cadáver de Bertoleza permanecia na cozinha, João Romão estava prestes a receber uma homenagem pelo seu apoio à causa abolicionista (o que fazia parte de sua estratégia de obter prestígio social). Azevedo nos fala de uma adesão hipócrita à abolição, no momento — no qual se passa a história — em que a crítica ao regime escravocrata se tornava consenso entre a opinião pública.

O autor, contudo, não era imune às contradições de seu tempo. Apesar de sua denúncia dos malefícios da escravidão e do sofrimento da população submetida a tal regime, Azevedo não necessariamente postulava uma igualdade entre negros e brancos, impregnado que estava do racismo científico de sua época, cuja influência era decisiva na literatura naturalista. Dentre as várias passagens que o demonstram, basta apenas uma:

(…), mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes. (grifos meus)

Em Memórias póstumas…, por outro lado, se não temos a influência das correntes cientificistas de seu tempo (nas duas ocasiões em que Brás Cubas faz uso de argumentos deterministas, ele o faz de maneira cínica), tampouco encontraremos uma crítica à escravidão de maneira tão direta e explícita quanto em O cortiço. Pela ausência de uma denúncia contundente do regime escravista na obra do autor, muitos críticos posteriores acusariam Machado de Assis, inclusive por sua condição de descendente de escravos, de absenteísmo e alheamento das questões sociais. No entanto, estudos recentes não só têm apontado a presença constante, ainda que difusa, do tema na obra machadiana, mas também resgatado a atuação de Machado junto à Secretaria da Agricultura, expedindo pareceres sempre favoráveis aos escravos nas consultas relacionadas ao cumprimento da Lei do Ventre Livre, como vemos em Machado de Assis: historiador, de Sidney Chalhoub.

Um dos episódios mais significativos em que o tema da escravidão aparece em Memórias póstumas… está no capítulo LXVIII, “O vergalho”. Brás Cubas vinha andando pelo Valongo, quando depara com um negro açoitado por outro no meio da rua. Logo, reconhece o negro que empunhava o chicote: era Prudêncio, antigo “moleque” da família Cubas e do qual o protagonista, durante a infância, judiava, montando-o como uma besta. Uma vez alforriado, Prudêncio comprara um escravo e perpetuava o ciclo de brutalidades ao qual fora submetido, o que expressa uma naturalização da violência tanto para o senhor quanto para o indivíduo escravizado. Em suma, estamos falando de um contexto em que o castigo físico contra os subordinados de uma forma geral — e os escravos em particular — era considerado prática comum e aceitável. Brás Cubas intercede a favor do negro fustigado e Prudêncio, reassumindo sua atitude servil diante do antigo senhor, aquiesce:

Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

— É, sim, nhonhô.

— Fez-te alguma cousa?

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, em quanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

O cenário do episódio, o Valongo, não é uma escolha casual, pois o cais ali localizado foi a principal porta de entrada de africanos no Brasil até 1831. A passagem, por si só, já é violenta, mas tal violência adquire contornos simbólicos devido à forma como Brás Cubas a narra. Vejamos as conclusões que o narrador tira do ocorrido:

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (grifos meus)

Para Brás Cubas, a cena resumia-se a um “episódio gaiato”, engraçado, e o ex-escravo, que apenas reproduzia a violência das relações sociais em contexto escravista, é visto como alguém de pensamento sutil. Na percepção do narrador, o capítulo é uma piada, mas, da perspectiva do narrador implícito da cena — quer dizer, da consciência autoral configurada objetivamente na obra —, o que temos é uma crítica à mentalidade da elite patriarcal-escravocrata representada pelo protagonista, uma elite insensível ao sofrimento dos escravos. Não mostrando qualquer arrependimento quanto aos abusos que infligia a Prudêncio quando criança, Brás Cubas, ao interromper o açoitamento, certamente não age movido por caridade. Ao que parece, o problema está no fato de a punição física, rotineira no ambiente doméstico e no universo do trabalho, invadir a via pública, rompendo com uma regra — tacitamente compactuada pela classe dos proprietários — que prescreve a discrição sobre o assunto, no momento em que tal classe tentava se adequar ao figurino liberal da burguesia europeia. Prudêncio, que não pertence a essa classe, rompe com a lei do silêncio, causando escândalo desnecessário.

Outra referência à escravidão pode ser encontrada na ambígua e irônica defesa feita por Brás Cubas de seu cunhado Cotrim (no capítulo CXXIII, “O verdadeiro Cotrim”):

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único facto alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.

Além de justificar a selvageria do cunhado contra os escravos (isentando-o de culpa por meio de um conveniente argumento determinista), o narrador (inadvertidamente?) traz à tona uma informação até então desconhecida: Cotrim enriquecera “contrabandeando em escravos”. Ora, sabemos que Brás Cubas nascera em 1805; no capítulo XXV, depois de já formado e tendo voltado ao Brasil, refere-se a Cotrim como “bom rapaz”, o que permite inferir que Cotrim não podia ser muito mais velho do que Brás Cubas, sendo que o próprio protagonista, àquela altura, devia contar com quase vinte cinco anos de idade, por volta de 1830. É de se supor, então, que a fortuna com a venda de escravos tenha sido amealhada depois de sancionada a primeira lei brasileira que proibia o tráfico negreiro internacional, em 1831, que não surtira o efeito desejado (pelo contrário, nos próximos vinte anos, o número de escravos desembarcados no Brasil quintuplicaria). A fortuna de Cotrim, além de moralmente discutível, era ilícita, a despeito da conivência do Estado e da opinião pública (não nos esqueçamos de que a personagem contrabandeara “longamente”). Também Brás Cubas parece fazer pouco caso da origem escusa do dinheiro do cunhado, citando-a como que por acaso.

Outra passagem bastante significativa envolvendo a aprovação tácita à escravidão está no capítulo CXVII, no qual Quincas Borba expõe a Brás Cubas sua filosofia, o Humanitismo, paródia de ideias prestigiosas na época de Machado de Assis:

— (…). Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados como único fim de dar mate ao meu apetite.

Sob a perspectiva do Humanitismo, a escravidão se justifica na medida em que serve para saciar o apetite do filósofo, ele próprio uma manifestação particular do princípio cósmico de Humanitas. Poderíamos imaginar tratarem-se, tais ideias, dos delírios inconsequentes de um lunático, sem mais implicações, não fosse um motivo: Brás Cubas adere ao credo humanitista, chegando a conceber um veículo impresso para divulgar seus pressupostos. Não é difícil entender tal adesão, pois o protagonista encontrara aí não apenas um argumento pseudofilosófico à manutenção dos privilégios de sua classe, como também uma moral de conveniência, capaz de dissolver o sofrimento real dos indivíduos escravizados numa abstração universalista chamada Humanitas.

O nome do narrador protagonista oferece indícios sobre a importância da escravidão para o entendimento do romance. O Brás Cubas histórico foi um colonizador português, fundador da cidade de Santos e que governou a capitania de São Vicente. O pai do protagonista dera ao filho o nome dessa figura histórica como forma de sugerir um vínculo de parentesco, ocultando as origens populares de sua família, visto que o avô, originalmente um vendedor de pequenos barris (por isso, o sobrenome Cubas), enriquecera ao se tornar agricultor — artifício prontamente desmentido pelos descendentes do Brás Cubas original. Pego na mentira, o pai do protagonista inventa um antepassado cavaleiro, que arrebatara trezentas cubas aos mouros, numa solução ao gosto medievalista romântico. Isso nos mostra tanto os valores de origem aristocrática da elite brasileira, segundo os quais o comércio era uma atividade indigna de ser exercida pelas classes dirigentes (herança ibérica), quanto o estigma do trabalho numa sociedade em que este era associado à situação do escravo. É o que percebemos no balanço final que o protagonista faz de sua existência:

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. (grifo meu)

Aliás, a “sede da nomeada” (a obsessão pela fama) que o pai infundira em Brás Cubas pode ser interpretada como um desejo de consolidar o prestígio social que sedimentaria o lugar da família junto às elites tradicionais, apagando a condição incômoda de nouveaux riches.

Vê-se que, apesar de a escravidão ser um assunto lateral no enredo, o ethos do narrador protagonista se constitui com base na ideologia de uma classe cujos privilégios se alicerçavam, em grande medida, na exploração da mão de obra escrava (é o caso, por exemplo, do avô de Brás Cubas, que se tornara um bem-sucedido proprietário rural). Tal assunto, portanto, possui uma função central na obra, pois é através da subjetividade ideologicamente informada do narrador que tomamos conhecimento de tudo. No entanto, há uma dimensão alegórica do nome do protagonista que também precisa ser levada em conta: Brás Cubas nos remete a Cuba e Brasil, os dois últimos países do continente americano a abolir a escravidão (em 1886 e 1888, respectivamente); lembrando que o romance foi publicado como folhetim em 1880.

Desde 1850, com o decreto da Lei Eusébio de Queirós, que proibia definitivamente o tráfico de escravos para o Brasil, a emancipação dos cativos era dada certa; a única questão era como isso se daria: se gradual ou imediatamente. Durante as próximas décadas, prevaleceu a ideia de uma extinção gradual da escravidão, a passos lentos, sem solavancos nos direitos de propriedade dos senhores de escravos e no abastecimento de mão de obra nas lavouras. Porém, com a Lei do Ventre Livre, de 1871, promulgada para atender a pressões internas e internacionais, o movimento abolicionista brasileiro entrava em nova fase, mais combativa, passando a contar com o apoio de uma parcela cada vez maior da opinião pública. Ao começo da década de 1880, as expectativas haviam se invertido e o trabalho servil era visto como uma instituição moribunda e obsoleta, em desacordo com a etapa atual da economia capitalista, então em sua fase industrial (conferir A abolição, de Emília Viotti da Costa).

O estatuto de “narrador defunto” assumido por Brás Cubas, assim, parece estar ligado a uma instituição (e a uma ideologia a ela ligada) que, embora morta e enterrada no restante do mundo capitalista, insistia em manter-se de pé por aqui; uma verdadeira voz do além. A elite tradicional brasileira, aos olhos do restante do “mundo civilizado”, talvez figurasse como um fóssil vivo do período mercantilista. Do que se conclui que, embora a escravidão não seja continuamente tematizada no livro, trata-se de uma sombra onipresente, pois, em muitos sentidos, é um fator relevante, com sérias consequências para a forma como o narrador protagonista age, pensa, interpreta os eventos que constituem o enredo e os transmite aos leitores. Ou seja: o tema da escravidão integra-se à estrutura da obra, ao passo que em O cortiço, em que aparece de maneira mais direta e explícita, trata-se de um elemento que permanece à superfície do texto.

Por meio do tratamento de um assunto específico — a escravidão —, percebe-se que a prosa realista-naturalista e o romance machadiano são regidos por diferentes lógicas narrativas. Na obra de Aluísio Azevedo, há uma abordagem objetiva dos componentes temáticos do enredo, vinculada a uma noção de impessoalidade, com base na qual o realismo-naturalismo, nas palavras de Roland Barthes em “O efeito do real” (ensaio presente em O rumor na língua), procura criar uma “ilusão referencial”, como se o que está sendo narrado correspondesse à realidade empírica, apagando os contornos da elaboração ficcional do conteúdo.

Já em Memórias póstumas…, não só existe o elemento da subjetividade integrado à construção do foco narrativo, como também há que se levar em conta o discurso narrativo como construção retórica, o que, em vez de imprimir uma suposta transparência ao relato, leva-nos a considerar as motivações e os objetivos por trás da enunciação. Por exemplo: se, em O cortiço, a morte sanguinolenta de Bertoleza e a ironia final da medalha recebida por João Romão deixam às claras as ideias que o autor quer transmitir, no romance de Machado, é preciso ir além das palavras do narrador, buscando suas virtualidades semânticas de acordo com o contexto maior da obra e seu tom específico. A crítica à escravidão, neste caso, constitui-se por meio da ironia autoral, pois não está dada no discurso do narrador, que em momento algum pondera sobre o trabalho escravo, por isso devemos procurá-la no avesso do que diz Brás Cubas — parte da crítica está, justamente, na maneira natural como o protagonista encara a questão.

Espero ter demonstrado como o discurso narrativo machadiano em Memórias póstumas… constitui-se por meio de expedientes formais e recursos estilísticos bastante diversos da matriz realista-naturalista, à qual se vincula O cortiço. Além disso, a leitura do romance de Machado mobiliza diferentes estratégias interpretativas, exigindo uma decodificação de seus aspectos semânticos. No mais, constatou-se que não há silêncio na obra machadiana sobre o tema da escravidão, mas uma abordagem irônica, difusa porém estrutural, cheia de potencial crítico.

Emmanuel Santiago

Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).

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