Estamos fadados à completa sujeição a quaisquer demandas de grupos organizados.
Na semana em que o Brasil parou, os caminhoneiros ensinaram ao país algumas lições importantes. Aprendemos que não estamos preparados para a menor crise logística. Relembramos que temos o pior modal de transporte possível para um país de dimensão continental e com tantas metrópoles e cidades-médias. Descobrimos que podemos ser feitos de reféns a qualquer tempo por uma categoria organizada, com uma pauta elitista, e obrigados a pagar a conta por inabilidade de um governo em resolver os problemas. E, mais importante: percebemos finalmente que é urgente vender a Petrobras.
A Associação Brasileira de Caminhoneiros (Abcam), no último dia 18, anunciou que associados de todo o país iriam parar na segunda-feira seguinte, no caso da carga tributária sobre o óleo diesel não ser zerada. O preço do litro do diesel tinha sido reajustado por quatro dias seguidos – e subiria mais uma vez, na sequência, ao amanhecer do dia seguinte. O Governo Federal, portanto, teria dois dias de preparação para a paralisação dos caminhoneiros e suas consequências, uma vez que foi avisado da data e hora em que começaria. Nada foi feito, com exceção única de uma ação movida pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Paraná, deferida pela Justiça Federal, cujo pedido foi o de que se proibissem bloqueios de rodovias federais nos estados.
Como se fosse surpresa, na segunda-feira seguinte, 21, caminhoneiros bloquearam estradas na maior parte dos estados da federação. Adiante, houve uma verdadeira corrida aos postos de combustível em todo o país, na certeza de que a crise iria se prolongar. Estavam certos os que encheram o tanque e levaram galões: hoje, cinco dias depois do começo da greve (ou locaute?) dos caminhoneiros, quase não existe combustível disponível em postos.
Um verdadeiro caos se instalou no país. Frotas de ônibus das principais metrópoles estão na garagem, sem óleo diesel para circular. O abastecimento de água está ameaçado a partir de domingo em quase todas as capitais e cidades-médias, por falta de insumos para tratamento. Hospitais em inúmeras cidades suspenderam cirurgias eletivas, por falta de oxigênio. Em parte dos supermercados, a compra de produtos está limitada por pessoa, coisa que não se via desde a presidência de José Sarney (1985-1990). A produção rural e industrial está quase completamente parada. Cenas de produtores despejando milhares de litros de leite fora viraram comuns nas televisões. O prejuízo é gigantesco.
Somente agora, na proximidade do caos se instalar, é que o sempre muito eficiente Estado brasileiro resolveu tomar alguma ação. O presidente da República, Michel Temer, depois de ceder parcialmente à chantagem de caminhoneiros e donos de transportadoras – que, logo adiante, descumpriram sua parte no trato – emitiu um decreto de garantia da lei e da ordem, permitindo ao Exército desbloquear rodovias no país.
O caos gerado pela crise dos caminhoneiros pode se aprofundar ainda mais nos próximos dias. Ademais, estamos fadados à completa sujeição a quaisquer demandas de grupos organizados – inclusive, as mais prejudiciais possíveis para a estabilidade de todos – depois da dura lição dada pelos caminhoneiros ao Estado e à inerte sociedade, que servirá de exemplo. Não se antevê um futuro de avisos inócuos, como no famoso cartaz que diz: “greve geral dos artistas plásticos: o Brasil vai parar”. Dessa vez, o Brasil parou de verdade, à semelhança do que cantava Raul Seixas em “O dia em que a terra parou”, e parará outras tantas, até resolver seus problemas mais urgentes.
Vamos dançar conforme a música sempre porque a grande tônica do brasileiro é a lei de Gérson, a que diz que “devemos levar vantagem em tudo na vida”. Qualquer categoria profissional brasileira quer se beneficiar indiscriminadamente, em detrimento do resto da população. É o caso dos caminhoneiros que exigem do Estado zerar completamente a tributação sobre o óleo diesel ou que esse seja subsidiado, como nos tempos do governo da presidente Dilma Rousseff. Quem paga o custo do subsídio do óleo é o resto do país, tal como estamos tardiamente pagando o que foi praticado na gestão passada do Governo Federal. Termina virando um verdadeiro programa de transferência de renda às avessas: dos pobres, que pagam impostos cada vez mais escorchantes, para os ricos donos de transportadoras e os caminhoneiros autônomos, que não têm exatamente os piores vencimentos em comparação ao resto dos trabalhadores – mas muito acima da média.
Estaremos sujeitos a que isso se repita pelo nosso preciosismo em manter uma Petrobrás estatizada, que nos gera muito mais passivos do que renda. Não há competição com relação ao preço do combustível no Brasil, uma vez que essa estatal monopoliza a extração e refino de petróleo em todo o território nacional. E, pior: o Governo Federal pode fazer ingerências sobre os preços do combustível e subsidiá-lo sempre, tal como mui sagazmente decidiu fazer o presidente Michel Temer em atenção à extorsão dos caminhoneiros de todo o Brasil: repetindo, quem pagará a conta desse subsídio somos nós.
Não é sequer praticável subsidiar combustíveis, diante de um déficit primário projetado de R$ 139 bilhões de reais para 2018. Em suma, esse déficit significa que, apenas para esse ano, deixaremos uma conta de R$ 139 bilhões de reais para pagar mais adiante – através, é claro, de impostos, que não terão o devido retorno mais adiante, uma vez que essa é uma conta passada. Grossa parte desse déficit é gerado pela previdência social, que corresponde a 57,1% dos gastos do orçamento da União, e que o Congresso recusa-se a reformar; outra grande parte vem da folha de pagamento do funcionalismo público, que consome 12,6% desse montante – e que nem por um segundo cogita-se diminuir, com a perda de estabilidade de servidores e um muito justo arrocho salarial, haja vista de que o funcionalismo público federal ganha, em média, 67% a mais do que o funcionalismo privado.
Em suma: além de vender a Petrobras, para que o imenso passivo gerado por subsídios a combustíveis, salários altos, além da corrupção praticada ao longo de muitos governos, que gerou um imenso prejuízo à petrolífera estatal, é preciso correr mais adiante. É preciso reformar a previdência com urgência. É preciso reformular o serviço público nos três poderes, para que deixemos de manter uma aristocracia com privilégios muito acima dos direitos básicos do resto da população, coisa que não se via sequer nos tempos do Império ou mesmo do Reino de Portugal.
O problema é que os presidentes que têm se sucedido ao longo dos anos, imbuídos de zero responsabilidade, têm empurrado esse imenso problema com a barriga. E, na iminência de um grave problema como esse caos gerado pelos caminhoneiros, encontram sempre saída no populismo fiscal, sem pensar por um segundo em como espetacularmente essa bolha irá estourar mais adiante, em tempo incerto, mas próximo.
Além dessas questões, há também a imbecil opção que fizemos pelo modal rodoviário como meio logístico. Resolvemos desmantelar e sucatear as ferrovias, modo muito mais eficiente de transporte de bens e de passageiros. Nas grandes metrópoles, a malha metroviária é insuficiente, com a mera exceção de São Paulo, que tem uma situação mais amena com relação ao resto das capitais e grandes cidades do país. Por isso, uma parte substancial da população brasileira está trancada em casa, sem gasolina para sair, sem acesso ao sistema de transporte público via ônibus (que está reduzido em quase todo o país, por falta de óleo diesel), sem poder viajar – porque quase não há trens de passageiros com viagens de longa distância, com a salutar exceção da Estrada de Ferro Vitória a Minas, que opera num trecho muito pequeno do território nacional.
Contamos, ainda mais, com a espetacular ineficiência do Governo Federal em lidar com os bloqueios de estradas por caminhoneiros e, ademais, com o impedimento do exercício do fundamental direito de ir e vir. No primeiro momento – e não dias depois, com o caos já instalado – as forças federais deveriam ter dissolvido os bloqueios de estrada no país todo, aplicado pesadas multas, e inclusive, detido os piquetistas. Hoje, depois de emitido um tardio decreto de garantia da lei e da ordem, as Forças Armadas sequer têm combustível para ir até os bloqueios, numa verdadeira prova de que estamos completamente reféns.
O direito de greve e de paralisação dos caminhoneiros é muito legítimo – apesar da suspeita de lockout gerado por donos de transportadoras, principais beneficiários da paralisação. Todavia, não só é ilegítimo, como criminoso, o bloqueio das estradas e o ato de forçar a adesão obrigatória de caminhoneiros que não pretendiam aderir. E tudo isso, registre-se, não para benefício da população, mas para que o resto dos brasileiros paguem por maiores lucros para transportadoras e caminhoneiros autônomos. 58% dos caminhoneiros trabalham com carteira assinada; outros 15% trabalham sob contrato para transportadoras. Apenas 27% dos caminhoneiros, afinal, são autônomos e arcam com o preço do óleo diesel. Isso demonstra com grande clareza que a conta do subsídio ao combustível, que será paga pelo povo, repito mais uma vez, o será em benefício de grandes empresários. O que é tradicional, aliás, no Brasil: o grande empresário é desonerado e o microempresário paga por ele; a renda é transferida de baixo para cima, e não de cima para baixo como deveria ser.
Tudo só tende a piorar, tanto nessa paralisação, quanto nas futuras. Não experimentamos ainda os efeitos totais da nossa completa dependência do modal rodoviário. Mais a frente, se a greve persistir – e não é preciso bola de cristal para sabê-lo – o comércio ficará fechada, por falta de estoque, de mão-de-obra (trancada em casa) e de consumidores; nas cidades ver-se-ão esquinas amontoadas de lixos; os hospitais irão parar, por falta de oxigênio, medicação e profissionais para atender; e o crime tomará as ruas, já que a polícia não conseguirá estar nas ruas. Mesmo que a paralisação ceda nos próximos dias, demoraremos muitos outros para conseguir voltar à completa normalidade.
O prejuízo para a economia do Brasil é incalculável. Maior ainda é o dano gerado pelo fato de que os caminhoneiros ensinaram às outras categorias o caminho das pedras da extorsão. Os sindicatos devem ter aprendido, finalmente, a menos que formados por equinos de grande cavalgadura, que longas assembleias, cirandas, espalhar cartazes, e listas de exigências com pautas tais como “uma Palestina laica e independente”, não são exatamente uma forma eficaz de lograr êxito. Noves-fora, ainda resta o aprendizado de que o Governo Federal, seja quem for o seu chefe de momento, nunca estará pronto para responder da forma mais benéfica para a população, mas somente a que gere menos rugas para a delicada cútis da classe política.
Só resta o clássico apelo do grande gângster Eduardo Cunha, diante dessa pintura horrorosa e surrealista, o Brasil de 2018: “que Deus tenha misericórdia dessa nação”.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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