O que poderíamos esperar da presidência de um sujeito que compara matar e torturar a educar um filho?
Na última quinta-feira, 10, o Brasil soube que as execuções de presos políticos durante o período da distensão na ditadura militar tinham aval do presidente Geisel. Um memorando do diretor da CIA, William Colby, ao secretário de Estado americano Henry Kissinger, datado de 1974, ganhou relevância midiática. No texto, é detalhada uma reunião em que o presidente Ernesto Geisel, recém-empossado no governo, define uma nova política para os assassinatos do regime militar. Dali a frente, a política de execução indiscriminada do seu sucessor, Médici, seria descontinuada. Os assassinatos deveriam ter o aval pessoal do representante do presidente, general João Batista Figueiredo, chefe do SNI, e que o sucederia na presidência da República em 1979.
O relatório foi surpreendente porque, até aqui, via-se Ernesto Geisel como um indivíduo moderado. Afinal, o presidente Geisel foi o promotor da abertura do regime militar, que culminou com a aprovação da lei da anistia. O mesmo Geisel, por exemplo, afastou o comandante do II Exército, general Ednardo d’Ávila Mello, depois da execução de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho nas dependências do seu comando. Entendia-se que existia tortura e assassinatos durante o período, mas eram excessos que não contavam com aval pessoal do presidente. Ledo engano.
Como colocou brilhantemente Paulo Roberto Silva em seu artigo “Não houve ditabranda”, aqui na Amálgama, “falhamos como país. O regime militar passou incólume, os facínoras morreram em camas quentes”. Não há razão para comemorar no fato de que presidentes da República deram sistematicamente licença para matar cidadãos, como se bois prontos para o abate fossem. É imperdoável o crime que se cometeu contra a humanidade durante o regime militar. Digno de muita vergonha, aliás, que na presidência da República tenha se sucedido uma longa cadeia de assassinos que valeram-se do cargo para executar pessoas – cadeia que começou com Floriano Peixoto e seguiu adiante.
Não é o que pensa, todavia, o deputado Jair Bolsonaro, candidato à presidência da República. Para o capitão da reserva, que há sete mandatos defende os feitos e excessos do regime militar, as execuções de presos políticos eram uma bobagem. “Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”, disse o presidenciável em seu comentário sobre as revelações a respeito dos assassinatos com aval do presidente Geisel.
Para o deputado, a longa lista de crimes cometidos pela ditadura é um mero corretivo em maus filhos.
É comparável a um tapa no bumbum mutilar pessoas, arrancando mamilos ou esmagando os testículos com um alicate. Deve beirar a normalidade enfiar o sujeito numa geladeira, nu, alternando entre frio intenso e calor forte, com sons ensurdecedores tocando em alto-falantes, por muitos dias. É justificável aplicar choques elétricos no corpo e em cavidades, como ânus, uretra, ouvido, narinas, boca, amarrado a uma cadeira de ferro, em múltiplas doses. É compreensível enfiar no ânus ou na vagina de um preso canos, com ratos, insetos e outros animais dentro. É aceitável espancar e ameaçar de estupro uma mulher grávida, como fizeram a Míriam Leitão. É uma lição branda estuprar, na frente do preso político, como método de tortura, mulher, mãe e filhos, por soldados ou, pior, por cachorros. Faz parte da educação torturar, como se adulto fosse, um bebê na frente do pai por quinze horas. É natural esmagar a cabeça do preso com um torniquete, até gerar um traumatismo craniano ou matar, fazendo os olhos saltarem de órbita.
Entre as reprimendas legítimas, no entendimento de Bolsonaro, estão: fuzilamentos simulados; fuzilamentos de verdade; tiros à queima-roupa, de pistola ou de submetralhadora; assassinato por espancamento, como fizeram a Rubens Paiva; assassinato por afogamento, seja em baldes d’água, com panos molhados, em rios ou em alto-mar; assassinato por asfixia, muito diversificado, podendo ser feita inclusive com gases tóxicos, com a boca do executado sendo colocada junto a um escapamento de carro; assassinato por defenestração, jogando o preso de uma janela alta, para morrer com o impacto da queda; assassinato por desmembramento, como fizeram ao padre Antônio Henrique Pereira Neto, secretário do arcebispo D. Hélder Câmara, que, na pior das indignidades, ainda foi castrado; assassinato por sepse, quando presos eram largados em cela com feridas abertas, para que apodrecessem; assassinato com ácido, lançando no rosto, ao longo do corpo, ou inteiramente.
Em se tratando de educar seus filhos com “tapinhas no bumbum”, o regime militar era bastante criativo na forma de matar.
Jair Bolsonaro é o sujeito que saúda ardorosamente o torturador – ou educador, quem sabe? – Carlos Alberto Brilhante Ustra, que infelizmente morreu sem ser devidamente punido pelos seus crimes. Jair Bolsonaro é o sujeito que justifica a tortura e as execuções extrajudiciais como um meio de combater o terrorismo e o comunismo, como fez à sequência de sua declaração.
É verdade que os grupos de guerrilha não lutaram, nem por um segundo, pela redemocratização do Brasil. O objetivo, afinal, como expôs Fernando Gabeira – ele mesmo ex-guerrilheiro, participante do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969 – era promover uma revolução socialista, que levaria a uma ditadura. Não se pode negar que esses grupos, no juvenil afã de trocar um regime ditatorial por outro, praticaram terrorismo, sequestraram, roubaram e mataram – de forma cruel, inclusive, como se deu a execução a sangue frio do tenente Alberto Mendes Júnior, pelas mãos de Carlos Lamarca. Sabemos também que é prática, como é fartamente documentado, as execuções em massa em regimes socialistas.
Mas, afinal, o remédio para a carnificina é a própria carnificina? O que diferencia um regime que mata de outro regime que mata? Não há palavra para qualificar o ato de torturar e executar seres humanos em nome de um bem maior, ainda mais quando não há diferença entre o bem e o mal. Não se pode perceber, salvo por uma visão cosmética, diferenças entre o regime militar brasileiro e o comunismo que lhe era antagônico, em se tratando de respeito aos direitos humanos, à liberdade de expressão e de organização.
Se eram criminosos e terroristas, que fossem presos e julgados. Se não havia o menor respeito pela dignidade humana, que fossem simplesmente condenados à morte, na letra da lei – como foi condenado Teodomiro Romeiro dos Santos, que terminou nem sendo executado, e ainda hoje vive, como juiz aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região. Não é aceitável, em hipótese nenhuma, salvo a de sadismo, sevícias e execuções bárbaras como política repressiva.
É totalmente inaceitável usar de violência contra criminosos rendidos e presos, ou contra quem quer que seja. Mas, a tortura e os assassinatos não se limitaram a pessoas que cometeram crimes reais, como sequestros, homicídios e latrocínios. O regime militar também torturou e matou gente inocente, que não tinha absolutamente conexão nenhuma com algum crime real. O fez, aliás, consciente da inocência, com o objetivo de violentar psicologicamente um terceiro. A ditadura incluiu no rol de subversivos a receber o devido (e desumano) corretivo gente que cometeu crimes que Bolsonaro configura como terríveis, como se manifestar contra ela, participar de passeatas, ou discordar do regime. Ou, crime muito pior: o de ser filho, neto, ainda que recém-nascido, de um inimigo do Estado.
Não se pode nem sequer usar a triste expressão do arcebispo D. Geraldo de Proença Sigaud, de indignidade surpreendente para um religioso, de que “confissões não se conseguem com bombons”. A tortura, como método de obter a verdade sobre crimes, é ineficiente. Sob violência, qualquer sujeito está disposto a entregar o que não existe. A existência dessas práticas provam a especial incompetência da ditadura militar no que Jair Bolsonaro se orgulha: a repressão.
O que poderíamos esperar da presidência de um sujeito que compara matar e torturar a educar um filho? Alguém confiaria num indivíduo desses para tomar decisões importantes sobre a vida alheia?
O Estado, que tem um grande aparelho repressivo, não pode ser chefiado por alguém que manifesta a todo o tempo o maior desprezo aos direitos humanos. Afinal, até o mítico cidadão de bem está sujeito a ser transformado – por imperícia, maldade ou inimizade da autoridade com licença para matar – em bandido sem sê-lo, como muito aconteceu nos regimes ditatoriais brasileiros que se sucederam desde 1889. E “bandido bom”, como afirma Bolsonaro, “é bandido morto”.
Um indivíduo que admite a desumanização do outro como natural é uma ameaça para a liberdade.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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