Por que não podemos esperar que o Novo seja um dos grandes players políticos da próxima legislatura.
Toda vez que vemos eleitores colocando o mau desempenho de seu candidato na conta de jornalistas, a certeza é uma só: o candidato é despreparado. Se o jornalista é tendencioso, incompetente ou enviesado, o candidato tem a obrigação de jantá-los durante a entrevista, explicando didaticamente seus erros e mostrando habilidade política. Ser devorado é um atestado de incapacidade para exercer, afinal, um posto político importante.
Na segunda feira última, 21 de maio, assistimos esse fenômeno ocorrer com João Dionísio Amoedo. O candidato à presidência pelo Partido Novo foi deglutido por jornalistas durante sua entrevista no Roda Viva, tradicionalíssimo programa de debates da TV Cultura. Para os militantes aguerridos de seu partido, contudo, o preparo – ou a falta dele – não foi o fator preponderante para o seu desempenho fraco: a culpa é do programa, da bancada formada por “comunistas”, dos “péssimos” jornalistas que se fizeram presente na discussão.
João Amoedo é, de certa maneira, uma síntese personificada de como pensam politicamente os membros do Partido Novo. A entrevista no Roda Viva demonstrou por que não podemos esperar que o Novo seja um dos grandes players políticos da próxima legislatura, apesar de seu número impressionante de curtidas e interações em redes sociais.
1. Visão política descolada da realidade
O Novo não tem grandes perspectivas num futuro próximo porque o partido – assim demonstrou o seu candidato – não demonstra entendimento ou vontade de participar do jogo político brasileiro. Tampouco entende como funciona o presidencialismo de coalizão, sistema vigente por imenso defeito da Constituição de 88, que descartou o anteprojeto parlamentarista de Afonso Arinos, mas manteve os mecanismos daquele sistema alheio ao nosso.
Durante a entrevista ao Roda Viva, Amoedo falou que tem intenção de montar um ministério com doze pastas, às quais nomeará apenas técnicos, destacando que o seu gabinete não terá a composição de quaisquer indicados de políticos. É preciso que nos perguntemos, diante da possibilidade de um governo assim ocorrer e conseguir chegar ao seu fim: é possível que isso aconteça a qualquer tempo?
Para que um presidente da República possa, no Brasil, escolher os seus ministros e nomear as autoridades da administração pública sem ouvir o Congresso Nacional, só existem duas perspectivas factíveis. A primeira, é que o seu partido faça a maioria qualificada (isso é, três quintos) dos membros do Congresso Nacional, em cada uma das casas, contando com 308 deputados federais e 49 senadores. A segunda, é que a maioria dos membros do Congresso Nacional se comprometa cega e abnegadamente com o projeto político do governo, sem nada exigir em troca, e sem o menor óbice para a implementação das políticas do presidente da República.
Ora, sabemos que é impossível que o Partido Novo logre êxito na tarefa de fazer a maioria qualificada do Congresso Nacional. Nas palavras do próprio João Amoedo, serão 360 candidatos a deputado federal em todo o país. Considerando que o sistema proporcional exige que um bom número de candidatos seja lançado por cada uma das chapas ou coalizões para que, somados os seus votos, seja distribuído o número de cadeiras, a perspectiva de conseguir fazer a maioria pelo menos na Câmara dos Deputados exigiria que cada um dos candidatos do Novo tivesse votação superior ao quociente eleitoral no seu Estado. É uma realidade um tanto quanto distante, posto que nessa legislatura da Câmara dos Deputados apenas 28 dos 513 eleitos o foram com votação acima do quociente. Por sua vez, considerando que na atual eleição estão em disputa 54 cadeiras do Senado Federal, o Novo precisaria vencê-las quase todas, considerando que atualmente não tem nenhum senador; o que não acontecerá, já que o Novo não tem esse número de candidatos a senador, e na maioria dos Estados, sequer registrou candidatura para o posto.
Sem a maioria qualificada do Congresso, de forma muito clara, nenhum partido pode aprovar emendas constitucionais. Grande parte do programa de reformas do Estado que Amoedo apresentou em entrevista, muito en passant, exige larga reforma constitucional.
Para obter essa maioria qualificada, afinal, é que os sucessivos presidentes desde 1989 têm governado em coalizão com outros partidos. Assegurada a participação plural de legendas que virtualmente obtiveram confiança do povo, é que conseguiram aprovar emendas constitucionais, fundamentais para implementar políticas de governo um país cuja Constituição é inchada e constitucionaliza coisas que, alhures, seriam legislação ordinária, infraconstitucional.
A receita que Amoedo apresenta para obter maioria qualificada no Congresso é a de exigir o compromisso dos parlamentares de respeitar o programa de governo. E mais: em dado momento da entrevista, revela que tornará pública qualquer tentativa de negociação, da parte do parlamento, por participação no governo, comandando pastas. Sobra, avaliando bem, ingenuidade em acreditar que o Congresso, de livre e espontânea vontade, formaria coalizão em torno de um presidente apenas porque ele está calçado por uma maioria de votos.
Deslegitima o presidenciável, ainda, o próprio parlamento e sua eleição pelo povo. Põe em maior importância a sua votação para a presidência do que a dos parlamentares, que afinal, foram eleitos também pelas mesmas pessoas. Se o povo elege um determinado presidente, mas um parlamento cuja maioria dos membros é de oposição, pressupõe-se, minimamente, que a intenção é forçá-los a encontrar um denominador comum e coabitarem. Para isso, é necessário que assentem interesses e programas, e que o executivo delegue parte de suas responsabilidades – através dos ministérios – a grupos parlamentares, para que surja uma agenda comum de gestão.
Retirar a legitimidade do parlamento para aprovar, reprovar ou moldar um programa de governo é uma atitude ditatorial. É, buscando um exemplo mais extremado, o que Nicolás Maduro tem feito em sua tirania venezuelana, usando de ordens excepcionais, ao arrepio da Constituição e da democracia, para fazer valer o seu programa. Ou, conhecendo a realidade do presidencialismo de coalizão brasileiro, é fazer uma aposta irresponsável, que Dilma Rousseff e Fernando Collor de Mello fizeram, cada um a seu tempo, com o mesmo resultado: foram apeados da presidência e substituídos por um governo de coalizão, chefiado pelo vice-presidente.
Tratar a divisão do governo entre parceiros programáticos do parlamento como chantagem, além do mais, é demonstrar publicamente desconhecimento do sistema político em que vivemos. Não é um vício nomear ministros vindos de grupos parlamentares, ou por eles indicados: é a naturalidade da democracia. Na atual Alemanha, que é uma das mais sólidas democracias parlamentares do mundo, as negociações entre os partidos políticos para a formação do gabinete da Chanceler Angela Merkel, chefe-de-governo do país, envolveram publicamente quantos ministérios ficariam com políticos da CDU/CSU, seu partido, e quantos ficariam com o SPD, partido que passou a integrar a coalizão. Isso é o natural. O que não é natural é dividir, como o PT e o PMDB fizeram ao longo de anos, o butim do quanto se roubou através de postos da administração público.
No fundo, entendo que João Amoedo não faria uma aposta irresponsável como essas. Nem apelaria para instrumentos de exceção. Entendo, em verdade, que ele sabe que um governo na forma como propõe é inviável: ou não acredita na vitória, e por isso, apresenta um discurso ingênuo para se cacifar minimamente diante dos eleitores, e ao seu partido por consequência; ou, em vencendo, por milagre, ignoraria essa postura e negociaria, sim, fatias da administração pública a novos parceiros de governo, que têm a mesma legitimidade de mandato.
2. Falta de clareza de posições
Em alguns momentos, Rosane Borges, jornalista da Carta Capital, professora de comunicação e militante do movimento negro, questionou o candidato sobre suas posições a respeito da população negra, sua disparidade de renda, e o apartheid econômico e social que ainda vive. Questionou a Amoedo sobre que projetos ele teria, afinal, para resolver o problema. Amoedo limitou-se a usar chavões tirados de discursos de sua militância partidária e de teóricos libertários, como: “quero defender o indivíduo, a menor das minorias”. E sua solução, afinal, para resolver a disparidade de renda, foi: “qualquer problema de discriminação, o cidadão tem de assumir a sua responsabilidade de resolver a situação, e não esperar o Estado dar uma solução” (sic). Instado, pela terceira vez, pela mesma jornalista a responder de modo claro sobre seus projetos a esse respeito, disse evasivamente: “na medida em que conseguirmos proteger o indivíduo, vamos proteger todos os indivíduos, sem separar por critérios de raça”. Foi claro como Dilma em sua louvação à figura oculta, “que é um cachorro atrás”…
Perguntado sobre a descriminalização do aborto, disse que era contra. Perguntado sobre a descriminalização do consumo de maconha, disse que era contra. E tergiversou. Instado mais de uma vez a dizer que solução teria para esses problemas – o de saúde pública que é o aborto clandestino; ou, a falta de segurança pública gerada pelo tráfico de droga; todas essas, razões pelas quais se aventam a descriminalização – respondeu de forma genérica: minha solução é a melhoria da educação básica como prevenção. A prevenção, embora método interessante, não resolve imediatamente o caos do momento, e que continuará certamente pelos próximos vinte anos; mostra frutos, em verdade, apenas na próxima geração. Essa não é uma resposta clara, uma solução para o tema. Amoedo mostrou insuficiência na resposta, ao apresentar um programa para lidar com conflitos que, em maior grau, como o tráfico de drogas e a insegurança nas grandes e médias cidades brasileiras, assolam a nossa vida e nos mergulham em medo.
A maioria dos candidatos tem um programa claro para lidar com a questão. Alguns, como Marina Silva, pretendem deixar a decisão a respeito do aborto e da maconha com a população, através de plebiscitos. Guilherme Boulos pretende liberar o aborto e realizá-lo através do SUS, e liberar o consumo e produção de maconha em território nacional. Jair Bolsonaro, por outro lado, pretende endurecer a repressão ao aborto e executar traficantes de drogas, à la Duterte. Podem ser soluções ruins ou boas, vindas de candidatos que considero particularmente ruins, mas foram eles capazes ao menos de responder com clareza a uma demanda da sociedade por respostas sobre o tema. Muito ao contrário, aliás, de João Amoedo.
Ao candidato Amoedo falta clareza, inclusive, para definir liberdades individuais. Os entrevistadores, um pouco mais espertos, aproveitaram para apertá-lo sobre o contrassenso de seu posicionamento, que dizia valorar as liberdades individuais, e por isso, defender o porte de armas para o cidadão; mas as negava, no caso das drogas e do aborto. No primeiro aperto, Amoedo respondeu que “respeitar a liberdade individual é respeitar o bolso do contribuinte, não utilizando o fundo partidário”, em algo que não tinha absolutamente nada a ver com o tema, e confundiu-a a seguir com liberdade econômica, falando sobre impostos e burocracia. À sequência, disse que acreditava que “o indivíduo deve ser livre para fazer o que quiser”.
Nesse momento, em sequência, foi jantado por três repórteres enfurecidos. “Como o senhor diz que o indivíduo deve ser livre para fazer o que quiser, mas não defende a liberdade individual para o aborto ou para drogas?”, perguntaram Raquel Landim, Rosane Borges e Ricardo Lessa, simultaneamente. Tergiversou Amoedo, respondendo que “não devemos cair na armadilha de transferir responsabilidades nossas para o Estado brasileiro”, sem perceber que ele justamente defende a transferência de responsabilidades para o Estado quanto à política sobre drogas e natalidade, que deveriam, na visão liberal, ser do indivíduo.
À sequência, em um misto de falta de clareza com habilidade para debater, disse: “não nos posicionamos sobre o aborto porque é uma questão polêmica”. E complementou, na sequência, com uma das maiores pedradas que já se ouviu em qualquer debate político: “é que muita gente entende que o nascimento se dá na gestação”. Estava o candidato falando sobre o aborto de humanos ou de marsupiais? Afinal, o nascimento, para quem quer que seja, favorável ou contrário à descriminalização do aborto, se dá no parto, jamais na gestação. Certamente, se confundiu com o debate sobre o começo da vida, num misto de tentativa de sair pela tangente e falar bonito.
Sequer conseguiu responder com clareza em quem votaria no segundo turno, caso não fosse levado pelos eleitores à contenda entre os dois mais votados. Disse, em franca tentativa de responder com vacuidade a uma pergunta importante dos eleitores, que “é muito cedo para avaliar”. Raquel Landim, tentando espremê-lo na parede, foi mais clara, perguntando: “vamos falar de hipótese; se o segundo turno for entre Jair Bolsonaro e um candidato de esquerda, em quem o senhor votaria?”, sendo um pouco mais óbvia e forçando-o a dar uma resposta mais clara. O que Amoedo respondeu? Mais uma vez, “é muito cedo para avaliar”. Nenhuma resposta afirmativa.
Muitos cidadãos cobram dos seus candidatos essa resposta clara, porque ela é fundamental para decidir, inclusive, o destino de seu voto. Tenho absoluta certeza que o eleitorado de Jair Bolsonaro se esvaziaria se esse, respondendo à questão, declarasse voto no Partido dos Trabalhadores. Da mesma forma, Guilherme Boulos perderia cada um dos seus eleitores se dissesse que votaria em Jair Bolsonaro. Por que Amoedo não é capaz de responder?
3. Veste uma roupa que não lhe coube
Nessa entrevista, podemos perceber claramente, à semelhança da fábula “A nova roupa do imperador”, de Hans Christian Andersen, que o monarca está nu. Amoedo se proclama como o único candidato verdadeiramente liberal, como fez em oposição e referência direta a Jair Bolsonaro e a Paulo Rabelo de Castro. Mas, não é, assim como o seu partido, liberal à vera.
Na economia, demonstrou que não está muito em conformidade com soluções verdadeiramente liberais para problemas correntes do Brasil. A respeito da Petrobrás, por exemplo, disse que faria uma privatização meia-boca, parecida com a proposta para a Eletrobrás pelo deputado Fernando Bezerra Coelho Filho (PSB-PE), então ministro de Minas e Energia no governo Temer: o governo teria ações com golden share, tendo o direito de indicar o presidente do conselho de administração da empresa.
Falou, também, em acabar com a desoneração de certos setores da economia, extinguindo isenções de impostos, para fazer receita em caixa. Elevar impostos não é, pelo menos na cartilha em que conhecemos, uma opção inteiramente liberal para nada.
O liberalismo acredita que as menores instâncias, dentro de um país, devem ser mais empoderadas do que as mais altas. Municípios deveriam ter a maior parte das responsabilidades e receitas; o mínimo das atribuições deveria ficar com os estados, e muitas menos com a federação. Todavia, à contramão do melhor receituário, que permite ao povo ver diretamente – e poder interferir! – onde será aplicado seu dinheiro, Amoedo fala em estabelecer um imposto único sobre valor agregado, sob responsabilidade da federação, que adiante distribuiria o dinheiro para os estados e municípios.
Mas, especialmente, nem em costumes, nem em sociedade, Amoedo pode ser considerado liberal. E o admite, dizendo: “sou liberal na economia, mas conservador nos costumes”. Apenas se esquece que isso é uma impossibilidade semântica – ou se é liberal por inteiro, ou não se é liberal.
Tibiamente, Amoedo se recusa a dar ao cidadão o direito de decidir sobre o consumo de drogas, o que é completamente incompatível com qualquer noção de liberdade.
A respeito das cotas para negros, embora se diga contra, Amoedo diz que não as revogaria. Em se tratando do Estado, o liberalismo não admite como princípio a discriminação positiva, preferindo como solução a retirada de barreiras: em vez de cotas, portanto, o liberalismo optaria como receituário os vouchers para a educação superior; e não as admitiria nos processos seletivos para o funcionalismo público. Mas, Amoedo admite que elas continuem existindo, de forma um tanto quanto pusilânime.
Amoedo revelou-se como um conservador, no fim das contas, e não como o liberal que prega ser. Muito por isso, a sua entrevista no Roda Viva foi ruim, e foi verdadeiramente devorado por jornalistas. Oras, esperavam todos, tanto entrevistadores quanto o público, encontrar um candidato com solidez ideológica; frustraram-se todos ao perceber que não há muita diferença entre João Amoedo e muitos outros candidatos, mais além do conceito um tanto quanto abstrato da candidatura anti-establishment.
Fica o desejo de que Amoedo perceba as profundas contradições entre sua posição e o liberalismo, as reveja, abandone a incoerência do “conservadorismo nos costumes”, e tenha mais firmeza política, característica necessária para um presidente da República. Ou, pelo menos, o desejo de que não nos envergonhe nessa eleição, como os outros soi-disant liberais que se colocam no páreo.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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