Como a autora do romance, Margaret também passa parte do seu tempo cultivando interesses humanos entre os menos afortunados.
Quando imaginamos a Inglaterra industrial do século XIX, é quase inevitável em um primeiro momento não pensar nas relações de trabalho pelo viés marxista: grandes industriais enriquecendo às custas de condenar vários trabalhadores a jornadas extenuantes e péssimas condições de trabalho, trabalhadores estes, que não tem outra alternativa a não ser apelar para a proteção dos sindicatos. A realidade, no entanto, é mais complexa do que uma narrativa de vilões e mocinhos. Isso é mostrado muito claramente em um romance da época como Norte e Sul, de Elizabeth Gaskell (1810-1865).
O começo da obra nos faz pensar que se trata de uma história de costumes — a cena inicial se dá nos preparativos de um casamento promissor em Londres. No entanto, com a avançar das páginas a autora presenteia os leitores persistentes com uma bela dose de crítica social e teoria econômica. O romance acompanha Margaret Hale, moça nascida em uma cidadezinha idílica no Sul da Inglaterra. A personagem, que vivia com seus tios, após voltar para a casa de seus pais descobre o Sr. Hale, ministro da Igreja local, resolvera afastar-se de suas funções e mudar radicalmente de vida. Margaret e sua família iriam trocar a tranquilidade do campo pelos conflitos da cidade industrial de Milton do Norte, inspirada na Manchester da época.
A origem sulista da protagonista fornece o distanciamento perfeito para um leitor de nosso tempo; suas impressões sobre as condições de vida em Milton não são tão diferentes das nossas. Ao chegar na cidade, ela se choca com os efeitos da poluição nas casas e ruas, com a morte de jovens por doenças crônicas causadas pelo trabalho nas fábricas, e ainda com a relação violenta entre patrões e sindicatos.
Em Milton, Margaret Hale conhece o industrial John Thornton, que havia contratado o senhor Hale como um professor particular para se educar. Aos 30 anos, havia vencido na vida através do seu esforço e dedicação, após a morte de seu pai, que havia deixado a família cheia de dívidas. As primeiras impressões que ela tem daquele homem não são nada favoráveis: um sujeito duro e sem os modos cavalheirescos que seriam, na opinião da moça, dignos de sua posição social.
O contraste da visão de mundo desses dois personagens aparece várias vezes na história. Margaret nutre desprezo por comerciantes, indústrias e pelos valores do Norte. Já Thornton, não só acha os sulistas pessoas esnobes que vivem despreocupados porque herdam suas fortunas, como também despreza todos aqueles que não conseguiram sair da miséria, como ele um dia conseguiu. Assim, os diálogos entre os dois são de uma riqueza incrível: ela sempre o confronta sobre as péssimas condições de vida dos trabalhadores, e ele, por sua vez, a ensina sobre o mercado de tecidos, o valor do esforço e sua visão sobre a atuação dos sindicatos.
Como a autora do romance, Margaret também passa parte do seu tempo cultivando interesses humanos entre os menos afortunados, e é assim que faz amizade com um trabalhador, Nicholas Higgins, e sua filha Bessy. É a partir dessa relação que a protagonista passa a entender a situação dos trabalhadores e a compará-las com as dos camponeses. Ao ouvir que Higgins desejava tentar a vida no Sul, após ser despedido, ela se deu conta que, embora tivesse vida extremamente dura, dificilmente morreria de fome – como acontecia no campo durante invernos rigorosos.
O ponto alto da história se dá quando uma greve, organizada pelo sindicato dos trabalhadores da indústria de algodão, acirra os ânimos em Milton. Sem que haja acordo, Thornton, tendo contraído dívidas e tendo um prazo curto para entregar sua mercadorias, decide então contratar trabalhadores irlandesesー uma mão de obra mais barata na época. Ao saber disso, uma multidão de trabalhadores enfurecidos, em grande medida devido à restrição alimentar por causa da greve, tenta invadir a fábrica onde estavam Thorton e os irlandeses.
É nesse clímax que Elizabeth Gaskell demonstra sua genialidade. Ela foi capaz de demonstrar, não com um Manifesto como fez Marx, mas com personagens, o quão complexas eram a relações da época. Não há grandes vilões ou mocinhos nessa história. Todos têm seus preconceitos, suas visões de mundo e, em especial, motivos razoáveis para suas ações. Mesmo assim, a relação entre trabalhadores e patrões é mostrada como era: uma relação conflituosa que sempre beirava a violência.
Gaskell, embora não apostasse numa revolução, ou não oferecesse uma solução definitiva, mostra Thornton e Higgins chegando a um nível de compreensão além de um nexo econômico. Se os detentores do poder econômico conversassem com seus trabalhadores e considerassem-nos como seres humanos, ao invés de meros instrumentos de trabalho, isso poderia, não eliminar os conflitos sociais, mas certamente reduziria sua brutalidade. No fim, Thornton reconhece que novas formas de negociação entre administração e trabalho fazem parte da vida moderna; a greve, que levou à falência, era “respeitável”, afinal de contas os trabalhadores dependiam dele pelo salário e ele dependia deles para fabricar seu produto.
Apesar do sucesso de seus livros na época, Elizabeth Gaskell sofreu duras críticas por causa do conteúdo político e econômico de sua obra. Uma das críticas mais famosas foi de Lord David Cecil em Early Victorian Novelists (1934), que afirmou que ela “faz um esforço honesto para superar suas deficiências naturais, mas tudo em vão”. Outra foi de um desconhecido que disse que uma mulher não poderia “entender problemas industriais” e “saberia muito pouco sobre a indústria do algodão”. No entanto, o tempo fez lhe justiça: na segunda metade do século XX reconheceu-se que sua obra foi contra as visões predominantes de seu tempo. E é uma boa janela para conflitos sociais complexos, sendo capaz de oferecer soluções interessantes através de sua protagonista mais madura, Margaret Hale.
Deborah Bizarria
Estudante de Economia na UFPE. Coordenadora nacional no Students for Liberty e liderança no Clube Frei Caneca.