Essa honestidade complexa de Roth aparece, por exemplo, num romance como "O Animal Agonizante".
Você acorda, carrega sua caneca de café para algum lugar, liga um aparelhinho e descobre que morreu Philip Roth. Adeus programação do dia.
Grandes críticos manifestaram opiniões opostas sobre uma mesma obra sua. Que direi eu? Que todos devem estar errados, e que Roth é simplesmente mais complexo do que parece. E que qualquer ângulo pelo qual o enxergamos dá ao mesmo tempo numa visão certa e errada. Eu escolho de Roth, no meio de tantas outras coisas, este aspecto mesmo, o da complexidade, a complexidade de um menino complexado, de um judeu complexado, de um professor complexado. É uma espécie de honestidade revoltada, que eu chamaria antes de frustração. E que é frustração? Bom, é quando a gente gosta secretamente de uma coisa que não deu certo como esperávamos. E fica parecendo que não gostamos. E o pior é que às vezes não gostamos mesmo não. Neste último caso, a frustração se torna autorrepugnância.
Parece que Roth não gosta da cultura americana. Parece que ele não gosta das limitações impostas a um menino judeu na cultura americana. Parece que ele não gosta das limitações impostas a um professor que se comporta como um menino na cultura americana. Parece até que ele não gosta de Deus, como declarou. Mas eu penso mesmo é que ele está profundamente revoltado, frustrado com o fato de que era totalmente possível ser um professor judeu teísta que tem a liberdade de um menino e o humor de um velho sábio livre no meio de uma cultura americana que podia muito bem ser melhor do que é. Isso faz de Roth um escritor suspeito. É um crítico satírico das muitas coisas que não ama, mas é, ainda mais, um crítico das coisa que podia amar. Primeiro, porque ninguém é capaz de boa sátira sem um profundo bom senso. Segundo, porque aí estão as condições para uma crítica de idealismos que não seja cética.
Sim, a cultura americana podia ser bem melhor. E, de fato, no pós-guerra prometeram aos jovens muita coisa que foram incapazes de cumprir. Ainda encontro frustrados idosos, brasileiros da geração de Roth, que foram ex-futuros cantores de sucesso, ex-futuros escritores, ex-futuros libertários. Todos eles são hoje apenas ex-fumantes. E quando algumas dessas pessoas expõem sua revolta e sua frustração, não é que os sonhos delas acabaram. Elas apenas estão cientes de que lhes deram um bilhete premiado falso, como se um bilhete falso pudesse ser premiado. E não estão nos dizendo para desistir de sonhos, como muitos pensam. Estão apenas nos dizendo para desistir de apostar, e talvez tentar de outro jeito, outra vez. E isso é feito, muitas vezes, às avessas, sem meios-termos, com brutalidade, porque querem nos sacudir o suficiente não para despertarmos para uma realidade insípida, mas para acordarmos para os sonhos certos.
Essa honestidade complexa de Roth aparece, por exemplo, num romance como O animal agonizante, que pode ser lido como um contraponto muito exato a um típico romance terrivelmente desonesto, que é o Lolita de Nabokov. Este último não passa de uma autodefesa floreada de um pedófilo insano. Que me importa que H.H. sofra o que ele jura que são legítimas dores do amor? Às favas com isso! Para mim, é um criminoso, que diante de um tribunal usa toda sua retórica de professor e literato, europeu erudito emigrado, a fim de enfeitar a mais infame perversidade. Já David Kepesh, o professor de literatura que se apaixona por uma aluna no romance de Roth, ao mesmo tempo em que colhe os frutos proibidos da revolução sexual dos anos 1960, colhe com eles legítimas dores do amor de que se julgava livre e dono. Kepesh cai aos pés do amor, representado em cenas de intimidade brutais.
Enquanto Nabokov jura que seu personagem criminoso vive um amor legítimo, mas não me convence, embora tenha infelizmente convencido muita gente, Roth finge que jura que seu personagem amoroso vive um amor criminoso e animal. Mas ele agoniza. Eu prefiro a honestidade complexa, a raiva frustrada, do que a perversidade floreada. É assim que leio Roth. Pelo menos a autorrepugnância encerra uma verdade, mas a autoindulgência é puro egoísmo e mentira.
Arthur Grupillo
Jornalista e professor de filosofia da Universidade Federal de Sergipe.