É preciso ter em mente que Peterson fala para o jovem desesperado, à beira ou já imerso no niilismo.
Você não vai ler Jordan Peterson porque ele é de direita e não gosta muito das meias coloridas do Primeiro Ministro do Canadá. Você não vai ler Jordan Peterson porque ele é o “filósofo da testosterona”, como escreveu alguém. Você não vai ler Jordan Peterson porque ler autoajuda é coisa (nas suas palavras) de idiota. Você não vai ler Jordan Peterson porque Maps of meaning (1999) é muito melhor e você não tolera essa coisa de sucesso (alheio). Você não vai ler Jordan Peterson porque Deus me livre ler alguma coisa que me ensine algo e me faça mudar para melhor, não é mesmo?
Uma pena. Porque você deveria ler 12 regras para a vida, de Jordan Peterson. Ler devagar, com a cabeça aberta e principalmente o superego (sim! Você tem um!) ligado. Ler porque, bom, sei que você chegou à maturidade e agora acredita que sabe tudo, mas, vamos combinar, não sabe. Não sei, não sabemos – e infeliz daquele que pensa que sabe! E ler sobretudo para tentar (e, quem sabe, conseguir) entender por que algumas pessoas se deleitam com a própria inveja e ressentimento, enquanto outros… enquanto outros estão lendo autores como Jordan Peterson num esforço para serem pessoas melhores – o que quer que isso signifique.
É, pois, na esperança de que você supere a enxurrada de informações sobre o autor e as reações extremadas de leitores mais xucros, que escrevo este texto. Compartilho algumas impressões para, quem sabe, encontrar um interlocutor, silencioso ou não, numa caminhada mais sábia e pacífica rumo ao fim comum. Vou me frustrar, bem sei, mas não me importo. Simplesmente porque faço o que é o certo.
Antes de entrar nos muitos méritos do livro, talvez seja bom destacar dois problemas do dodecálogo petersiano. Duas ausências que, se não tiram o valor da obra, e não tiram mesmo, me fizeram questionar alguns aspectos da visão de mundo do autor. Uma delas é o humor – e não só no estilo quadradão de Peterson. Ao longo das doze regras, não encontrei nenhuma menção à necessidade do humor, à função deste tipo de linguagem nas interações “de alma a alma” e, por fim, à decadência do humor nestes tempos em que todo mundo se ofende por causa de tudo. Talvez seja uma diferença cultural e o canadense prefira se proteger do frio extremo com uma seriedade que me é incompreensível. Talvez (provavelmente) tratar de humor não coubesse num livro cuja proposta central me parece ser justamente a de encarar a vida com coragem, altivez e… seriedade. E talvez o humor seja algo até pernicioso para quem se norteia pelo princípio do tal “seja preciso em seu discurso”.
A outra ausência é mais complicada (e mais implicância minha mesmo). Num livro que se pretende a um guia para uma vida realmente virtuosa, a ausência de um ensaio que falasse sobre o papel ambíguo da vaidade na formação do caráter, no posicionamento hierárquico e, por consequência, no fomento à dupla ressentimento & inveja – a que dá origem ao homem vil, fraco e inequivocamente perdedor (por mais que tenha assumido aquele cargo lá na Secretaria Municipal do Nada) –, uma ausência assim me parece falha grave. Tal falha talvez se explique justamente pela ascensão rápida de Peterson ao estrelato. É difícil resistir ao canto da sereia representado pela aceitação popular – até mesmo e sobretudo para um intelectual.
Agora que já falei daquilo que vejo como problema só porque sou um chato, convém falar do que é bom, ótimo, excelente e realmente capaz de mudar a vida de alguém – desde que, claro, você já tenha algum estofo para entender as referências de Peterson. Ao longo da leitura, fiquei imaginando como o livro seria (será) compreendido por alguém a quem falte a base cultural sobre a qual se apoiam as doze regras. A oitava regra, por exemplo, é das coisas mais espetaculares que já li na vida, mas também me pareceu quase impenetrável para o leitor comum. Ou eu que sou burro demais mesmo e tive de ler e reler e tresler algumas páginas – o que é sempre uma possibilidade. Da qual, aliás, não me envergonho. Afinal, se tem uma coisa que aprendi com JP é que só o mal acredita não ter mais o que aprender.
Curioso que, nos últimos meses, vi muita gente escrevendo sobre – e somente – a primeira regra do livro – será que ignoraram as outras? Não em surpreenderia. A primeira regra é aquela que fala de hierarquia e de lagostas e da necessidade aparentemente banalíssima de se portar ereto, com os ombros para trás. Isto é, de encarar a vida de frente e expressar coragem. A platitude do conselho, confesso, me desanimou um pouco, mas talvez isso tenha a ver com minha postura diante da vida. Apesar de ter caído em depressão por alguns anos, antes e depois dessa minha estadia no inferno sempre procurei encarar a vida com o porte e a atitude de um lagostão dono do pedaço. Parece fácil, mas não é. Ainda mais nos tempos vitimistas em que vivemos. Mais fácil parece ser assumir alguma ou muitas fragilidades e viver em submissão eterna.
É preciso ter em mente que Peterson fala para o jovem desesperado, à beira ou já imerso no niilismo, aquele ao qual falta uma fé mais substanciosa (algo que vá além do que é dito no púlpito pentecostal) e um sentido mais amplo para a vida. É um público para o qual, por negligência dos pais, do sistema educacional ou até mesmo pela ausência de um Velho Sábio na aldeia, falta justamente o óbvio.
Porque, ora, a rigor todo mundo já sabe que é preciso se tratar bem, ter amigos que querem seu melhor, não nutrir inveja, arrumar o quarto antes de querer arrumar o mundo, almejar algo mais concreto e duradouro, falar a verdade, ser curioso, não desencorajar os outros e agir com um mínimo de ousadia. Todo mundo sabe, mas não custa lembrar. E tanto melhor se formos lembrados dessas verdades universais justamente numa época quando o caos, antagonista de tudo o que está aí, nos é esfregado na cara diariamente. (Deixe de fora o capítulo que fala sobre a educação dos filhos porque acho que ele destoa bastante dos demais).
Como escreveu (ou disse, sei lá), André Gide, frase esta que li nas últimas páginas de uma Reader’s Digest, “tudo já foi dito uma vez, mas, como ninguém ouviu, é preciso que se repita tudo de novo”. Só não espere encontrar em 12 regras o consolo mentiroso de todos os livros de autoajuda que você certamente já leu. Não, você não é especial. E não, o Universo nem sempre conspira a seu favor (embora possa conspirar às vezes). E, por fim, não, um “não” que deve ser tatuado na alma com a mais eterna das agulhas de tatuar: não, você não será jamais a melhor versão de si mesmo, por mais que a Oprah insista nisso. Digo, você deve sempre buscar ser a tal melhor versão de si mesmo, mas também deve saber que jamais alcançará verdadeiramente esse objetivo, sob o risco de sofrer a mais penosa das mortes em vida.
Sei que o doutorzinho canadense está na moda e que toda moda tem um quê de picaretagem. Mais do que ninguém, me incomodam essas “unanimidades” que surgem aqui e ali, de tempos em tempos. E, caramba!, entre uma página e outra reconheço que cheguei a perguntar “quem esse cara pensa que é para me falar isso?”. Mas, amigo, é preciso ser generoso e abrir as portas da alminha que o cotidiano insiste em fechar. Leia Jordan Peterson hoje mesmo e, como eu, resmungue por não ter podido ler algo assim há vinte anos. Leia 12 regras hoje mesmo e, depois, me convide para um café. Merecemos.
Paulo Polzonoff Jr
Tradutor, jornalista e escritor. Autor de O homem que matou Luiz Inácio. Vive em Curitiba.