Em "Três anúncios para um crime", a redenção de Mildred Hayes vem precisamente através de um leve riso.
“Give me a soul that knows not
boredom, grumblings,
sighs and laments, nor excess of stress,
because of that obstructing thing called “I.”
Grant me, O Lord, a sense of good humor.
Allow me the grace to be able to take a joke
to discover in life a bit of joy,
and to be able to share it with others.”
– “Prayer For Good Humor”,
Saint Thomas More
Três anúncios para um crime, já em princípio, se revela quando exibe o livro A good man is hard to find de Flannery O’Connor, nas primeiras cenas. É presságio. O espírito mesmo do filme parece retirado dos contos da escritora americana: o bom e velho sul norte-americano com seus defeitos e suas belezas enfatizados em simultâneo; do racismo caricato à fé mais genuína; e, claro, o tema cristão, cujo fundamento, como bem comprovou Lucas Petry Bender em outro ensaio para este site, é o perdão. Tudo isso traz em si a assinatura de Flannery O’Connor (grande influência, aliás, dos Irmãos Coen, a quem o filme deve muito).
Entretanto, aquilo que mais me intrigou, que é em si uma característica de O’Connor, foi não apenas o fundamento da obra, mas o meio pelo qual ele fora transmitido: o modo com que o diretor aborda a fronteira entre a tragédia e a comédia.
A princípio, trata-se de uma típica tragédia. Pesada, por vezes. A filha da protagonista é não somente estuprada e queimada viva, mas estuprada enquanto queimada viva. O chefe de polícia, portador de câncer, se suicida. O segundo protagonista, policial caricato, racista, homofóbico, tudo de ruim, além de espancar brutalmente um homossexual, é quase queimado vivo. E por aí vai: fatos trágicos que beiram o deplorável sucedem um ao outro em uma trama que, porém, não transmite qualquer peso mórbido.
Da agonia vem o pranto; do pranto, a angústia e súbito, porém, a gargalhada. Por outro lado seria de um reducionismo preguiçoso acusar “humor negro” e parar por aqui. Não – é precisamente o riso que revela o sentido da obra.
Devo ressaltar o porquê de dar tanta importância a essa liberdade que permitiu tanto Martin Mcdonagh como Flannery O’ Connor oscilarem com tanta destreza por entre os gêneros. Hoje em dia tendemos a tomar por garantida essa liberdade. Mas a verdade é que não o é, de forma alguma. Seria impensável esse tipo de oscilação, por exemplo, na Grécia antiga – no mundo clássico*. A comédia e a tragédia tinham um papel um tanto definido entre os gregos. Os homens eram divididos entre os que possuem areté e os que não possuem. O herói trágico é o homem de alma ungida, e o humor é reservado ao resto que não gasta a atenção dos deuses.
Somente em nomes como Shakespeare, Dostoiévski, Cervantes e, claro, Dante, poderemos observar um modo similar de oscilação. E aí está revelada uma diferença por vezes esquecida entre o mundo clássico e o mundo cristão.
Quando no mundo clássico a diferença entre os homens dignos da atenção dos Deuses e os homens medíocres era clara, no mundo cristão isso muda substancialmente. O homem ridículo, baixo, perseguido é, súbito, divinizado, pois Deus vem na forma de um. Por outro lado, César se revela corruptível; a própria justiça se revela falível. No cristianismo, o homem é a um só tempo universalmente salvo pela redenção, e universalmente marcado pelo pecado original.
Além disso, no mundo clássico, os gêneros eram, de certa forma, sacralizados; seu ordenamento vem dos Deuses, e não cabe, pois, ao homem alterar a ordem já posta. Eis que esse ordenamento se revela
falível – portanto maleável –: o que tinha por glória era corrupção e o que tinha por corrupção era glória. Surge, pois, um potencial de liberdade artística nunca antes visto.
Com a nova liberdade entregue ao mundo, hoje abundante e inclusive secularizada, é de intrigar o fato de que, especialmente entre os grandes autores cristãos (como em todos os supracitados), seja observável uma clara preferência pela comédia. O gênero, antes menor, é agora divino, como ironiza Boccaccio ao incrementar o título da comédia de Dante.
Comentando esse paradoxo, W.H. Auden chegou à conclusão de que “a comédia não é apenas viável no mundo cristão, como é também capaz de atingir proporções mais amplas e profundas do que atingiu no clássico”. Ora, em um mundo determinado como o clássico, onde os homens de alma nobre e os de alma baixa já estão marcados, rir do homem baixo só pode servir ora para lembrar o detentor da areté do quão bom é ser quem é – como nos bullyings de escola –, ora para aliviar o homem baixo do fardo de ser quem é. Não indo muito longe do entretenimento em ambos os casos.
Bem, com a universalidade da salvação, tudo muda. Insisto: o homem caído pode tranquilamente levantar-se em poucos minutos. E, no mais das vezes, esse levantar-se, é tão somente o esforço de rir de si mesmo.
É o esforço de reconhecer seus erros como são: piadas. Daí que por vezes o esforço romanesco é justamente este exercício: o de rir de quem se é para deixar de sê-lo. Situar o erro no lugar dele, no inferno, o que é, no fim das contas, cômico. É precisamente isso que faz Dostoiévski em Memórias do
subsolo, por exemplo.
Ora, no filme, a redenção de Mildred Hayes vem precisamente através de um leve riso – o seu único – em uma trama tão pesada. Ela ri de uma piada a respeito de seu próprio rancor, que era, pois, ridículo e injustificável. O policial deplorável e caricato – Jason Dixon – se redime e descobre o perdão; agora estende a mão à sua algoz.
A fidelidade que a trama tem com sua resolução pode dar a impressão de que Martin Mcdonagh deixou o final em aberto por pouco mais que um capricho. Há verdade nessa impressão. De fato, pelo que se tem da trama, não há razão para pensar que eles viriam a assassinar o estuprador aleatório. Por outro lado, a escolha do diretor é precisa. Deixou o final em aberto, pois, assim como na vida, tanto o caído pode levantar-se a qualquer momento, como o redimido pode cair de novo. Não há certeza. Por vezes, quem perdoa, súbito, estará pedindo perdão.
Um homem bom é difícil de encontrar. Porém, um homem bom está por toda parte. À espreita. Dentro de nós esse homem bom já é de difícil encontro. E quem não o encontrou pode vir a fazê-lo ao nascer do sol; perdê-lo no começo da tarde. A esperança de que todos podem encontrá-lo; a consciência trágica de que ele se perdeu de nós. Ambas as vias levam ao perdão.
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P.S.: Para uma explicação mais detalhada acerca do impacto do cristianismo na hierarquia clássica dos gêneros, ver os ensaios Sacrae scripturae sermo humilis e Sermo Humilis de Erich Auerbach.
Pedro Almendra
Estudante. Vive em Teresina.
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