O mapa da crise da universidade pública

por Lucas Baqueiro (21/05/2019)

A direita populista, autoritária e arrogante foi construída, por atos e omissões, por uma contraparte de esquerda com as mesmas práticas de revirar qualquer estômago democrata.

I.

Em qualquer universidade pública do Brasil, a seguinte cena ocorreu ou vai ocorrer neste mês: durante a aula, um aluno militante bate à porta e pede ao professor um minutinho para falar algo importante. Dirigindo-se aos colegas, informa que estão ocorrendo eleições de delegados ao Congresso da UNE, que ocorrerá em Brasília. E, que no dito congresso, debaterão a atual conjuntura de desmonte da educação no Brasil, que começou no governo do “golpista” Temer e que se aprofundou com a posse de Bolsonaro, que quer sucatear e privatizar as universidades públicas. Diz mais uns três ou quatro chavões e, por fim, conclama os colegas a participar de uma reunião preparatória e, quem sabe, a colaborar com o movimento estudantil.

São as mesmas falas repetidas nos últimos trinta anos — é o que qualquer um que militou no movimento estudantil poderá atestar, ora em tom de lamento, ora de sátira. É ingênuo dizer que Bolsonaro pretende privatizar a universidade pública, ainda que dado o devido desconto da necessidade retórica da demonização a qualquer prática com cores de “neoliberalismo”. Hoje, contudo, este discurso de que o governo propositadamente pretende sucatear a universidade pública, que antes era risível (e com toda a razão de ser), agora faz mais sentido do que nunca. A ingenuidade está em pensar no Presidente da República como um ser humano inteligente e capaz de elaborar um sofisticado estratagema para, como um cavaleiro ungido pelo mercado financeiro com a malévola armadura da privataria, vender a educação pública superior. O que acomete Bolsonaro, apenas, é um infantil desejo de vendetta. Só pretende vingar-se da esquerda pela hegemonia de pensamento nas universidades, faltando-lhe um propósito ulterior.

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, bem que tentou ocultar de muitas maneiras o propósito verdadeiro dos cortes na educação pública. Citou, por exemplo, restrições orçamentárias. Estendeu, até, os cortes às universidades públicas de todo o país, no intuito de apagar o incêndio gerado pelo seu sincericídio em 30 de abril. Mas, a primeira impressão que deixou, sem dúvidas, foi a verdadeira: o objetivo era punir as universidades que gerassem “balbúrdia”, escolhendo prioritariamente a Universidade de Brasília, a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal Fluminense, e ameaçando a Universidade Federal de Juiz de Fora. Disse, ainda mais, que estava cortando recursos porque, supostamente, “a universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo”, com “sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus”, revelando o objetivo de sua sanha quase-moralizadora. Quase, é claro, porque os novos critérios estabelecidos para o repasse de verbas para as instituições públicas ferem cabalmente os princípios da moralidade e legalidade da administração pública. Um detalhe irrelevante para um governo tão pueril.

Existe um gigantesco déficit nas contas públicas. O Orçamento Geral da União previa um déficit primário de R$ 139 bilhões de reais, reajustado para R$ 104 bilhões, de acordo com o Ministério da Economia. O ministro Weintraub faz uso de uma meia-verdade — a de que a previdência pública precisa ser reformada — para tentar justificar a arbitrariedade inicial dos cortes, que visavam punir redutos de oposição ao novo governo. A eficiência do gasto nas universidades públicas, per se, é questionável. Mas, o objetivo do Presidente da República e de seu Ministro da Educação não é, de modo algum, repensar o modelo de universidade pública e promover sua sustentabilidade financeira. Tampouco cobrir, com os cortes orçamentários nas instituições federais de educação superior, o rombo da previdência. Como demonstrou Pedro Fernando Nery, o contingenciamento de recursos (neologismo estabelecido pelo Governo Federal para os cortes) da educação federal não cobrem mais do que 0,2% do gasto previdenciário do país.

Os cortes na educação pública superior se deram em despesas discricionárias e bolsas de estudo. Hospitais e clínicas universitárias, que prestam atendimento à população em todo o país, terão atendimento suspenso. Reduzir-se-á a disponibilidade de leitos e cirurgias. Pesquisas importantíssimas para a indústria, para as engenharias, para a medicina, para a veterinária e para a agronomia — que seriam os novos privilegiados, de acordo com Bolsonaro, pela sua “produtividade”, numa reedição farsesca do conflito das faculdades, revelado no homônimo escrito de Immanuel Kant — estão sendo paulatinamente paralisadas. Se a produção científica brasileira é pífia, como bem alegam os apoiadores do Presidente, tornar-se-á ainda menor, mantida a política de cortes: 95% da produção científica no país é feita na universidade pública, como atesta a Academia Brasileira de Ciências.

A universidade pública tem, no Brasil, uma razão de existir. Razão esta, aliás, que não se esposa nos delírios de marxismo cultural propagados à exaustão pelo nacional-populismo errático. Herdamo-lo, sim, do modelo português, que sempre fez a opção pelo ensino superior sob controle direto do Estado — que só foi admitir a instrução pública superior privada bem depois do período colonial, em 1967, com a criação da Universidade Católica de Portugal. Enquanto as vizinhas colônias espanholas, graças à opção de sua Coroa em delegar a educação superior à Igreja Católica, já contavam com universidades no século XVI (como a Universidade de Lima, hoje Nacional de San Marcos, e a Pontifícia Universidade Católica do México, criadas em 1551), o Brasil só foi ter o primeiro curso superior em 1808, com a fundação da Real Escola de Cirurgia da Bahia (hoje, Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia). O modelo português centralizava os estudos universitários em Coimbra e Évora, como modo de dar a el-Rei o condão de direcionar os quadros formados pela educação superior ao serviço do Estado e da Coroa, e não das aventuras privadas. Diligentes em absorver os vícios do estatismo lusitano — e não só estes, visto que a história política de Portugal tem comuns paralelos com a nossa, preservados até a Revolução dos Cravos — resolvemos manter o modelo universitário sob gestão pública, sempre com o objetivo de formar quadros para a administração do Estado.

Embora o liberalismo brasileiro torça o nariz para a universidade pública, esta foi a política universitária concebida desde os tempos em que a costa era Pindorama. Através dela é que alcançamos a excelência, ao nosso modo particular. Com a Reforma Universitária de 1968 (Lei no. 5540, de 28 de novembro daquele ano), e a possibilidade da ereção de institutos superiores privados no Brasil, consagrou-se que caberia às universidades públicas a posição de centro-modelo de excelência no ensino, enquanto às universidades privadas cumpriria garantir o acesso amplo ao ensino superior. Para os estudantes de baixa renda que pleiteassem acesso às universidades privadas, criou-se o Programa de Crédito Educativo (CREDUC), que pagaria as mensalidades, sempre pagas após a formatura. (Sim, não é de Lula ou Fernando Henrique Cardoso a paternidade do FIES: o programa foi criado durante a ditadura, sob Ernesto Geisel, através da Exposição de Motivos nº. 393, da autoria do Ministro da Educação, Ney Braga, chancelada pelo Presidente-Ditador).

O único desvio no padrão de excelência da universidade pública se deu no hiato entre o governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. O primeiro, criou cinco universidades federais. O segundo, seis, para além do REUNI, programa que expandiu a oferta de vagas nas instituições superiores. A razão não era, ao contrário da releitura de verdade estabelecida pelo marketing político, meramente ofertar maior número de vagas de ensino superior público para possibilitar ascensão social. Era, muito mais além, atender à demanda de caciques regionais, que viam na criação de Universidades Federais e Institutos Federais em suas regiões um grande ganho de capital político. Isto relatará, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso nos Diários da Presidência, volume três, quando narra a visita do então deputado federal Osvaldo de Souza Coelho (PFL-PE) ao Palácio do Planalto, em que insistia na criação de uma universidade federal em Petrolina. Outra razão importante para a expansão desenfreada foi a aliança informal entre Lula e a academia: com a criação de universidades públicas, novos concursos públicos para quadros técnicos e do magistério superior abrir-se-iam, gerando enorme crédito político com a classe. Por fim, a deselitização do ensino público com o aumento da oferta de vagas garantiria aos Presidentes — estratégia mais utilizada por Lula, em verdade — o benefício político de dizer que levaram a todo o Brasil a oferta de ensino público, gratuito (sic erat dictum) e de qualidade.

Uma vez que um modelo foi construído lentamente, ao longo de cinco séculos, não é cabível desmontá-lo inteiramente por capricho. A paralisação das atividades em universidades públicas acarretaria uma perda monumental em pesquisas inovadoras de todos os campos da ciência. Não obstante a perda de quadros inestimáveis pelo progressivo sucateamento das instituições superiores — é tristemente célebre a falta de reagentes químicos em laboratórios — teríamos uma nova, e ainda maior, fuga de cérebros. É tudo o que o Brasil não precisa para seu desenvolvimento. O nosso modelo fartamente mostra que é antiquado. Precisa ser reavaliado. Mas, de forma inteligente e que permita às universidades públicas alcançarem padrões internacionais de excelência, contribuindo mais para o progresso do conhecimento no Brasil.

II.

Os gastos com as instituições federais de educação superior são expressivos. Cerca de R$ 49,1 bilhões foram orçados para investir diretamente em 2019, através de instituições públicas, no ensino superior. Algumas universidades chegam a ter orçamentos maiores que o de certas capitais do Brasil, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (R$ 3,91 bilhões), a Universidade Federal Fluminense (R$ 2,26 bilhões), a Universidade de Brasília (R$ 1,89 bilhão) ou a Universidade Federal da Bahia (R$ 1,71 bilhão). Contudo, a maior parte desses recursos não é empenhada em pesquisa, extensão ou manutenção: do total gasto com as 63 universidades públicas do país, R$ 42,3 bilhões são usados em despesas com pessoal ativo ou inativo (professores e técnicos administrativos), o que representa 85,34% de toda a despesa, de acordo com dados do próprio Ministério da Educação.

As universidades públicas não seriam uma exceção às demais repartições públicas do país. Possuem um grande número de técnicos e assistentes administrativos que, salvo raras exceções, têm por regra a ineficiência em serviço. Qualquer egresso de universidade pública pode dar testemunho da verdadeira via crucis que é fazer uma requisição em um núcleo de atenção ao discente, por exemplo: filas intermináveis, atendimento ruim, lentidão em processos simples, são elementos comuns entre estes órgãos e qualquer escritório do DETRAN. A média salarial dos técnicos e assistentes administrativos, com relação aos seus pares na iniciativa privada, é substancialmente mais alta: técnicos cuja exigência mínima para a função é o ensino fundamental completo ou a alfabetização recebem, como salário inicial, desconsideradas as progressões bianuais e outras gratificações, entre R$ 1.326,72 e R$ 2.355,12; os de funções que exigem o ensino médio completo, entre R$ 2.446,96 e R$ 4.023,74; e, os de nível superior, entre R$ 4.180,66 e R$ 8.323,87. Não se trata, portanto — ainda que esta fosse uma desculpa aceitável — de insatisfação com a remuneração. É problema gerado, muito mais, pela estabilidade da função pública e pela falta de avaliação funcional. O servidor que simplesmente bater o ponto e fizer menos do que o mínimo de suas obrigações funcionais receberá, ao fim do mês, o mesmo vencimento do colega que trabalha.

Tampouco os docentes ganham mal, apesar das constantes ameaças de greve por reposição salarial. A média dos salários é perfeitamente compatível com a de universidades em países europeus, como constata a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O vencimento bruto, para professores com doutorado, que são a maioria dos membros da carreira do magistério superior nas universidades públicas, varia entre R$ 11.561,92 e R$ 19.985,24, sem considerar as gratificações. Não raro, ao pesquisarmos no Portal da Transparência, encontramos professores com vencimentos acima do teto constitucional. Não são salários inteiramente absurdos — no caso dos que recebem abaixo do teto, é claro — quando consideramos o fato de que estudaram por 10 anos para obter o grau de doutor, no mínimo. Ainda mais, por serem compatíveis com o de seus pares no exterior, os salários protegem as universidades federais da fuga de cérebros. Outrossim, não há razoabilidade nas exigências por aumento de salário: para manter professores universitários de instituições públicas entre os 2% mais ricos do país, há de se alocar dinheiro que serviria para pesquisa, manutenção predial e bolsas de estudo.

Quanto à pesquisa científica no Brasil, esta não tem a mesma qualidade do que a de suas contrapartes no estrangeiro. Raros são os artigos publicados em revistas de primeira linha. Poucos são os laureados por instituições universalmente reconhecidas. Como o ministro bolsovique da Educação apontou, não temos sequer um Prêmio Nobel. Os professores, porém, não podem ser culpados pelo baixo retorno do investimento público, apesar de seus salários: fazem o que podem dentro da estrutura deficiente e precária fornecida pelas universidades e custeiam, muitas vezes, suas pesquisas e pesquisas de alunos. Além do mais, não existe, dentro das universidades públicas, a figura do pesquisador exclusivo: todos têm de atuar na docência, ensinando na graduação e na pós-graduação, o que impossibilita o enfoque na pesquisa científica. Seria possível abrir espaço para a dedicação à pesquisa em tendo a universidade pública uma fonte externa de receitas, extraordinária à verba pública.

A grande culpada pelo baixo orçamento de pesquisa no Brasil é a cultura de rejeição à iniciativa privada, presente do Oiapoque ao Chuí. Mera sugestão de abertura ao endowment — sistema de doações, que devem constituir patrimônio e serem utilizados para um fim, abrangente ou específico — gera especial furor nas universidades públicas. O corpo discente e docente, ao ouvir uma explicação do que se trata, diz que isso é objetivamente privatizar ou mercantilizar o ensino público, ou submetê-lo a empresas para exploração. Foi este, por exemplo, o caso do Museu Nacional, que pertence à UFRJ: a universidade negou-se a aceitar o estabelecimento de um endowment para aquela instituição, porque o fundo seria administrado por uma organização social. A Universidade de São Paulo, estadual, tentou criar um programa de doações de membros da comunidade acadêmica e externa para reformar os seus prédios, por sua vez: em troca, as alas reformadas ou construídas receberiam placas com o nome dos doadores. A comunidade universitária não apenas rejeitou o programa (preferindo as instalações sucateadas, evidentemente), como também protestou contra as placas.

Hoje, as burocráticas universidades públicas praticamente impedem a doação de recursos por ex-alunos ou empresas. Se o objeto da doação for dinheiro, por exemplo, não há nenhuma garantia de que o recurso seja destinado para o fim concebido, antes caindo no caixa geral da universidade, para uso discricionário de seu Magnífico Reitor. (Eis a razão, aliás, que leva os ricos brasileiros a antes doarem dinheiro para a reconstrução da Catedral de Notre-Dame do que para o Museu Nacional). Se o objeto da doação for patrimônio, o doador atravessará um árduo caminho, entre tombos e papéis, para conseguir efetivá-la. Uma das raríssimas instituições públicas federais a admitir parcerias com a iniciativa privada é a Universidade Federal de Pernambuco: muito por isso, conseguiu construir um pólo tecnológico muito relevante e competitivo, com estrutura de ponta, gerando muito bom retorno para a comunidade externa à academia.

A simples abertura à possibilidade de doações, por parte da iniciativa privada, às universidades públicas, não constitui subalternização aos interesses do mercado. Para grandes empresas, uma placa informando que doou um laboratório de informática para um curso, provavelmente, é suficiente: gera capital social. Os endowments tampouco são negativos: embora sua governança não esteja nas mãos do corpo administrativo da universidade, mas de um conselho geralmente misto, composto por membros da comunidade acadêmica e da comunidade externa, significam a possibilidade de manutenção predial, construção de laboratórios e, mais importante, financiamento de pesquisa acadêmica. É francamente inconcebível, isso sim, que, diante do orçamento quase inteiramente drenado para o pagamento de pessoal, e com uma estrutura precária, as universidades ainda se dêem ao luxo de recusar dinheiro doado, por mera recusa de base ideológica com a origem, ou com a forma que ele será administrado. Nem sequer os endowments propõem, como não poderia ser, governar o orçamento público: eles administrariam apenas o patrimônio doado, estabelecendo critérios para gasto e investimento. Pesquisas importantíssimas e bolsas de estudo deixam de ser financiadas por purismo.

Por mera evidência anedótica, vale contar: mais de uma vez, diante dos protestos contra o corte de gastos, mencionei em sala de aula a possibilidade de endowment como perspectiva. Furiosos, meus colegas diziam: “isso seria submeter a universidade aos interesses do mercado, que não faria essa bondade de graça”. É exatamente essa cultura que põe as universidades federais brasileiras em pontuações inferiores nos rankings mundiais, que não deveriam corresponder ao dinheiro público empenhado, nem tampouco à alta qualificação de nossos professores.

Aliás, a mesma cultura de absoluta rejeição à iniciativa privada dentro das universidades, que impede a parceria entre empresas e academia, reverbera negativamente nos baixos índices da pesquisa industrial no Brasil. Como aponta o Prof. Paulo César Soares, em “Contradições na pesquisa e pós-graduação no Brasil”,

Diferentemente do Brasil, a participação da indústria na ocupação dos pesquisadores é grande nos países desenvolvidos, ficando um número relativamente pequeno na atuação nas universidades. Apesar de termos no Brasil apenas um sexto do número de doutores pesquisadores dos Estados Unidos, temos quase o mesmo número de doutores atuando em universidades (110 para 125 mil). A questão é emblemática e ressalta o academicismo brasileiro, uma vez que no meio acadêmico a pesquisa não se torna instrumento de políticas públicas, como seria esperado nos centros governamentais de pesquisa. O excepcional contingente de doutores nos centros universitários encontra dificuldades de se preparar para a pesquisa.

A pesquisa termina por ser, no Brasil, um fim em si mesmo. Não se faz pesquisa para impactar positivamente a indústria nacional, no setor de tecnologia. Faz-se pesquisa básica e, muitas vezes, para cumprir requisitos de bolsas de produtividade docente. A exceção à regra fica por conta das ciências humanas, posto que os pesquisadores da área, por inerência de sua natureza, têm maior interação com a comunidade externa à universidade.

Não precisa ser a universidade pública responsiva inteiramente à pura demanda mercadológica. Ela não serve ao modelo de produção quase-industrial — refiro-me à imagem de “Another brick in the wall”, de Pink Floyd, na cena do moedor de salsicha — de técnicos disponíveis para a iniciativa privada e para a administração do Estado. Ela tem de ser, sim, um ambiente plural de discussão e debate, capaz de formar sujeitos multidisciplinares, que possam contribuir positivamente com o mercado fazendo uso das habilidades e do novo espírito infundido pela vivência universitária. Contudo, é bastante razoável querer que a universidade, enquanto ente sustentado pela verba pública, pelo imposto de quem muitas vezes nunca cruzou seus muros, dê maior retorno à comunidade.

III.

Há um claro projeto de vingança e de censura do reacionarismo autoritário brasileiro contra a universidade pública. O bem-aventurado estamento universitário, todo imbuído daquele virtuosismo acadêmico cego, vai apontar falta de senso crítico e ignorância — muitas vezes formal, verbalizada no clássico “vá estudar história!” — da massa. Cegos pelo centramento no academicismo, tornam-se incapazes de perceber que nenhuma vingança é imotivada, ainda que injustificável. Vale dizer: o “Escola Sem Partido”, abominação ao próprio conceito de pluralidade universitária, não encontraria eco algum, não houvesse uma hegemonia absoluta da esquerda naquele âmbito, construída pela força do grito e do braço, e não pelo debate de ideias.

Doutrinação não é falar de Marx dentro de sala de aula. Tampouco é criticar o governo ou figuras da política brasileira, ou admitir a realização de eventos políticos dentro da universidade. É, sim, centrar unicamente o currículo dentro de uma perspectiva única, como tem reiteradamente acontecido dentro das ciências humanas. É determinar aos alunos que adotem uma postura política de completa adesão a um partido político (sem sutileza, aliás), sob pena de perseguição. É, muito mais, censurar o livre-pensamento dentro da universidade, à exata maneira que os reacionários pretendem.

A universidade deve ser um ambiente de constante debate político entre as correntes. Como não dizer que é evidente a busca por hegemonia política através da censura, da parte da esquerda, diante de inúmeros eventos ocorridos nos últimos anos? Em muitas universidades federais do país, alunos tentaram exibir o (sofrível) filme O jardim das aflições, de Josias Teófilo, sobre Olavo de Carvalho. Na Universidade Federal da Bahia, a exibição terminou em pancadaria: estudantes organizados de esquerda e sindicatos organizaram a confusão. O filme sobre o astrólogo da Virgínia, aliás, também gerou confusão e agressões na Universidade Federal de Pernambuco.

A UFBA, aliás, tem sido frutífero palco para a intolerância da esquerda. Integrantes do Movimento Brasil Livre, com pouca noção e muita vontade de polemizar, tentaram fazer um “enterro simbólico” do PT dentro do Pátio de Aulas da Federação, em Ondina. (O que é perfeitamente admissível numa democracia: o escárnio político, a provocação, e ouso dizer, a babaquice e o mal-gosto, não podem ser criminalizados). A esquerda, mui plural e democrática, impediu violentamente o ato. Outro caso célebre dentro da universidade é a perseguição de coletivos políticos ao Prof. Fernando Conceição, militante histórico de esquerda na Bahia. O professor, que foi filiado ao Partido dos Trabalhadores na década de 80 e que partiu para uma militância independente, foi mais de uma vez vítima de verdadeiro linchamento moral: foi acusado de machismo, homofobia e assédio sexual, meramente porque ousa discordar publicamente de uma agremiação partidária. Também são famosas as campanhas de difamação ao Prof. Luiz Roberto de Barros Mott, que além de ser um dos mais célebres antropólogos brasileiros, foi o fundador do Grupo Gay da Bahia e é decano do movimento LGBT brasileiro: por ousar apontar homofobia em Dilma Rousseff e a corrupção em seu governo, ele, que é também ex-militante do partido, é diariamente atacado e agredido em suas páginas. Como foi, aliás, na década de 80, ao receber ameaças de morte, por parte do movimento negro, ao apontar que Zumbi dos Palmares talvez fosse homossexual. Não foram os únicos, dentro do âmbito da universidade pública: Bernardo Santoro, professor da UERJ (que hoje trabalha no governo de Wilson Witzel) e conhecido ativista pró-Bolsonaro; e Rodrigo Jungmann, professor da UFPE, acumulam ameaças e linchamentos morais sucessivos.

A Universidade Federal de Pernambuco, aliás, tem sido outro especial palco de violência. Membros da União da Juventude Comunista (ligados ao Partido Comunista Brasileiro), do Movimento por uma Universidade Popular, do Partido Comunista Revolucionário (PCR) e do Movimento Correnteza, durante uma eleição de DCE, espancaram mulheres, enquanto tentavam rasgar uma ata de eleição.

Os casos elencados não são exceções à regra, mas a regra sem exceções. O debate político na universidade pública tornou-se francamente impossível. A única possibilidade de pluralidade se dá dentro dos diferentes campos da esquerda: um olhar mais ao centro, uma mera compreensão social-democrata do processo político, são mais do que suficientes para gerar uma vigorosa denúncia ao suposto fascismo do interlocutor.

De pequenos exemplos como esses, sempre vivenciados pela comunidade acadêmica das universidades públicas, é que deriva o desejo de vingança do bolsonarismo. Os eventos de violência política e a intolerância dentro da academia extrapolou os muros e tornou-se objeto de domínio público. À esquerda cabe, diante da ameaça real à instituição universitária, uma autocrítica severa sobre sua conduta. (O que, aliás, cairá em ouvidos moucos).

Descabido é o conceito de “Escola Sem Partido”, tanto quanto o de escola de partido único. A academia precisa aceitar o livre debate sem censura e a presença de todos os partidos na sala de aula. Anarquistas, comunistas, socialistas, social-democratas, centristas convictos, liberais, libertários, conservadores, reacionários, membros de todas as correntes de pensamento político, precisam ter o direito de exercer sua livre expressão e pensamento dentro do ambiente da universidade, sem temer perseguição, violência, denunciações caluniosas, e ameaças à integridade física e moral.

O veneno amargo do fascismo — antes falacioso, agora muito próximo do real — que o ministério de Jair Bolsonaro aplica às universidades, é o mesmo que a esquerda deu de beber. A direita populista, autoritária e arrogante foi construída, por atos e omissões, por uma contraparte de esquerda com as mesmas práticas de revirar qualquer estômago democrata. Sequer duvidem: o projeto do bolsonarismo para as universidades também é hegemônico. Não pretende fazer contraponto, mas antes dominar o ensino superior público e escorraçar qualquer divergência política ao projeto. Exatamente, aliás, como a parcela mais autoritária da esquerda fez e tem feito ao longo de trinta ou quarenta anos.

Quando, e se, o bolsonarismo for derrotado, cabe-nos repensar a construção de um modelo universitário plural. Ou, o mesmo ciclo se repetirá ad infinitum, aprofundando o clima de intolerância política no Brasil. Intolerância, repito, que não germinou de geração espontânea, nem caiu do espaço.

IV.

Dentro do projeto de censura às universidades públicas, que o bolsonarismo assenta na pós-verdade, usa-se a arma da difusão de notícias falsas, como sói ocorrer a tudo que o nacional-populismo toca. Tentando conquistar a opinião pública à causa da repressão moral, fazem parecer que a universidade é, exclusivamente, um ambiente de fesceninas orgias, venda e consumo de drogas, e difusão da “ideologia de gênero”, o que quer que signifique isso.

É desnecessário discorrer sobre o falso-moralismo contido nessa campanha. Como roteirizou Cláudio Assis em Amarelo Manga, “o pudor é a forma mais inteligente de perversão”, e essa frase, para este autor, sintetiza todo o reacionarismo moral do bolsonarismo. O psicanalista e provocador cultural Lucas Jerzy Portela, apresentador do canal do YouTube “O Brega de Mindelo“, batiza, não por acaso, o arcabouço contido no deserto de ideias do governo, como o “fascismo Didi Mocó”: com o dedo lambuzado de sujeira, denuncia vigorosamente sua contraparte da forma mais cômica possível, restando ao espectador aguardar que um dos atores dispare uma torta ou um extintor de incêndio na cara do outro, para a alegria da claque.

A arte, por exemplo, é alvo de ataques dos mais ensandecidos reacionários. Não se admite, por exemplo, representações abstratas, nudez, ou discussão artística sobre a sexualidade. O artista Kleper Reis, que tem levado a exposição itinerante “Cu é lindo” a universidades públicas e centros culturais — e que, não, não foi financiado com R$ 131 mil reais pelo Governo da Bahia, diferentemente do que dizia a notícia falsa que circulou à exaustão, na época —, está recolhido em casa, no seu Estado de origem, depois de sofrer múltiplas ameaças de morte em decorrência de seu trabalho. Wagner Schwartz, conceituado bailarino, foi perseguido, ameaçado e publicamente estigmatizado como pedófilo (o que não é, nem jamais foi!) depois da performance “La Bête”, no Museu de Arte Moderna, porque uma criança interagiu, junto à mãe, com o artista — que estava nu — em um momento completamente desprovido de malícia.

A filosofia e a sociologia, assim como a arte, são atacados diuturnamente pelo bolsonarismo. Censura-se o modo libertário e as divagações próprias da academia. Criminaliza-se a vida contemplativa própria da natureza acadêmica, porque ela não caminha de mãos dadas com o desejável pelo reacionarismo: admissível, apenas, é a vida contemplativa de mosteiros, ou a que Olavo de Carvalho leva na Virgínia, entre caças a ursos e palavrões. Desconhece-se, porém, que este modo de vida acadêmico de contemplação, questionamento e dialética, é pura herança da Igreja Católica, mãe, aliás, da própria universidade.

O papel da universidade pública na sociedade, repetido à exaustão neste artigo, vai muito além da formação de técnicos para o mercado e o Estado.

A cultura brasileira moderna foi forjada na universidade pública. Ela fornece muito mais do que artistas, filósofos, sociólogos. Escritores, publicitários, filólogos, médicos, políticos, teóricos do direito, juízes, e a maior parte dos ministros de Estado do próprio governo, se formaram em universidades públicas, como é o caso de Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub, graduado em economia pela Universidade de São Paulo e professor, ele mesmo, de uma universidade federal. Na música popular brasileira dos últimos quarenta anos — daquele tempo em que os reacionários mais saudosistas dirão que era bom! —, a maior parte dos principais cantores e compositores começaram a trilhar seu caminho dentro de universidades públicas. Para além do dramalhão terceiro-mundista, a universidade pública foi fundamental na forja da identidade nacional brasileira. E isto não seria possível sem a sua natureza diferenciada de reflexão.

Ricardo Vélez Rodríguez, ex-ministro da Educação — demitido num dos mais vergonhosos episódios do governo — não estava inteiramente errado ao dizer que “a universidade não é para todos”, mas para “a elite intelectual, que não é a mesma que a econômica”. Elite se usa, nesse caso, para referir-se justamente à concepção de “o que há de melhor qualidade”. Justamente porque sua função é ser a avant-garde cultural da sociedade. Mesmo que a vida universitária permita aventuras e porralouquice, mais própria da juventude do que de uma suposta natureza perversa, ela não retira o peso da intensa formação intelectual recebida nos anos de formação numa universidade, quando o aluno não é sectário e é dedicado.

A universidade é reflexo da sociedade. As condutas da vida universitária, as discussões da academia, as querelas, a competição, o dia-a-dia, são exatamente como no mundo extra-muros, mas de uma forma ampliada (e às vezes antecipada, considerando a natureza vanguardista da instituição). A preocupação em vigiar acadêmicos e estabelecer sobre eles uma rígida disciplina moral é reveladora: é isto que pretendem, também, para a sociedade brasileira, os autoritários do regime da vez.

Para convencer o público de que a universidade pública é sinônimo de devassidão, fazem uso de vídeos e imagens de performances que, muitas vezes, não têm qualquer correlação com a sexualidade. Foi o caso de estudantes da Universidade Estadual de Londrina, que, desnudos numa apresentação sobre o holocausto — à semelhança dos judeus, na hora da morte — viram-se acusados de promover uma orgia. Vídeos de performances eventuais no estrangeiro, inclusive, foram distribuídos à exaustão e passados como se ocorressem no Brasil. A maior parte dos estudantes de universidade pública, em verdade, só viram gente pelada dentro de seu campus um punhado de vezes, e isso a depender de sua área de formação: cadáveres, ao estudar anatomia; ou modelos-vivos, ao estudar desenho. No máximo, se viram, foi em algum evento artístico programado, e ainda assim, completamente facultativo: vai quem quer, vê quem quer; quem não quer, vai para sua sala de aula, cumpre a sua rotina, e segue a vida.

Concorrem paralelamente dois objetivos a esta preocupação com a “balbúrdia” na universidade pública: lograr apoio popular (o cidadão brasileiro médio, que votou em Jair Bolsonaro para presidente, piamente acredita que a universidade pública é um antro de perdição) para esmagar um dos principais focos de oposição ao governo; e, vingar-se da esquerda pelos anos de hegemonia, banindo-a da vida acadêmica. Não há nobreza alguma, nem preocupação com valores (até anticristãos, posto que a universidade foi concebida pela Igreja Católica como um ambiente de debate filosófico e desenvolvimento cultural e científico), mas, antes, o desejo de enviar o adversário para um gulag canavieiro.

E, a bem da verdade, outros cortes são mais prioritários do que este na educação pública. A previdência dos militares, cujo rombo é de R$ 43,8 bilhões, deveria ser revista muito antes dos gastos discricionários com a educação; não será, é claro, porque o Presidente da República é e sempre foi um representante sindical dos oficiais do Exército. Regras absurdas, como pensões integrais, pensões para filhas de militares, e verba de representação de 10% do salário para oficiais-generais, permanecem mantidas na proposta do Governo Federal. Ninguém vê, da parte do Presidente da República e seus ministros de Estado (à exceção de Paulo Guedes, na Economia), uma genuína vontade de reformar a estrutura do Estado, de forma a fazer com que as contas públicas caibam dentro do orçamento, hoje deficitário: não há a menor intenção de enxugamento. Nem há, sequer, a intenção de rediscutir o modelo de financiamento da universidade pública de forma séria e comprometida, de repensar a fonte de receitas da instituição. Deseja-se apenas o desmonte pelo desmonte, pelas razões aqui expostas à fartura.

Também, pudera! A sanha censora do séquito governista é tamanha que, entre suas hostes, multiplicam-se os pedidos por golpe de Estado, fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Não é só alvo a universidade pública, mas a (dizem-na extrema) imprensa, as instituições, a democracia, a tradição de Estado. Como Millan-Astray, bruto teórico do falangismo espanhol, berrou ao grande Miguel de Unamuno, “¡muera la inteligencia!” é o grito de guerra lançado pelos Robespirralhos, repetidos pela claque de incondicionais apoiadores do Presidente. A estes, que creem-se revolucionários da reação, próceres da cruzada contra os valores democráticos, só resta deixar a resposta do grande basco: “venceréis, pero no convenceréis”. Se vencerem, o que já duvido.

Lucas Baqueiro

Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.

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