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Sobre a importância da filosofia universitária pública

por Arthur Grupillo (03/05/2019)

Sinto-me um pouco constrangido de defender a filosofia e a instituição universitária.

Em 2013, quando tomei posse como professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Sergipe, recém-chegado a Aracaju, conheci por acaso no Shopping Center um professor do departamento de geologia. Ambos nos concentramos num espetáculo de música barroca que acontecia estranhamente próximo à praça de alimentação. Alguns dias depois, nos encontramos no campus. Ele vinha de uma palestra sobre “inovação”, e me confessou que tinha acabado de aprender que este era um conceito tão amplo que poderia claramente haver inovação em música, em ciência política, etc. E me perguntou se eu, professor de filosofia, não estaria disposto a falar aos estudantes de geologia, pois, segundo ele, a visão de mundo estava desorientada. “Nós estamos ensinando coisas técnicas aos alunos”, me disse com pesar, “mas eles às vezes não sabem o que fazer com isso”. Assisti uma vez a um interessante filme promocional da Google, e havia na história jovens inovadores com o desafio de criar um aplicativo. Bloqueados em sua criatividade, são levados por colegas mais velhos, deslocados e sem qualquer experiência em tecnologia, para uma noitada. De repente, um deles tem a terrível ideia de mandar uma mensagem para a ex-namorada. E assim eles chegam ao conceito de que precisavam: criariam um aplicativo que impede a pessoa de mandar mensagem para ex-namoradas em determinadas circunstâncias. Faltavam aos meninos uma certa visão de totalidade a que voltarei no fim deste artigo.

Estão tentando demonizar a filosofia, especificamente a filosofia universitária e pública. Há um problema enorme em criticar as coisas por ser o que elas são e não outra coisa, principalmente se é uma coisa que muda o tempo inteiro, se é uma coisa que é capaz de fazer objeções severas a si mesma e que, pior, está mais habilitada do que qualquer outra coisa a fazer uma correção de si mesma. Este é um princípio bastante simples e bastante óbvio, que pode nos prevenir de cometer erros grosseiros demais. Se alguém se opõe a determinada regra de trânsito, isso é bem diferente de se opor a que haja regras de trânsito em geral. Se alguém não gosta de uma camisa, não está querendo com isso defender o nudismo. Pelo contrário, alguém critica uma lei de trânsito porque acredita que outra melhor resolveria o mesmo problema, e só quem pensa leis de trânsito está habilitado a dizer isto. Se alguém não gosta de uma camisa, é precisamente porque pensa que há outras melhores, e pode até não entender muito de roupas, mas entende bem do próprio gosto. Só esta pessoa estaria em condições de revê-lo, se for o caso. Alguém que defendesse o fim das leis de trânsito em geral, certamente seria alguém que não entende nada de leis de trânsito, ou que pensa que não precisa ou não se beneficia delas.

Sinto-me um pouco constrangido de defender a filosofia e a instituição universitária. É como se estivesse na situação um pouco incômoda de defender a literatura ou a culinária. Não posso defender uma coisa que eu não saberia como criticar. Explico. Eu posso criticar um certo tipo de literatura, por exemplo, a alemã ou a vitoriana. E é exatamente por isso que eu posso defender a comédia francesa. Mas como farei para criticar a literatura pura e simplesmente? Que sobrará para que eu possa defender? Se alguém critica toda a literatura, sem distinções, só lhe restará a tarefa árdua de fazer uma defesa da poltrona e nunca mais tocar no assunto. Digo árdua tarefa porque parecerá que ela defende todo tipo de poltrona, as piores possíveis, porque não se trata para ela de comparar uma poltrona com outra, mas sim uma poltrona com a literatura. Seria como defender as padarias em lugar das imobiliárias, as maçãs em lugar das maçanetas. Gosto de comida mexicana e não da japonesa. Outra coisa bem diferente é dizer que não gosto de comida mexicana porque prefiro antes os filmes dublados. As filosofias são tão diferentes e mudaram tanto ao longo do tempo, e isso em função do próprio trabalho da filosofia e da universidade, que elas não podem simplesmente ser criticadas por serem o que são. Se alguém as criticar como um todo, ninguém saberá o que isto significa.

Alguém poderia me perguntar, então: quer dizer que não posso criticar o assassinato em geral? Posso! O assassinato em geral não é algo tão geral e tão diverso que eu tenha de enfrentar o problema de que tipo de assassinato seria preciso. Pelo contrário, nenhum tipo de assassinato é preciso justamente porque não consigo pensar em ter que escolher qual deles é pior. A vida, por outro lado, é tão geral que não posso pensar em criticá-la como um todo. Posso preferir determinado estilo de vida a outros. E só por isso é que posso questionar o estilo de vida de um assassino. Novamente, isso recoloca tudo que este artigo está humilde e avidamente tentando explicar. Que eu posso criticar um estilo de vida, mas não estilos de vida em geral. Da mesma maneira, posso criticar filosofias, e não a filosofia em geral. Mais que isso, eu poderia dizer que só fazendo filosofia eu poderia criticar uma filosofia. Mas, de fato, houve filósofos que criticaram a filosofia enquanto tal. Um deles foi Karl Marx, que afirmou que o mundo já tinha sido suficientemente pensado, se tratava agora de transformá-lo. Sinto uma certa afinidade entre essa perspectiva simplista demais e a tentativa do atual governo, o presidente e seus ministros, de se opor à filosofia e defender apenas o aprendizado do que gere renda para alguém. Isso é demasiado materialista, e nada prático, como pretendo mostrar.

Pelo contrário, se alguém aprende um ofício técnico sem qualquer conexão com o sentido da vida, com as complexas questões da existência, com a filosofia, com a ética, com a literatura, etc., e até mesmo coma religião, está fadado a agir cegamente, talvez a gerar renda para si próprio, mas sem gerar nenhum mísero bem para a sociedade, para a nação, para a história, pois para tudo isso a pessoa precisa enfrentar o que ela pensa da vida. Esta é precisamente a autocrítica que a filosofia e a instituição universitária vêm realizando, e um enorme problema para as instituições universitárias privadas. Basta lembrar o importante livro de George M. Marsden, The Outrageous Idea of a Christian Scholarship, e o fascinante relato do ex-reitor da Universidade de Yale, Anthony T. Kronman, no sugestivo Education’s End: Why Our Colleges and Universities Have Given Up on the Meaning of Life. A questão não é demonizar a filosofia, porque qualquer um de nós tem uma. A questão é aprofundá-la. A questão não é a instituição universitária enquanto tal, mas sua democratização, sua pluralidade e abertura. E isso exatamente para grandes questões da existência, que nada têm de material.

Um dos conceitos mais diversos em filosofia, por exemplo, é o de experiência, com o que comecei este texto. Mesmo em suas várias abordagens, experiência significa algum tipo de coerência e organização. Ela não precisa ser tão restrita, como a da ciência experimental, ou tão individualizada, como a da formação pessoal, mas pode, e deve, ser o mais ampla e rica possível. O caos, contudo, nunca será uma experiência. Uma das funções mais atuais da filosofia é manter a visão de totalidade no fluxo descontrolado de informação que no mundo contemporâneo nos desorienta. Uma pessoa precisa de um princípio para organizar para si essa selva de palavras em que o mundo se tornou, um facão de Ochkam. As grandes religiões e os grandes sistemas metafísicos nunca foram tão úteis. Se você espera primeiro por informação para depois articular sua posição a respeito do mundo, está perdido. O paradoxo do professor de geologia e dos meninos inovadores do filme é que, para serem práticos, precisam de um saber que não é nada prático. Precisam de literatura, filosofia, religião, amor; só assim o saber técnico pode ser qualquer coisa, se quiser um dia ser inovador. Não estou certo de que as universidades privadas brasileiras assumiriam esta missão.

Arthur Grupillo

Jornalista e professor de filosofia da Universidade Federal de Sergipe.