A medicina precisa ser baseada em evidências, e não em crenças populares ou decisões políticas.
É natural que o conhecimento popular apresente-se com uma série de equívocos acerca do que seja científico. O fato acontece em diversos campos, como política, economia, história e, por que não, medicina. Quantas pessoas não conhecemos que se irritaram com um médico por ele não ter feito “nem um exame de sangue” ou “nem um raio-X” como se isso fosse estritamente necessário ao diagnóstico? Quantas reclamações não ouvimos a médicos que fazem diagnóstico de “virose”, ainda que “viroses” constituam a maior parte das infecções comunitárias (especialmente, de vias respiratórias ou gastrintestinais)? Quantas críticas não sabemos que foram feitas a médicos que deixaram o paciente sair “sem nenhum remédio”, mesmo que a patologia em questão fosse de cura espontânea? E aqueles que passam dipirona, mesmo que ela seja o suficiente ao paciente enquanto a doença não involui?
A todo momento, essas colocações nos bombardeiam. Óbvio, há médicos negligentes, imperitos e imprudentes, mas a crítica popular costuma atingir profissionais responsáveis – apenas pela compreensão inadequada por parte de quem faz a crítica. Atualmente, durante a pandemia de COVID-19, médicos que se recusam a acreditar ou usar a “milagrosa” hidroxicloroquina (HCQ) estão sendo mal vistos.
Infecções virais não são como as bacterianas, que são facilmente resolvíveis com antibióticos e, muitas vezes, dependem deles para desaparecerem. Muitas delas apresentam cura espontânea, outras permanecem latentes pelo resto da vida. A maioria sequer precisa de antivirais – o simples suporte com hidratação, sintomáticos (para controlar febre, dor e outros sintomas gerais) e oxigênio é o suficiente. O principal tratamento para a dengue grave, por exemplo, é a hidratação vigorosa, não há necessidade de medicamentos que combatam diretamente o vírus. A sociedade medicalizada, contudo, não entende isso.
Os antivirais, em sua maioria, não promovem cura, e sim remissão. Ninguém fica livre do vírus do HIV com o uso de tenofovir, lamivudina ou dolutegravir, nem do HSV-1 ou HSV-2 (causadores de herpes genital e labial) com o uso de aciclovir, nem do citomegalovírus com ganciclovir. Outros, como o tamiflu (oseltamivir), usado para os vírus influenza A e B, e os antivirais usados para hepatite C são extremamente controversos. A sociedade medicalizada, contudo, não entende isso.
Certo medicamento foi capaz de eliminar o SARS-CoV2 in vitro, mas isso é uma evidência extremamente fraca, especialmente mediante um vírus novo ao mundo. A sociedade medicalizada, contudo, não entende isso. Situação parecida aconteceu com a fosfoetanolamina.
As evidências atuais demonstram claramente que a HCQ não faz a menor diferença para quem tenha a COVID-19. A sociedade medicalizada, contudo, não entende isso.
Seria um problema menor caso apenas a população geral fosse atingida, mas os próprios profissionais de saúde estão sucumbindo ao que tanto criticaram. O raciocínio científico está sendo substituído pelo desespero imposto pela medicalização. Os sentimentos de medo, incerteza e angústia são grandes, mas não justificam o uso de uma terapia ineficaz, como está sendo sugerido até por protocolos hospitalares. O Código de Ética Médica (CEM), em seu artigo 14, veda a orientação de tratamentos desnecessários e no 32, dita que o tratamentos devem ser orientados de forma cientificamente válida.
Prescrever a HCQ, portanto, além de ignorar as evidências, é inescrupuloso. Publicizá-la como cura, então, é ainda pior, já que, como descrito no artigo 113 do CEM, é proibido “divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.
A medicina precisa ser baseada em evidências, e não em crenças populares ou decisões políticas. A “cura” para o COVID-19 é possível, no entanto, até o momento, não existe. Recusar-se a fazer um tratamento cujas evidências demonstram ineficácia não é omissão, é honestidade científica. A justificativa de que o uso da HCQ está sendo feito de maneira experimental e “é melhor do que nada” não é razoável, porque já está claro que ela não funciona. Abandonar essa ideia e buscar outras potenciais alternativas (como dezenas de outros medicamentos atualmente testados) seria a escolha mais correta.
Josikwylkson Costa Brito
Graduando do quinto ano de medicina e editor do site Universo Racionalista.