Quem tem mais experiência não necessariamente é quem irá determinar a conduta mais correta
Certo dia, no sexto período da faculdade, um professor de Neurologia nos perguntou quais eram as quatro palavras mais perigosas da medicina. Todos os alunos ficaram intrigados e sequer conseguiram dar algum palpite, mesmo que impreciso. Depois de um tempo, ele respondeu, “as quatro palavras mais perigosas da medicina são ‘quem tem mais experiência'”. Naquele momento, meus olhos brilharam.
A medicina baseada em evidências (MBE) é uma corrente que tem sido cada vez mais difundida. Archie Cochrane, na década de 40, já era um grande defensor do uso do método científico para a produção do conhecimento médico, mas o termo medicina baseada em evidências surgiu apenas no início da década de 90 na Universidade McMaster, no Canadá, quando epidemiologistas notaram que os médicos eram exageradamente dependentes de suas experiências clínicas para a tomada de decisões. Experiências pessoais, porém, podem ser imprecisas; elas são encarregadas de vieses, distorções da realidade que, geralmente, acontecem na ausência de um escrutínio rigoroso. Um exemplo é o viés de confirmação, quando, diante de uma incerteza, pesquisamos apenas aquilo que reforça nossa ideia inicial, em vez de fomentar uma busca imparcial.
Antes de entrar em medicina, eu já era fascinado pela prática baseada em evidências, e foi por isso que meus olhos brilharam na sala de aula (“Uau, encontrei uma pessoa que pensa como eu”). Vincular a vida às evidências faz-me feliz ao saber que o mundo não é tão incerto quanto parece – basta você analisá-lo meticulosamente – mas, ao mesmo tempo, provoca-me angústia ao ver que atitudes social e politicamente relevantes são motivadas por intuições pessoais, senso comum e costumes (ao exemplo da guerra às drogas ou porte de armas), ao invés de ciência.
Contudo, o maior impacto que recebi ao estudar mais profundamente as evidências foi o de saber que raciocínios que parecem razoáveis podem levar a conclusões falsas. Na verdade, os próprios vieses levam a raciocínios do tipo. Como exemplo, analise as seguintes situações:
1. Uma pessoa estava usando uma camisa vermelha quando o Brasil venceu a Copa de 2002. A partir de então, ela a nomeou como camisa da sorte, pois há uma relação direta entre seu uso e a vitória da seleção. É um raciocínio razoável, mas a conclusão é evidentemente falsa.
2. Um sujeito come um prato inteiro de feijoada e vai nadar imediatamente. No meio do exercício, ele começa a sentir cãibras, afoga-se e morre. Associar a morte à feijoada é razoável, mas não é verdadeiro. Praticamente qualquer outra comida copiosa teria causado o mesmo efeito.
3. Agora no campo da medicina, pense em uma doença viral X tem um período de evolução de 10 dias, desaparecendo após isso. Imagine que alguém a contrai e, no momento do diagnóstico, começa a usar antibiótico, permanecendo por 10 dias. Ao fim, o indivíduo poderá pensar: “Tive uma doença, usei antibiótico e melhorei. Logo, o antibiótico serve para a doença”. O raciocínio é razoável, mas a conclusão também é falsa. Antibióticos não servem para tratar infecções virais.
Visando minimizar os riscos de raciocínios equivocados, os criadores da MBE criaram uma hierarquia de evidências, dispostas em uma pirâmide.
Quanto mais acima da pirâmide, maior é a qualidade da evidência produzida e menor o risco de vieses. No topo, há as revisões sistemáticas e as meta-análises, que são compilados de resultados de artigos por meio de uma pesquisa com critérios rígidos e direcionados.
No meio da pirâmide, há outros tipos de estudos, como os ensaios controlados-randomizados, que são feitos selecionando pacientes aleatoriamente e dividindo-os em dois grupos, sendo que um deles recebe tratamento e o outro não. São, a seguir, os melhores estudos para analisarem a eficácia de uma intervenção.
Na base da pirâmide, há os campos evidências anedóticas e opiniões de especialistas, como evidências de menor qualidade. As experiências pessoais dos médicos estão englobadas justamente nesses grupos.
Quando falamos em MBE, tratamos do uso da melhor evidência disponível. Então, precisamos percorrer do topo até a base para que possamos ter um conhecimento mais acurado, até encontrarmos algum conhecimento disponível. Ao supervalorizar experiências pessoais, faz-se o caminho inverso, da base até o topo (das piores às melhores evidências). Eventualmente, a experiência pode ser consonante com as melhores evidências, mesmo assim, será por sorte, não por análise crítica.
Logo, quem tem mais experiência não necessariamente é quem irá determinar a conduta mais correta. O grau de verdade de uma ideia ou ação provém do quanto as evidências corroboram com elas, e não com o caráter de quem a exprime.
“Então, quer dizer que um médico que passa um remédio há 40 anos e diz que sempre funcionou deve mudar a conduta se surgirem evidências de que esse remédio não funciona?”
Sim, eu quero dizer isso. Ser honesto, admitir erros e aceitar mudanças faz parte da ética científica. Grandes nomes da ciência cometeram erros em sua carreira, e assumir suas falhas foi o que os engrandeceu. Grandes nomes também foram maximizados percebendo as falhas do conhecimento tradicional. Certos dias, pensaram que a Terra era o centro do universo, hoje, graças a nomes como Nicolau Copérnico, Galileu Galileu e Isaac Newton, as evidências demonstram que Aristóteles e Ptolomeu, principais desenvolvedores do geocentrismo, estavam errados. Até a Idade Média, a fisiologia do corpo humano era pautada nas ideias de Galeno de Pérgamo, mas, hoje, sabemos que ela é equivocada, graças a nomes como William Harvey, Ibn An-Nafis e Andreas Vesalius.
Quanto mais se falha, mais se aperfeiçoa o conhecimento e a conduta, à medida que as mesmas são reconhecidas e melhoradas, seja pelo produtor do conhecimento ou por seus pares.
E não, não estou falando para você deixar de ir ao médico e ler artigos na internet. Apesar de eu ter simplificado a ideia, ela é mais complexa do que parece. Nós vamos aos médicos porque a probabilidade deles estarem certos acerca do que trabalham é maior do que a de uma pessoa não-médica. Essa probabilidade, no entanto, é muito mais alta caso eles adotem a MBE, ao invés da simples e pura experiência, afinal, como diz um aforisma, o “médico tem de estar sempre se atualizando”, portanto, quanto mais esclarecido acerca das evidências mais recentes e valorosas ele for, mais confiável será.
Josikwylkson Costa Brito
Graduando do quinto ano de medicina e editor do site Universo Racionalista.