por Rafael Rodrigues – Dizia Nelson Rodrigues que o Brasil estava infestado de idiotas. E os idiotas, segundo Nelson, têm “os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes”. Além disso, eles “estão por toda a parte: na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os melhores pensavam […]
por Rafael Rodrigues – Dizia Nelson Rodrigues que o Brasil estava infestado de idiotas. E os idiotas, segundo Nelson, têm “os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes”. Além disso, eles “estão por toda a parte: na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.”
Trocando “Brasil” por “planeta”, “idiotas” por “picaretas” e “Nelson Rodrigues” por “Francis Wheen”, temos Como a picaretagem conquistou o mundo (Record), publicado originalmente em 2004 e editado no Brasil em 2007. Apesar dos cinco anos que separam seu lançamento em língua inglesa dos dias de hoje, sua leitura é necessária para, com base nas informações apresentadas pelo jornalista britânico, melhor entender não só o passado, mas também o presente e, quem sabe, o futuro.
Wheen inicia o livro evocando os valores do Iluminismo, os quais ele considera esquecidos pela sociedade. Para ele, “o Iluminismo foi menos uma ideologia do que uma postura – a suposição de que algumas verdades sobre a humanidade, a sociedade e o mundo natural poderiam ser discernidas pela dedução ou pela observação, e de que a descoberta dessas verdades transformaria a qualidade da vida”, e diz que seu “objetivo neste livro é mostrar como os valores humanos do Iluminismo têm sido abandonados ou traídos…”.
A partir daí, capítulo após capítulo, o britânico desmascara uma série de – segundo ele – picaretas ilustres, como Ronald Reagan e Margareth Thatcher, que arruinaram não só a economia de seus respectivos países (Estados Unidos e Inglaterra), mas de todo o mundo (por causa do efeito cascata), no fim da década de oitenta. Sobre a administração do norte-americano, diz Wheen: “Durante a presidência de Ronald Reagan, o país passou de maior nação credora do mundo a maior nação devedora – e, de quebra, triplicou sua dívida interna”. A má-gerência econômica do governo culminou numa grave crise em 1987, que teve seu ápice no mês de outubro – mesmo mês em que, no ano passado, teve início a atual crise que atravessamos. As semelhanças entre aquele presidente e o último, George W. Bush, não param por aí. Além de ambos terem sido reeleitos apesar das críticas que recebiam, muita gente considerava Reagan um pateta – ele acreditava piamente em astrologia e chegava a consultar astrólogos antes de tomar decisões importantes para o rumo dos EUA. Bush não chegou a tanto, mas talvez tenha feito pior, ao aparentemente servir de simples fantoche para que outros governassem o país em seu nome.
Do outro lado do Atlântico, Margareth Thatcher assumia, no fim da década de 70, uma Inglaterra alquebrada e fora dos trilhos. Pouco tempo depois, conseguiria piorar ainda mais a situação: “Durante seu primeiro ano de governo, a inflação saltou de 9% para mais de 20%; as taxas de juros e o desemprego tiveram aumentos acentuados; e a indústria fabril da Grã-Bretanha (…) estava sendo demolida pela recessão”. Apesar disso e de outras medidas negativas que tomou enquanto estava no poder, conseguiu manter o cargo de primeira-ministra até 1990.
No segundo capítulo, Wheen mostra como alguns picaretas se aproveitaram da situação caótica nos anos oitenta para ficarem ricos, não importando quais fossem os meios. Muitos deles, aliás, foram parar atrás das grades depois de se regozijarem por algum tempo às custas das benesses oriundas de atos ilícitos. Aqui, o autor também fala sobre os escritores de autoajuda, que, na verdade, mais se autoajudam que ajudam aos outros. Diferente dos picaretas do início do parágrafo, os escritores de livros de autoajuda geralmente enchem os bolsos de dinheiro de maneira lícita, aproveitando crises econômicas, políticas e sociais para colocarem no mercado livros que prometem a realização financeira, profissional e pessoal de todo aquele que se dispor a dedicar algumas horas e vinténs à leitura de tais obras. Não obstante as críticas ferrenhas de Wheen, não se pode ignorar o fato de que esse nicho do mercado editorial ajuda a circular dinheiro, gerar riqueza e empregos, além de possibilitar que as editoras não fechem seus anos em prejuízo. Para se ter uma ideia, segundo Wheen, “Na virada do século [XX para o XXI] as publicações de auto-ajuda geravam 560 milhões de dólares anuais…”.
Passando por Francis Fukuyama, famoso por ter declarado o “fim da História”, o próximo alvo de Wheen são os pós-estruturalistas – posteriormente denominados de desconstrucionistas e, mais adiante, de pós-modernos. No capítulo mais bem-humorado do livro, lemos trechos de pensadores como Gilles Deleuze, que o autor comenta: “Podemos passar horas fitando esse parágrafo e continuar sem entender nada. Podemos lê-lo de trás para frente, decompô-lo nas orações que o constituem, ingerir drogas alucinógenas para ajudar a compreensão: ele continua a ser um palavrório ininteligível”. Mas os pós-modernistas deixam de ser engraçados quando Wheen revela coisas do tipo “Em seu livro A guerra do Golfo não aconteceu, Baudrillard insistiu friamente em que nem mesmo os corpos carbonizados das vítimas eram ‘reais’ ”.
A metralhadora giratória não poupa nem mesmo figuras quase canonizadas pela mídia, como Al Gore, a quem se refere como “um mentiroso de inteligência moderada que praticava tráfico de influência”; muito menos fatos como o período logo após a morte da princesa Diana, que gerou, além de reações inusitadas na Inglaterra (“Um homem disse à BBC que havia chorado muito mais no funeral de Diana do que no do seu próprio pai…”), uma oportunidade perfeita para empresários venderem seus jornais, atraírem audiência para seus canais de TV e até mesmo para políticos posarem de sentimentais, como o então ministro da fazenda Gordon Brown, que “cogitou transformar o aniversário da morte da princesa em feriado nacional”, e o então primeiro-ministro Tony Blair, com “sua leitura hilariantemente canastrona de uma passagem da Epístola de São Paulo aos Coríntios no funeral de Diana”.
Como se achasse pouco, Wheen satiriza ainda Anthony Giddens, um dos papas da sociologia contemporânea: “O que era a Terceira Via [título de um livro de Giddens]? Ninguém jamais soube dizer, mas ficava mais ou menos entre o Segundo Advento e a Quarta Dimensão”; e ataca, também, Noam Chomsky: “Depois de 11 de setembro de 2001, [Chomsky] resolveu que o assassinato de 3.000 pessoas pela al-Qaeda era menos estarrecedor do que a crise dos mísseis do presidente Clinton, três anos antes, numa indústria farmacêutica no Sudão (erroneamente identificada como uma fábrica de armas químicas), que tirara a vida de um guarda de segurança solitário”; mas não sem antes fazer uma análise da crise financeira provocada pelo boom das empresas pontocom anos atrás: “Entre 1998 e 2000, porém, os investidores se engalfinharam e trocaram empurrões para comprar ações de empresas que, não raro, não tinham lucro nenhum, nem a menor perspectiva de um dia serem lucrativas”.
Com argumentos consistentes e sem rodeios, Como a picaretagem conquistou o mundo é uma ferramenta indispensável para qualquer um que deseja pensar de maneira livre e crítica, distanciando-se dos embustes disfarçados de intelectuais, políticos e “pacifistas” que aparecem aos montes todos os dias. Certamente não é um guia ou uma fonte inequívoca de informações, mas sem dúvida alguma ajuda a compreender o mundo em que vivemos. Afinal, não podemos aceitar toda informação como verdadeira. É preciso questionar, desconfiar, investigar. Só depois de feito isso é que deveríamos seguir um caminho, tomar um partido. É o que faz Francis Wheen. É o que devemos fazer todos nós.
::: Como a picaretagem conquistou o mundo ::: Francis Wheen :::
::: Record, 2007, 364 páginas ::: compare preços :::
Rafael Rodrigues
Escritor, preparador de textos e jornalista freelancer. Mantém uma coluna no Brasil Post e o site O Brasil é Tão Longe, dedicado à literatura brasileira.
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